Onde vive o sertão

Cordisburgo (MG) preserva o universo de Guimarães Rosa entre o real e o imaginário

A velha Remington Rand usada por Rosa em seu escritório no Rio de Janeiro repousa sobre a mesa do Museu Casa de Guimarães Rosa (foto: Ronaldo Alves)

Brasinha tentou de todo jeito convencer Stamar a transformar seu elefante em boi ou cavalo – tinha mais a ver com aquela terra de vaqueiros. Até ouvir o argumento definitivo. O sertão não está em todo lugar? Pode estar na Índia também. Então, o elefante que Stamar escolheu por ser “grandão, bonito” está lá na entrada da cidade. E descendo a rua logo se percebe que o lugar pertence mesmo a um universo – literário e real – diferente, em uma cidade pequena do interior de Minas Gerais onde, quando em vez, um trem de carga apita ao longe, mas parece bem perto.

O mestre de obras Stamar de Azevedo Júnior, 52 anos, desde os 14 na cidade, é o dono do elefante. Seria sua casa, mas deve virar pousada. A obra já dura dois anos e meio, e ele tem esperança de concluí-la ainda este ano.

Cordisburgo Brasinha 2011 (foto: Ronaldo Alves)

Brasinha: “Não sou acadêmico, sou só um sertanejo, como diria o Riobaldo”

Brasinha é José Osvaldo dos Santos: não parava quieto no banco escolar e um colega disse que parecia ter “uma brasa queimando a bunda”. Com o tempo, virou Brasinha, e continua irrequieto, a pesquisar personagens, histórias, lugares. “Não sou um acadêmico, sou só um sertanejo, como diria o Riobaldo.”

E o lugar é Cordisburgo (que significa cidade de coração), fundada em 1864 e emancipada em 1938. Nove mil habitantes, duas ruas mais movimentadas, quatro escolas, um hospital municipal, uma agência bancária e duas lan houses. Em julho, o muito calor do dia não basta para afastar o muito frio da noite.

Ali, a um tirinho da estação de trem, ainda de passageiros, um menino via passar os bois, ouvia casos, acompanhava o movimento, os loucos que eram levados para Barbacena. Menino diferente, o Joãozito. Estudava escondido em vez de fugir para brincar. O pai dele, Florduardo, seu Fulô, convocou um garoto da vizinhança, o Juca, para ver se o filho largava os livros. Tropeiros, vaqueiros enriqueciam-me a imaginação.

Hoje com 59 anos, o jovem Brasinha conheceu um já idoso Juca Bananeira, que tinha uma barraca em frente à estação (morreu em 1998, aos 104). “Era um meninão, um velho que fazia gaiolas, brincava com as crianças”, lembra, encantado quando Juca disse: “Eu tô dentro de Sagarana”. Era personagem do conto “Burrinho Pedrês”.

Brasinha foi vendo dentro daquela ficção muita coisa real. “Ele fez uma leitura da alma do sertão. Eu falo que ele escreveu o que a gente pensa, mas não dá conta de falar”, acrescenta o dono de um empório com tudo o que se possa imaginar – e, no meio disso tudo, um exemplar do conto “A Hora e Vez de Augusto Matraga” em holandês: “Het Uur em Ogenblik van Augusto Matraga”.

“Bobajadas”

Cordisburgo Semana Roseana 2011 (foto: Ronaldo Alves)

Todos os anos um bando de fascinados vai a Cordisburgo para a Semana Roseana: cantos e contos durante a caminhada

Lançado em 1946, Sagarana foi o livro de estreia de Joãozito, ou João Guimarães Rosa, então com 38 anos – o livro de poe­mas Magma é de 1936, mas foi publicado apenas em 1997. Seu único romance, Grande Sertão: Veredas, é de 1956, mas nasceu quatro anos antes, quando o escritor, médico e diplomata viajou com um grupo de vaqueiros conduzindo bois ao longo de 240 quilômetros, durante dez dias. Um dos boiadeiros, João Henrique Ribeiro, o Zito, disse a ele: “Essas bobajadas que você está anotando, se você resolver escrever um dia, vai ficar bom”. Ele disse também que “esse homem (Rosa) tem algum encantamento”, por fascinar tanta gente durante tanto tempo.

Todos os anos, um bando de fascinados vai a Cordisburgo para rosear. Durante uma semana, participam de palestras, serestas, exposições, shows, oficinas, caminhadas – a chamada Semana Roseana, que teve sua 23ª edição em julho. “É uma semana dedicada ao estudo e à conservação da obra do imortal Guimarães Rosa, para amarmos cada vez mais essa obra formidável”, define o presidente da Academia Cordisburguense de Letras, Raimundo Alves, advogado, professor na vizinha Araçaí e cronista. “Eu queria ser poeta, mas não dei conta”, brinca.

Boa parte dos roseanos é de São Paulo. Há sete anos, uma confraria se reúne todas as semanas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na USP, para ler textos de Rosa. Sem pretensões acadêmicas, apenas um encontro de amigos para ler e trocar ideias. Além, claro, de tomar cachaça e comer biscoito de polvilho.

A casa onde ficava a vendinha de secos e molhados de seu Fulô e Joãozito é desde 1974 o Museu Casa Guimarães Rosa, pertencente ao governo mineiro. Há quase 20 anos começou a ser formada a Associação dos Amigos do Museu. “A comunidade começa a se apropriar do espaço”, diz Ronaldo Alves de Oliveira, diretor da casa, que começou a ler Rosa no ginásio e recomenda Sagarana aos iniciantes.

Durante a Semana Roseana, Ronaldo anunciou um plano de revitalização do museu visando a uma nova exposição, de longa duração, o projeto Memória Viva do Sertão, e um inventário de toda a área descrita por Guimarães Rosa, até o extremo norte de Minas Gerais. Um “museu de território”, define. Em 2010, o local foi visitado por 23 mil pessoas, e a expectativa é de que o número aumente este ano.

Para Ronaldo, a virada definitiva veio com a criação, em 1995, do Grupo Miguilim, com jovens contadores de histórias – ideia de Calina Guimarães, prima do escritor. “Ela dizia que o grande objetivo do projeto é passar a adolescência de forma saudável”, lembra Eliza Almeida, que dirige os Miguilins junto com Dôra Guimarães. Incansáveis, as duas foram assumindo o projeto à medida que Calina se afastava, por motivos de saúde. “Esses meninos são os arautos do Guimarães Rosa, são os anjos dele”, diz Brasinha.

Gerações de Miguilins

Cordisburgo Stênyo 2011 (foto: Ronaldo Alves)

Para o jovem “miguilim” Stênyo, morar em Cordisburgo é inspirador (foto: Ronaldo Alves)

Os Miguilins estão na sétima geração. Eles começam entre os 9 e 10 anos e só podem ir até os 18. Levam pelo menos dois anos para narrar histórias. Acompanham visitantes pelo museu, onde fazem estágio. Um pedaço desse trabalho pode ser visto por meio da recém-criada visita virtual (www.eravirtual.org/rosa_br/).

O advogado e acadêmico José Maria Gonçalves, o Nenzito, é da primeira geração. Agora, está no grupo Caminhos do Sertão, que organiza as caminhadas ecoliterárias. “Decorar é a última coisa. Tem de viajar no sentimento”, conta Nenzito, que declamava poesia na escola. Não por acaso, seu patrono na academia é Manuel Bandeira.

Stênyo Félix de Azevedo Silva, 16 anos, está no Miguilim desde os 11, mas passou a se apresentar há apenas dois. Só tem mais dois pela frente. Vai à escola de manhã e faz curso técnico à noite, em Sete Lagoas, principal município da região. Sua explicação para virar Miguilim é singela: “Morar em Cordisburgo já é inspirador”, diz o garoto que gosta de pescar, de ir à lan house, de futebol e música.

Ele possivelmente seguirá o caminho de tantos outros meninos e meninas, se quiser continuar os estudos e arrumar trabalho. A economia de Cordisburgo baseia-se, principalmente, na pecuária leiteira e no serviço público. De indústria, restaram as chaminés de uma antiga cerâmica, perto do zoológico de pedra, com esculturas de animais pré-históricos feitas por Stamar – aquele do elefante.

Por isso, a renovação tem de ser constante. Dos quatro “veteranos” da turma de Eliza, por exemplo, dois estão de saída. Uma Miguilim vai cursar Engenharia Civil e outra arrumou emprego em Sete Lagoas.

Também se busca uma aproximação entre o mundo acadêmico e o universo descrito por Guimarães Rosa. A cantora popular Maria Clara da Silva, a Clarinha, personagem da cidade, brinca: “Ele não gostava muito de academia, ciência, essas coisas. Usava nós, os capiau”.

A partir da vivência de gari, ela criou uma usina de reciclagem de lixo. Também criou um grupo de teatro. Durante a Semana Roseana, apresentou-se na posse de um novo membro da academia – entrou dançando e cantando uma música da dupla João Mineiro e Marciano: Meu pai aprendeu seguindo/ Meu avô pelos sertões/ E hoje eu sigo os mesmos passos / Porque sou pedaço de três gerações.

A prima Enny Guimarães de Paula conta, em livro, que o escritor dizia ter pressa para trabalhar e queria se dedicar “ao melhoramento da nossa língua”. O “pouco tempo” se devia ao fato de quatro parentes terem morrido aos 58 anos, o que atormentava Rosa. “É preciso criar palavras novas, inventar palavras que tenham força significativa, que expressem bem as ideias”, afirmou. E por algum pressentimento, ele adiou por quatro anos a posse na Academia Brasileira de Letras.

Morreu aos 59. Logo depois de tomar posse. E do coração, o que remete ao nome da cidade. Nos últimos tempos, já não podia comer o tutu com linguiça que tanto apreciava. “Penso que essa obsessão, essa cisma de morrer aos 58, foi que o matou aos 59”, escreveu a prima Enny. Em 1968, um ano depois da morte de Joãozito, a mãe dele, dona Francisca, Chiquinha, lembrava do filho “amoroso” e oferecia uma explicação. “Sabe? Às vezes eu penso que por isso ele morreu tão moço. Era comoção demais em tudo.”


Caminhando e cantando com Guimarães Rosa

Cordisburgo Di Souza e Fábio (foto: Ronaldo Alves)

Di Souza (centro) e Fábio (à direita): duas horas de canto e prosa com o grupo Caminhos do Sertão (Foto: Ronaldo Alves)

A concentração começa às 7 horas, a caminhada só se inicia depois das 9, em uma fazenda a cinco quilômetros da cidade. Contadores e um violeiro lideram o grupo, formado por mais de 100 pessoas, que vão andar três quilômetros enquanto ouvem canções e o conto “Conversa de Bois”, do livro Sagarana. Nele, Manuel Timborna diz que pode contar uma história, e o narrador replica a história.

Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco…

Os contadores, do grupo Caminhos do Sertão, fazem várias paradas e vão narrando trechos. O violeiro toca.

A área integra o Monumento Natural Estadual Peter Lund, dinamarquês que durante anos, a partir de 1834, pesquisou a Gruta do Maquiné, ponto final da jornada. Trecho de cerrado, cerradão, mata seca, mata atlântica – a cultura do eucalipto aumenta na região e ameaça o cerrado e o sertão de Rosa. Mas há muita riqueza de flora e fauna – animais como onça, paca, capivara, raposa, veado, quati e seriema ainda circulam por ali.

É ruim viver perto dos homens… As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior…

Fábio Barbosa é um dos contadores. Vira gente, vira boi. Ex-Miguilim, tem 31 anos. “Você sempre descobre uma forma nova de dizer uma frase. Decorar é o de menos”, conta. Ele teve dificuldade para passar a outros autores. “Demorei a me desprender de Guimarães Rosa.” Gosta dos clássicos: Machado de Assis, Erico Verissimo, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade. “E recentemente descobri o Tchecov.” E escreve também? “Prefiro dizer que não”, responde, dando risada.

O cantador é Di Souza. O cordisburguense Elvis Carlos de Souza, 31 anos, acha que falta espaço para a música de raiz. “Acredito que é mais em função da mídia. Tudo começou com a música caipira. Aí veio a música sertaneja, depois o sertanejo romântico, pop, universitário. Daqui a pouco vem o funk sertanejo”, ironiza.

Na beira do Maquiné, após duras horas de canto e prosa, termina a caminhada. Brasinha agradece à tropa: “O sertão é muito duro, mas nos ensina toda hora”.

Dez dias, 240 km e um clássico

Guimarães Rosa (foto: © Arquivo O Cruzeiro/Diários Associados)

“Nessa travessia, Joãozito foi anotando a fala dos peões e toda a essência do que ouvia e via, em sua inseparável cadernetinha com lápis apontados dos dois lados, que trazia dependurados no pescoço.” Assim Enny Guimarães de Paula, prima do escritor, descreveu a viagem de Guimarães Rosa (foto) pelo sertão mineiro, de 19 a 28 de maio de 1952.

Foram 240 quilômetros conduzindo uma boiada. Nos primeiros dias, devido à dificuldade maior em controlar os bichos, havia 18 boiadeiros, que depois passaram para oito. A todos, ele perguntava tudo o tempo todo, cada detalhe. O que renderia um resmungo do mais conhecido dos boiadeiros do universo roseano, Manuel Nardi, o Manuelzão, que morreu em 1997 (também em maio), aos 92 anos – ele também tem um evento próprio, a Festa do Manuelzão, em Andrequicé.

Conta Brasinha, que conheceu Manuelzão: a certa altura, Guimarães Rosa perguntou sobre determinada fruta. Manuelzão disse o que era. Aí o escritor replicou se aquilo se comia, o boiadeiro disse que não. Muitos anos depois, ele disse a Brasinha: “Devia falar que come, assim ele morre e para de me perguntar as coisas”.

Falou da boca pra fora, conforme se vê nos versos de Zito: Manoezão tá contente/ Co a viajem que fazia/ Todo que passava/ Dotor João Zito escrevia.