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Os apuros das penélopes

Elas vivem da motocicleta. Passam o dia expostas aos riscos de acidentes, assaltos e assédio. Mesmo mais lentas, porém mais cuidadosas e elegantes, elas chegam a ganhar melhor que os homens

paulo pepe

Thaís atende empresas que dão preferência às motogirls

Na obra mitológica de Homero, Penélope é a mulher de Ulisses, ou Odisseu, e aguarda pacientemente o retorno de seu amado da Guerra de Tróia. Depois de dez anos enfrentando monstros, tempestades e comendo o pão que os deuses amassaram para chegar em casa, o herói ainda tem de entrar em seu palácio disfarçado para não ser morto pelos pretendentes que estão na fila por Penélope. Tão disfarçado que nem ela o reconhece. Ulisses só a reconquista, em meio a muita carnificina para provar que ele é ele, ao mandar os inimigos para a casa de Hades, irmão de Zeus e Poseidon e zelador do mundo dos mortos. Nos antigos desenhos da TV, a patricinha Penélope Charmosa ora está em apuros nas garras do Tião Gavião e dos irmãos Bacalhau, ora está pisando fundo para se livrar das arapucas de Dick Vigarista e vencer uma corrida maluca.

Mas, nos tempos modernos das metrópoles brasileiras, são outras as penélopes que começam a ocupar espaço nas ruas. Nesse universo, têm de correr contra o relógio, driblar perigos, aventuras e vigaristas e cumprir uma odisséia para levar ao destino uma encomenda ou um passageiro: são as motogirls, ou motominas, a versão feminina dos destemidos motoboys. Elas nada têm de patricinhas, muito menos vocação para mulheres de Atenas. Mas como não perdem o charme, a delicadeza, e por serem mais cuidadosas no trânsito, começam a ter a preferência de empresas e clientes de motofretes.

Nas grandes cidades, os motoboys já são velhos conhecidos por ziguezaguear entre os carros, arriscando alguns retrovisores e a própria pele para salvar os que contam com a rapidez de seus serviços. O trabalho é duro, perigoso, e os homens ainda predominam. Mas capacetes cor-de-rosa despontam aqui e ali. Dos 50 milhões de veículos licenciados no Brasil, mais de 7 milhões são motocicletas. Nesse universo, 2,5 milhões usam o veículo para trabalhar e apenas 5% são mulheres, estima a Associação Brasileira de Motociclistas.

Thaís Marcelle Alves Clemente, de 28 anos, ensino médio completo, era assistente administrativa até perder o emprego, há quatro anos. Decidiu unir o útil ao agradável, fazendo do gosto que já tinha por andar de moto sua profissão. “Nunca fui assaltada nem sofri acidente, mas tenho medo. O que não posso é parar de trabalhar. Eu não passo do limite, sei o que faço no trânsito. O duro é não saber o que os outros fazem, por isso é importante a direção defensiva. Somos treinadas para isso.”

Ela trabalha na Penélope Express, agência de motofrete paulistana que abriu as portas em 2006 – não se sabe se inspirada no clássico de Homero ou de Hanna Barbera – com mão-de-obra exclusivamente feminina. O atual dono, Diogo Marques, não tardou a “flexibilizar” e hoje conta com 30 rapazes para os serviços do dia-a-dia e 11 moças para atender as empresas com contrato. “Elas geralmente andam mais devagar que os homens e muitos serviços exigem maior rapidez. Mas são mais delicadas, cuidadosas, educadas, conversam melhor. Nunca chegam esfarrapadas e sujas e é mais difícil sofrerem acidentes”, explica Diogo.

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Tudo em família

Gislene da Silva de Souza, de 33 anos, gaba-se de nunca ter quebrado um retrovisor, mas já passou por dois acidentes que renderam lesões na clavícula e no joelho. Quando Gislene começou, em Cotia, na Grande São Paulo, quase não havia mulheres na atividade. “Ainda são poucas, mas muito mais do que há nove anos”, avalia. “A gente até evita mostrar que é mulher porque é arriscado. Os motoboys são muito unidos para ajudar na hora que você precisa, mas há aqueles que se unem para a violência”, afirma a motogirl, que já foi roubada duas vezes. “Uma vez consegui minha moto de volta no mesmo dia. E só espalhar que sua moto foi roubada e falar como é o baú. O ladrão me cobrou R$ 500 de ‘resgate’.”

Gislene brinca que a profissão está no sangue, pois já entrou na Moto Souza amparada pela irmã e por outros três irmãos motoboys, um deles dono da empresa. “Até meu netinho adora quando a gente o coloca em cima da moto.” A irmã Geane, 35 anos, integra o QG da família há 12 e valoriza o trabalho: “Não fico presa e conheço um monte de gente. Os motoboys me conhecem e respeitam, acham engraçado mulher fazer entrega. Meu marido e minha filha mais nova pedem para eu mudar de ramo, mas não me vejo trabalhando em empresa fechada”.

Geane vê perigo por todos os lados, mas nunca levou tombo. “Minha irmã tira sarro e diz que sou devagar, mas não é isso. A gente é bem diferente, eu gosto de capacete e capa de chuva cor-de-rosa, a Gislene não.” A dificuldade de Geane é quando a moto quebra: “Aí, não tem jeito, tenho de esperar ajuda dos colegas”, ri.

As irmãs parecem enciumar o mercado: em vez dos R$ 5,50 por hora que as agências costumam pagar, tiram R$ 9, já que a empresa é da família. “Mesmo assim temos muito gasto com gasolina, óleo e tem de pagar o INSS para garantir a aposentadoria”, ensina. Thaís Clemente também não se queixa dos vencimentos. Fatura R$ 2.000 mensais, em média, pois, além de atender empresas por contrato, faz uns bicos no dia-a-dia. “Meu marido e meus três filhos ficam apreensivos, mas no final do mês esse trabalho paga as minhas contas.”

O presidente do Sindicato dos Motoentregadores de Curitiba, Tito Mori, confirma que as mulheres, apesar de serem minoria, têm a preferência das empresas, por isso a remuneração já é melhor. “Enquanto o homem consegue receber por volta de R$ 1.000 por mês, incluindo comissão, a mulher chega a R$ 1.300.” Difícil é contratar. São raras as mulheres dispostas a enfrentar as intempéries do tempo, do trânsito e da violência. Em Curitiba, elas não chegam a 50 em meio a 20 mil motofretistas.

“As mulheres engravidam, têm TPM, casam, não têm perfil para esse trabalho full time. Por outro lado, os homens bebem num dia e no outro faltam, não se preocupam com aparência e nem sempre são educados. Colocando na balança, elas são melhores, prestam um serviço diferenciado, e por isso recebem mais”, explica Constantino Marques, irmão de Diogo e primeiro dono da Penélope Express.

A informalidade é quase absoluta no setor e na maioria das cidades não há regulamentação da profissão, em geral é preciso ter veículo próprio, além de pagar o combustível, a manutenção e, caso aconteça algo com a entrega, arcar com a responsabilidade. O seguro é inviável, chega a custar quase a metade do valor do veículo. “Não compensa”, reclama Gislene de Souza.

Panela JR.Ana Paula
Ana Paula, de Fortaleza, parou quando engravidou de Cauã e agora quervoltar ao trabalho

Mala na garupa

Sobre duas rodas, elas não fazem apenas serviços de banco ou entregas de documentos. Em algumas regiões, no lugar do baú vai um passageiro. Viviane de Almeida Trindade, de 21 anos, é mototaxista em Presidente Prudente (SP). Diz ter sido a última opção e que sairá dela assim que conseguir um emprego razoável. Comparado com o das motominas, nesse trabalho a pressa é menor mas os riscos do trânsito, semelhantes. A ele se soma o assédio. “Se um cara começa com gracinha já falo logo que vou parar a moto e ele vai ter de descer. Uma vez, um falou que ia me dar R$ 10 para passar a mão em mim. Fiquei muito brava, parei e mandei o cara descer. Ele prometeu parar, e eu acabei fazendo a corrida”, conta. Também afirma ser comum levar pessoas bêbadas e drogadas. “É perigoso. Tem poucas mulheres, porque a maioria não tem coragem. E com razão.”

A corrida dentro da cidade sai de R$ 3 a R$ 8 e ela faz em média sete por dia. Quando conversou com a reportagem, tinha ganhado R$ 33, mas ficou com R$ 19, pois teve de pagar o combustível e o dono do ponto, que cobra R$ 8 diários. “Estou nessa porque preciso mesmo. No trânsito ninguém respeita ninguém. Já sofri dois acidentes e uma amiga foi assaltada duas vezes em uma semana, numa delas pelo próprio passageiro.”

Em Fortaleza, onde o serviço de mototáxi é bastante comum, Ana Paula Garcia, de 23 anos, subiu em sua moto para ganhar dinheiro. Cadastrou o veículo na prefeitura em 2005 e começou a percorrer Conjunto Ceará, Bonsucesso e Granja Portugal, na periferia, perto de onde mora – tem medo de encarar o centro da cidade. Mesmo assim chega a tirar R$ 1.200. “É muito bom, mas tem de trabalhar muito, das 8h às 20h. À noite eu não ia, é muito perigoso. Eu preferia ser motogirl porque mototáxi leva gente desconhecida e nunca se sabe o que podem fazer. Pedia a Deus todos os dias para voltar para casa.” Ana Paula ficou seis meses no trabalho, até engravidar. “Imagina andar de moto com aquele buchão! Não dá.” Ela quer voltar, mas falta convencer o marido. “Ele não quer que eu volte. Mas quero trabalhar, é bom ter dinheiro.”

Tão bom que a “penélope” Thaís quer montar sua própria empresa. “Não só com mulher, quero dar oportunidade para os homens também, apesar de serem menos prudentes.” Assim como Ana Paula, que foi chamada para ser garota-propaganda do Sindicato dos Mototaxistas de Fortaleza, Thaís é vaidosa. Antes de descer da moto sempre confere o visual no retrovisor. “Arrumo o cabelo e me preocupo com a aparência. Sou muito feminina, gosto de salto alto e nunca uso tênis. É comum motoboys mexerem comigo. Gritam ‘ô, lá em casa’, e daí pra baixo. Também já me mandaram pilotar fogão. Levo numa boa, para não arranjar confusão”, ensina, observando que essas grosserias não são exclusividade de motoboys, também vêm de taxistas, caminhoneiros e demais motoristas.

“Existe uma generalização dessa fama dos motoqueiros e principalmente dos motoboys. Mas a imprudência no trânsito é geral. As pessoas têm de perceber que precisam de nós porque é um dos serviços mais baratos e rápidos que existem.” E lembra o compositor Lenine: “Motoqueiro, caminhão, pedestre, carro importado, carro nacional. Todo mundo tem direito à vida, todo mundo tem direito igual”.

Colaborou Viviane Claudino

Risco constante
Acontecem por ano no Brasil 135 mil acidentes envolvendo motocicletas e mais de 3.000 acabam em morte. De acordo com Ricardo Xavier, diretor da Líder, que administra o consórcio de seguradoras participantes do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (Dpvat), essa exposição maior aos riscos provocou aumento de 38,25% no valor do Dpvat para motocicletas este ano. O seguro obrigatório deve ser pago por todos os proprietários de veículos. Serve para indenizar casos de morte ou invalidez e despesas de assistência médica e suplementares decorrentes de acidentes. Não há cobertura de danos materiais. Em caso de acidente, a vítima ou seu representante legal deve reunir documentos e provas e procurar uma seguradora associada mais próxima. Encontre a relação dessas companhias e mais informações em www.dpvatseguro.com.br.