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Quem escuta o batuque do maracatu nunca esquece, mas quem conhece sua história e origens se entrega de vez a uma das tradições mais antigas do país

Eduardo Zappia

O ritmo, proveniente do continente africano, desenvolveu-se principalmente no nordeste brasileiro, no coração de Pernambuco, há mais de 300 anos. E em Igarassu, Região Metropolitana do Recife, ainda está em atividade o maracatu mais antigo do país, o Estrela Brilhante. Sua origem se confunde com a do próprio maracatu, como manifestação popular. A história remonta ao período da colonização na Capitania de Itamaracá, quando o pesquisador inglês Henry Koster registrou em livro a coroação do Rei do Congo, na extinta Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos, em Vila Velha. Com o fim da escravidão essas exibições deixaram de existir, restando apenas o cortejo que é o maracatu de hoje, realizado durante o Carnaval.

Não se sabe com precisão a data de fundação do Estrela Brilhante. A antiga matriarca do folguedo, Maria Sérgia de Santana, dona Mariú, contava que a partir de 1824 o ritmo passou para o seu pai e depois para as mãos do seu marido, Manoel Próspero de Santana, o seu Neusa, mestre de batuque da nação. Em Igarassu, construíram uma família com 19 filhos, levantando naquela época a sede do Maracatu. Após a morte do marido, ela assumiu a entidade, dando continuidade ao trabalho de seu Neusa.

Com a morte de dona Mariú – aos 105 anos, em 2003 –, o comando do Maracatu passou para sua filha Olga de Santana Batista. “Comecei no maracatu com 10 anos de idade e até hoje estou brincando, e só deixarei quando morrer. Mas, quando eu não puder mais brincar, meu filho mais novo, Gilmar de Santana, vai tomar conta do maracatu, como fez minha mãe, para o Estrela Brilhante não acabar”, resumiu.

Já são 185 anos mantendo a tradição com suas cores, músicas e danças, que compõem a cerimônia de coroação da rainha e do rei do Maracatu. O Estrela Brilhante desfila com a nação completa, ou seja, com todos os seus integrantes, segundo Gilberto, filho mais velho de dona Olga. “Abrindo alas vem o porta-estandarte, que sou eu, e a dama de honra, que é acompanhada pela corte: vassalo, ministro de guerra, que sai com a espada na frente indicando ser o segurança da nação, príncipe, rei, rainha e as catirinas, que são as baianas”, explica. Para ele, um dos momentos mais importantes é a dança da Dama do Paço carregando a calunga, ou boneca, que passa na frente das igrejas, durante o cortejo, para homenagear e agradar às divindades negras. Em seguida a boneca é entregue à rainha e, depois, às baianas.

A calunga é a dona do maracatu e traz consigo toda a força dos orixás, dos antepassados, protegendo a nação e seus componentes. Ao longo de sua história oral existiram duas calungas: a primeira, Joventina, foi roubada, aparecendo depois em outro maracatu, e hoje está no Museu do Homem do Nordeste; e dona Emília, que já comanda o maracatu há uns 80 anos.

Por fim, o cortejo é acompanhado dos batuqueiros encarregados de alegrar e dar ritmo ao desfile. A orquestra é constituída só de instrumentos de percussão, os mesmos que eram tocados nos tempos dos negros, como gonguê, bombo (alfaia), caixas de guerra (tarol) e mineiro. A música é cantada em diálogo, o mestre tira uma loa e os outros respondem, com cada início e final marcados ao som de um apito. Os temas giram em torno da história do maracatu, do seu povo e dos santos do catolicismo, todos na voz de dona Olga e do mestre Gilmar.

O cortejo da realeza é justamente o diferencial do maracatu nação em relação ao outro tipo de maracatu, o rural ou baque solto. Mas o que distingue a nação Estrela Brilhante das outras é a preservação da tradição. O modelo das roupas é o mesmo do passado, com a utilização de várias camadas de saia, que formam um volume natural, em vez das armações de sustentação, comuns nos maracatus atuais. Não existe uma cor específica, mas a cor de todos os orixás, com exceção das roupas do rei e da rainha, definidas segundo orientação do pai de santo.

mulher

Uma de suas particularidades é a ausência de mulheres no batuque. As matriarcas afirmam que a proibição tem ligação com o candomblé, em que as mulheres também não fazem percussão no terreiro. Dona Olga aprendeu e ensina que, de acordo com o candomblé, a mulher tem seu corpo aberto todos os meses, ao contrário do homem, e nesse período não pode fazer nada se tiver alguma obrigação com santo. Por outro lado, os homens não podem participar da dança e da corte, com exceção do rei, dos vassalos e do porta-estandarte.

O Estrela Brilhante tem 150 componentes, todos da própria comunidade do Sítio Histórico de Igarassu, a maioria descendente da nova matriarca e rainha negra, dona Olga. São filhos, netos, primos e vizinhos envolvidos na brincadeira do maracatu. A integrante mais antiga é mesmo dona Olga, que na experiência dos seus 73 anos já colocou dez filhos no mundo e sentiu a perda de seis deles. Hoje, a rainha é sua filha-neta e o rei, um dos integrantes da comunidade.

Desse grupo, 60 são músicos formados na comunidade, e com a perspectiva de aumentar o número de batuqueiros para este Carnaval. A expectativa é resultado do Ponto de Cultura Estrela para Todos, criado ano passado na sede do Maracatu. O espaço já conta com aulas de percussão e dança, e ainda virá a ter oficinas de costura e confecção de instrumentos. O objetivo é fortalecer a cultura local e das regiões próximas, resgatando outras expressões artísticas existentes no município e proporcionando ainda a geração de renda na comunidade.

O grupo gravou seu primeiro CD em 2003, intitulado Estrela Brilhante de Igarassu, 180 Anos. O trabalho reuniu apresentações nos polos de cultura das prefeituras de Igarassu, Olinda e Recife e de fora do Estado. E ainda a primeira viagem internacional, à cidade portuguesa de Viana do Castelo. Outra conquista foi o Prêmio Humberto Maracanã, que possibilitou a segunda edição do CD, no início de 2009, e o reconhecimento como Ponto de Cultura – o que permite o acesso a recursos do Ministério da Cultura para o custeio de ações na comunidade voltadas à inclusão social e à geração de oportunidades por meio da produção artística. A grande conquista veio no fim do ano passado, quando receberam o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.

Se depender da família Santana, o Maracatu Estrela Brilhante vai continuar sua batalha para manter viva essa tradição secular, jogando para a frente, passando seus conhecimentos e histórias para outras comunidades e as futuras gerações, como um dia fizeram seus antepassados.