Ponto de Vista

O Senado e a República

Renan errou ao não licenciar-se de início, o que permitiria investigações sem constrangimento. Acabou dando pretexto para a oposição fechar o cerco contra Lula

Wilson Dias/ABr

A recente crise no Senado provocou várias reações na imprensa e na opinião pública, algumas procedentes e outras desprovidas de lucidez. Tudo começou com a informação de que o senador Renan Calheiros tinha uma filha fora do casamento e a sustentava com a ajuda de um lobista. Ter filhos fora do casamento não é fato incomum, tanto entre políticos quanto entre quaisquer outros grupos sociais. É um acidente do amor, ou dos hormônios. Pode ser também – quando o pai é homem rico ou conhecido – fruto de uma cilada. Tenha sido uma coisa ou outra, o assunto é de interesse restrito. A conduta privada de um homem público não interfere em seu desempenho político.

O fato de usar um lobista para o pagamento da mesada destinada à filha não chega a ser, em si mesmo, ilícito – desde que o dinheiro tenha sido do próprio senador. A ação de lobistas entre poderes públicos é conhecida, desde que o sistema se iniciou (como tantas outras coisas) em Washington, no saguão de um hotel, no século 19. Seria melhor que não houvesse tal intermediação, mas sempre existiu, desde que há governo no mundo.

Houve, sem embargo, acusações mais graves, que devem ser investigadas. Mas, por mais graves tenham sido, não eram suficientes para tentar, como tentou a oposição, transformar a questão em crise institucional. Houve, de parte a parte, erros e má-fé. Renan Calheiros errou ao não licenciar-se do cargo no início da crise, o que permitiria a investigação dos fatos sem o constrangimento de sua presença na chefia da Casa. Isso deu pretexto à oposição para fechar o cerco contra Lula.

Entre as reações insensatas, a mais grave é a sugestão de extinguir o Senado da República. Lembra a anedota famosa, do sujeito que flagra a mulher em ato de adultério no sofá e manda retirar o móvel da sala. O Senado é absolutamente necessário a uma união de estados em república federativa como a do Brasil. Os senadores representam os estados pelos quais foram eleitos. Como as bancadas são iguais (três senadores por unidade federativa), nele não há estados maiores nem menores. A Câmara dos Deputados, eleita pela votação proporcional, pode ser controlada pelas bancadas dos estados mais populosos e de maior poder econômico e comandar, assim, o governo federal. Dessa forma, o governo central passaria a dominar os estados menores e menos desenvolvidos, em benefício dos estados mais ricos. A extinção do Senado deixaria a União sob o comando direto das bancadas mais numerosas da Câmara.

A outra insensatez é a proposta de que deixe de existir o voto secreto. O voto secreto é uma conquista da democracia moderna, seja nas eleições, seja no Parlamento. Até 1930, no Brasil, o eleitor comum votava a descoberto, quase sempre na presença de seu patrão, e sempre diante das autoridades policiais. Um trabalhador jamais chegaria ao Parlamento e menos ainda ao Poder Executivo com o voto aberto. Além de constituir uma violência, e de só eleger patrões, o sistema permitia a fraude. As listas, com os nomes dos eleitores e de seus votos, eram substituídas por outras, falsas, elegendo sempre os candidatos das oligarquias governamentais. Só com a Revolução de 1930 foi instituído o voto secreto e, com ele, a eleição dos primeiros candidatos populares.

O voto secreto é a única garantia para que, nas casas legislativas, o parlamentar vote de acordo com a sua consciência, sem sofrer a pressão do Executivo, da mídia ou de grandes corporações. Podemos aceitar a votação aberta, quando estejam em causa os próprios parlamentares. Nessas situações, a pressão da opinião pública para conhecer o voto de cada deputado ou senador pode ser legítima. Como foi legítima a pressão da sociedade civil organizada para que a mídia se libertasse da coação do governo militar e desse voz à opinião pública para exigir o voto aberto, no Colégio Eleitoral, a fim de eleger Tancredo e acabar com as eleições indiretas no Brasil.

Enfim, é preciso ver as coisas sem o calor da paixão, se queremos continuar sob o regime democrático.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros desde 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 80. É colunista do Jornal do Brasil e articulista de diversas publicações