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Ódio separatista

Para o governo de Evo Morales, os preconceitos de classe e de raça são tão desafiadores quanto negociar com a elite para poder levar adiante as mudanças estruturais que propõe aos bolivianos

Leonardo Severo

Maria Luiza: “Há camponeses e indígenas famintos que têm de suportar ver os próprios filhos ser contratados para levantar a bandeira da autonomia pelos ricos”

“Evo, raça maldita!”, “Narco-comunista”, “Evo vai morrer em Santa Cruz”. Eis algumas das “saudações” estampadas nos muros de Santa Cruz de la Sierra pelos que ambicionam “derrubar o índio”, com as quais a elite rica, branca e pró-estadunidense se refere ao presidente Evo Morales. A principal acusação que ouvi das senhoras do “Cansei” cruzenho é a de que o primeiro presidente indígena da América quer “transformar o país numa grande aldeia”.

“A histeria golpista cresce na mesma proporção que o apoio ao processo revolucionário, fruto dos investimentos nas áreas sociais, da democratização do Estado e do acesso à terra”, explica Osvaldo Peredo, parlamentar do Movimento Ao Socialismo (MAS), partido de Evo. Peredo sofreu seis atentados nos últimos dois anos, até com dinamite e granadas.

O apoio popular às propostas do governo Evo é visível nas ruas e comprovado por observadores internacionais e pela própria Organização dos Estados Americanos (OEA), que atestaram a legitimidade do referendo revogatório de 10 de agosto. Na ocasião, o mandato de Evo foi ratificado por 67% dos eleitores, em 95 das 112 províncias do país. Nos departamentos que compõem a chamada Meia Lua – Beni, Pando e Tarija, além de Santa Cruz, onde a oposição é mais forte –, a reação avaliou ter chegado a hora do acerto de contas.

“Usando como fachada a bandeira da autonomia, esses governos locais do oriente boliviano arregimentaram correligionários e mercenários para tomar as instituições públicas”, denuncia Hugo Salvatierra, ex-ministro e dirigente do MAS. Salvatierra lembra que, entre outras “reivindicações”, exigiam do governo federal a “restituição” do Imposto Direto sobre os Hidrocarbonetos (IDH), hoje repassado aos municípios e utilizado para a Renda Dignidade, que garante a aposentadoria aos idosos; que não fosse votada a nova Constituição Política do Estado, e que os “estatutos autonômicos” das regiões se sobrepusessem à Carta. “O pano de fundo é óbvio: a manutenção em nível local dos privilégios que perderam nacionalmente, tentando impor ao país o seu modelo de ‘democracia’”, afirma a delegada presidencial Gabriela Montaño, cuja sede em Santa Cruz foi tomada por vândalos.

A gritaria contra a Nova Constituição, que só pode ser aplicada após consulta popular, busca descarrilar o trem das mudanças. Entre seus artigos, ela determina ao Estado “a direção integral do desenvolvimento econômico e seus processos de planificação”, e aprofunda a reforma agrária; garante o acesso da população aos serviços públicos essenciais, impedindo a sua privatização; subordina a propriedade privada à função social e ao interesse coletivo.

A nacionalização dos hidrocarbonetos (petróleo, gás e minérios) significou a retomada da principal riqueza nacional e a inversão da lógica que remunerava as transnacionais com 82% dos recursos, repassando apenas 18% ao Estado. Com Evo, a Bolívia fica com 82% para investir no seu desenvolvimento e o capital estrangeiro, com 18%. “A nacionalização fez com que o superávit da nossa balança comercial saltasse de US$ 1,5 bilhão para US$ 7 bilhões anuais, havendo recursos para investir no desenvolvimento, na produção e nos programas sociais”, diz Celinda Sosa, representante do governo federal no departamento de Tarija. Isso, de acordo com analistas, tem permitido ao país avançar no combate às desigualdades ancestrais. A previsão é de que em poucos meses a Unesco reconheça a Bolívia como o terceiro país americano a erradicar o analfabetismo, depois de Cuba e Venezuela.

Levantamentos parciais indicam que elementos organizados e armados pelos governos da Meia Lua – apoiados pela Embaixada dos EUA – provocaram em agosto perdas econômicas superiores a US$ 110 milhões, além de levar o país à beira da guerra civil, comprometendo temporariamente os avanços na reforma agrária e na política indigenista. Retomados pelo governo Evo, muitos dos prédios e escritórios terão de ser inteiramente reconstruídos e reequipados, com prejuízo debitado na conta dos governos locais, que tentaram se apropriar ilegalmente desses bens.

O embaixador estadunidense Philip Goldberg foi considerado persona non grata e expulso do país por ter comprovadamente se envolvido na conspiração. Há documentos e filmagens de suas reuniões com governadores, empresários e donos de empresas de comunicação. Goldberg também tem no currículo militância na CIA e no processo separatista de Kosovo.

Leonardo Severopreconceito
A sede da Coordenadoria de Povos Étnicos de Santa Cruz foi destruída. As aulas tiveram de ser suspensas por cinco dias

Sabotagem econômica

Pelos danos à infra-estrutura petroleira e seus impactos negativos no contrato de exportação para o Brasil, só a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) perdeu US$ 100 milhões; o Serviço de Impostos Nacionais (SIN), US$ 9,2 milhões; a Aduana deixou de arrecadar US$ 1,8 milhão, e o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra), US$ 500 mil. No Inra de Santa Cruz, informações roubadas e documentos queimados continham análises sobre a concentração de terras. Os estragos exigirão novos estudos sobre a função econômico-social das propriedades e retardarão o processo de redistribuição em até dois anos.

Ações classificadas de terroristas pelo governo explodiram uma válvula do gasoduto Yacuba-Rio Grande, obrigando o país a reduzir em 10% a exportação de hidrocarbonetos. O ataque à unidade de gás de Rio Grande e à de compressão em Yacuba desabasteceram o mercado interno e impediram o envio de gás à Argentina. Bandos depredaram a sede da empresa telefônica Entel, recém-nacionalizada, roubaram cartões, computadores e móveis. A sede da Coordenadoria de Povos Étnicos de Santa Cruz (Cpesc) foi destruída e saqueada. As aulas tiveram de ser suspensas por cinco dias na cidade.

O massacre ocorrido em El Porvenir, em Pando, onde cerca de 20 camponeses foram mortos – e dezenas ainda se encontram desaparecidos – a mando do governador Leopoldo Fernandez, preso imediatamente, demonstra até onde o fascismo está disposto a ir. A fotografia da suástica nazista ostentada no carro da União Juvenil Cruzenhista fala por si, assim como as imagens dos castigos corporais e as humilhações impostas a indígenas na cidade de Sucre.

No departamento de Santa Cruz, Evo venceu em 8 das 15 províncias, dividindo opiniões, apesar dos meios de comunicação. A campanha midiática, segundo a delegada presidencial Gabriela Montaño, busca cristalizar o preconceito da elite. “A família Monastério é uma das que controlam a cadeia produtiva da carne em Santa Cruz, participa na gestão da prefeitura da capital e tem um canal de televisão nacional, a Rede Um”, relata. “Branko Mairinkovic, presidente do Comitê Cívico, tem investimentos na indústria alimentícia, em financeiras, no jornal diário Novo Dia e participa na rede PAT de televisão, também nacional, por meio de laranjas. Ele tomou terras do povo guarayo, na localidade de Laguna Corazón. No caso da rede nacional Unitel é a mesma coisa”, descreve Gabriela. “Ou seja, três das maiores redes nacionais têm vínculos diretos com famílias e grupos econômicos que dominam Santa Cruz.”

Não por acaso, um dos alvos centrais da ação fascista, o Canal 7, público, saiu do ar durante os ataques, para impedir que o país soubesse o que se passava no departamento. O cinegrafista Ernesto Rodriguez foi agredido e ameaçado. “Tentam nos calar porque defendemos que somos todos bolivianos, que a liberdade de comunicação e expressão é uma necessidade, e não propriedade de alguém”, afirmou.

A influência das grandes redes de comunicação na política e na opinião pública é grande. A comerciante Vitoria Montaño diz que “dá para ver na televisão que o problema é que Evo não crê em Deus, por isso não faz com que haja entendimento, só defende uma parte e para o Oriente nada”. Para o empresário Jesus Coimbra, “ao defender um sistema comunitário inaceitável, desgraçadamente o presidente vem aplicando uma política de confrontação, criando ódio entre as pessoas”. Milton Villalobos, que trabalha na construção de dutos de petróleo e gás, considera que “o fato é que somos distintos e os índios não querem reconhecer isso, ainda mais agora com esse presidente. Evo acha que pode mudar a história e fazer com que todos sejamos iguais”.

O taxista Raul Salzedo tem no carro o adesivo do “Sim à autonomia”, mas não é um opositor convicto. Sua família é beneficiária dos programas sociais do governo federal. A mãe passou a receber aposentadoria e os cinco filhos estudantes recebem o Juancito Pinto – auxílio pago como estímulo à freqüência escolar. “Não sei o que pensar. A minha mãe foi receber e não lhe pagaram e agora estão falando pela televisão que as crianças também vão ficar sem receber por culpa do Evo”, disse. O que a TV não contou foi que os pagamentos haviam sido impossibilitados no período pela ação de vândalos, que haviam assaltado instituições públicas.

O jornaleiro Félix Mina contesta os jornais dos quais tira seu sustento. “Antes os governos só pensavam nos ricos, e agora as mudanças deixaram de ser discurso e melhoram a vida dos mais pobres”, diz. A mesma opinião é compartilhada pela religiosa Maria Luiza Derroche: “Há camponeses e indígenas famintos, que, além de serem discriminados, têm de suportar ver os próprios filhos serem contratados para levantar a bandeira da autonomia pelos ricos”. Para o churrasqueiro Carlos Garcia Cijuentes, Evo vem “fazendo com que os recursos cheguem a quem mais necessita”. A brasileira Érica Cristina, fisioterapeuta capixaba que arrumou as malas para voltar ao país, viu ali um preconceito arraigado: “Piadinhas racistas contra os indígenas são constantes. A gente se sente mal”.

As declarações de uma líder direitista de Pando, afirmando ser o massacre de El Porvenir um “mal menor”, somado à prisão de um elemento da União Juvenil Cruzenhista que se encontrava no trajeto do presidente portando rifle de mira telescópica e farta munição, são exemplos do que os conservadores entendem como “negociação”.

Ao comparar a trajetória de Zvonko Matkovic, líder empresarial de Santa Cruz, ex-prefeito e ex-senador da direita, com o presidente boliviano Bautista Saavedra (1921-1925), o diplomata Alfredo Jordão de Camargo mostra que vem de longe a idéia do índio como “obstáculo ao progresso” e das supostas vantagens da sua extinção. “Matkovic e Saavedra diziam que os países que mais se desenvolveram foram os que eliminaram suas respectivas populações indígenas ou souberam lhes infligir derrotas definitivas, como os Estados Unidos. Na medida em que o bom índio seria o índio morto, não há a possibilidade de entendimento com os índios vivos”, conclui. Na Bolívia, porém, de acordo com o último censo, mais de 70% da população se reconhece como “indígena”, assim como o presidente Evo.