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Os dramas da estação das chuvas

“Inverno”, para quem vive no Norte e Nordeste, é a estação das chuvas entre o verão e o outono. O deste ano deixou sem casa 380 mil pessoas, que esperam a água baixar para retornar às áreas de risco

Benonias Cardoso

Francisca e seus dois filhos acordaram submersos

Era madrugada de 4 de maio quando a dona de casa Gessé Alves de Araújo, de 55 anos, teve de deixar todos os seus pertences para trás. Experiente em enfrentar tempos de chuva, dona Gessé não esconde a tristeza ao lembrar dos danos causados pelas águas, que não lhe deram tempo de salvar o que levou mais de um ano para reconstruir junto com mais 14 pessoas, entre filhos, genros e netos, que fazem parte de sua família. “Só deu para pegar meus netos. Foi o filme se repetindo. Em menos de três horas a água subiu e cobriu tudo”, relata a dona de casa, que já enfrentou três enchentes. Nesta, perdeu tudo. Histórias como essa se multiplicam pelo abrigo improvisado no Ginásio Poliesportivo Pato Preto, zona norte de Teresina. E espalham-se pela cidade, pelo estado e pelo país. Todas marcadas pela incerteza se um dia haverá um lugar seguro para viver.

O Piauí é o terceiro estado na Região Nordeste com o maior número de cidades atingidas pelas enchentes: 41. O Maranhão aparece no topo, com 95 municípios afetados, seguido pelo Ceará, com 81. Conforme dados da Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec), foram 254.340 as pessoas desalojadas e 123.510 desabrigadas em 407 municípios de 13 estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Acre, Amazonas, Pará e Santa Catarina. Desabrigados são os que perderam sua moradia e estão em algum abrigo público; desalojados são os que tiveram de deixar sua casa temporariamente para ir à de algum parente ou amigo.

Em maio, choveu nas Regiões Norte e Nordeste três vezes mais que a média para o mês. No Piauí, foram 317,4 milímetros, 190% a mais que o esperado. No trimestre março-abril-maio foram 1.052 milímetros, quase o dobro da média histórica do período. Em Teresina, o Rio Poti subiu a 14,5 metros, maior vazão dos últimos 36 anos.

Em menos de uma hora a casa da costureira Francisca Portela de Sousa, de 42 anos, estava submersa. “Acordamos com a água molhando a cama e, quando conseguimos tirar as crianças e a geladeira, já estava na cintura”, contou. Ela e sua família estão abrigadas no Ginásio Cabeça Branca com mais 18 famílias. Seu maior temor é a saúde dos filhos, principalmente Francilene, de 21 anos e grávida de dois meses. “Um dia depois que a gente soube do netinho que vem, perdemos a nossa casinha. É duro. Mas fazer o quê? Agora é esperar as coisas melhorarem”, disse Francisca.

Benonias CardosoAs irmãs
As irmãs Cecília e Lucinda voltaram para reconstruir o que restou de sua casa

Kit-barracão

Em todo o país, a Sedec já enviou ajuda humanitária na forma de material de limpeza, kits de abrigamento e cestas de alimentos. No Maranhão, que tem uma das situações mais críticas do Nordeste, mais de 120 mil pessoas tiveram de sair de casa. Rios inundaram comunidades e deixaram famílias com suas roças, principalmente de arroz e mandioca, debaixo d’água. A perda chegou a 90% da produção, informou a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão.

As águas começaram a dar trégua em maio. Para reconstruir a vida, os atingidos esperam por uma ação ágil do poder público. Como diz a piauiense Giselda Nunes da Silva, 33 anos, agora é “só arribar a cabeça e olhar para a vida”.

A porta de madeira aberta e o que restou dos móveis no terreiro em frente ao casebre, no loteamento Mocambinho, zona norte de Teresina, são sinal de casa reocupada. A aposentada Cecília Caetana Melo Silva, de 65 anos, enfrentou a terceira enchente de sua vida, desde que saiu de Codó (MA). Depois de três semanas em um abrigo público, ela e sua irmã Lucinda, 63 anos, retornaram para o que restou da casa onde vivem há dez anos e aparenta não ter mais condições: “Temos que lavar, remendar as paredes, não temos para onde ir. Ficar em abrigo é ruim. Mesmo a gente tendo uma casa simples toda se desmanchando, é nossa”, justifica Cecília.

A prefeitura distribui kits para os moradores reconstruírem as moradias na mesma área de risco e com o mesmo material: barro, taipa e madeira. A casa das irmãs Cecília e Lucinda é escorada por um tronco. Dentro, há restos de móveis e roupas amontoados. Para elas, o atendimento emergencial oferecido não resolverá o problema. As aposentadas decidiram não aceitar o kit e superam a pouca resistência física refazendo a casa com o barro que sobrou das águas que baixaram. “Não quis aceitar. Sei que não vou ter a segurança que preciso. Então, se for para ser assim, prefiro eu mesma catar o barro e terminar de ajeitar minha casa”, diz Cecília. “Levanta, cai, cai, levanta. Prometem casa, mas estamos há três anos nessa agonia e até agora nada. Não queremos barro e taipa, não”, completa Lucinda.

Graça Amorim, secretária municipal do Trabalho, da Cidadania e de Assistência Social, admite que a distribuição dos kits é apenas emergencial, enquanto aguarda recursos federais para construção de residências em áreas mais seguras. “É necessário fazer isso nesse momento de atendimento emergencial, e é isso que a prefeitura pode fazer”, argumentou. Segundo ela, todas as secretarias do município estão trabalhando na elaboração de projetos para que a União libere recursos o mais rapidamente possível.

A espera por um lugar seguro para passar os “invernos” talvez demore mais do que se imagina. A burocratização excessiva no repasse de verbas federais já fez o Piauí aguardar, pelo menos, três anos pela ajuda financeira. Dos R$ 300 milhões necessários para recuperar os estragos das enchentes de 2008, R$ 28 milhões foram liberados agora em maio.

O governo federal editou no dia 21 de maio medida provisória que garante recursos de R$ 880 milhões aos estados atingidos pelas chuvas. O BNDES emprestará R$ 300 milhões para recuperação de estradas. Até chegarem os recursos para reerguer cada casa, as famílias afetadas pelas enchentes contam com a ajuda de pessoas que, simplesmente, oferecem o que podem. Foi o que aconteceu com as irmãs Cecília e Lucinda, que receberam de “uma pessoa que chegou e deu” as telhas que lhes garantirão o teto, desde que, é claro, haja paredes que as sustentem.