entrevista

O que esse baiano tem

Lázaro Ramos não se incomoda com gente cujo 
único atributo é a beleza 
ocupando espaço de gente 
talentosa. Para ele, sucesso 
é permanência: “É estar velho, 
olhar para trás e ver que seu trabalho teve coerência. O tempo se encarrega de peneirar”

Regina de Grammont

Luis Lázaro Sacramento Ramos, Lazinho para os íntimos, não tem muito a reclamar com a vida. Nascido em Salvador há 30 anos, desde os 10 está nos palcos. Um dos mais renomados artistas de sua geração, no teatro, na TV e no cinema, é carismático e talentoso. É cobiçado pelas mulheres, que se derretem pelo sorriso rasgado, pelo bom humor e pelo jeito de bom moço. E invejado pelos homens. Lázaro foi casado com a atriz Taís Araújo, sobre quem se limita a dizer que são amigos. Engajado e apaixonado pelo seu ofício, comemora os quatro anos de seu programa Espelho – um dos líderes de audiência do Canal Brasil e atração do Festival de Cinema e Televisão de Burkina Faso, na África –, dedica-se à filmagem do longa Amanhã Nunca Mais, de Tadeu Jungle, prepara-se para rodar nova temporada das séries Decameron e Ó Pai Ó, no segundo semestre de 2009, ensaia a estreia como diretor de cinema, escreve o roteiro de um filme, atua como produtor do Bando de Teatro do Olodum e ainda é “embaixador” da Unicef na luta contra o racismo dirigido às crianças. O comportamento discreto o afasta do estereótipo das celebridades do tipo Caras. Sua vida é seu trabalho, “não estou aí para vender revista”, simplifica.

Quando você se descobriu ator?

Aos 10 anos, na escola. A filha da diretora trabalhava na TV Itapuã e de vez em quando precisavam de uma criança esperta para fazer uma cena com o Papai Noel (risos), fazer um esquete, e lá ia eu. Profissionalmente foi no Bando de Teatro do Olodum, em 1994. Na verdade, nem foi no Bando. Como eu era muito jovem, disseram que eu tinha de ficar num grupo de adolescentes, chamado Parque São Bartolomeu. Mas só aguentei ensaiar dois dias porque achava tudo adolescente demais, os assuntos não tinham a ver com o que me interessava na época, aí pedi para ficar no Bando com a promessa de que me comportaria (risos). Entrei para fazer o espetáculo posterior ao Ó Pai Ó, que é o Bai Bai Pelô. É uma trilogia. O Essa Nossa Praia conta a história dos moradores do 
Pelourinho, o Ó Pai Ó, o conflito entre eles, e o Bai Bai Pelô, o que aconteceu com esses personagens depois da reforma do bairro.

Além de ser ator, você é técnico em patologia. Por que essa escolha?

A patologia aconteceu por causa do teatro. Meu pai queria que eu tivesse alguma formação que pudesse me encaixar na indústria petrolífera – ele era funcionário do Polo Petroquímico de Camaçari. Descobri que tinha uma escola que oferecia um curso gratuito de teatro, desde que o aluno se inscrevesse em outro. Tinha Desenho Industrial e Patologia Clínica. Como eu não sabia desenhar, fui para a patologia. Fiz o curso por causa do teatro e acabei exercendo a profissão por causa da vida, porque alguém tem de pagar as contas.

Esse trabalho o satisfazia?

Sim. Na infância, queria ser médico. Eu acompanhava minha tia e minha avó nas consultas e achava incrível como elas ficavam tranquilas quando o médico dizia: “Tudo vai dar certo”. Na época do vestibular pensei em prestar Bioquímica. Acabei não fazendo porque a carreira de ator começou a dar certo.

E deu para passar a viver de arte?

Não. Eu vim viver de arte há uns sete anos. No Bando, a maioria dos atores tem outra profissão além da atuação. O grupo tem umas 30 pessoas e o primeiro patrocínio está vindo agora, para o próximo espetáculo. Na maior parte da sua história, o Bando de Teatro do Olodum viveu de bilheteria, e bilheteria, para dividir entre 30, não dá nada! Hoje não consigo mais participar tão ativamente quanto gostaria. Dentro do Bando passei por todos os setores. Iluminação, produção, equipe de figurino, fazia de tudo um pouco. Agora trabalho mais nos bastidores.

Um ator negro com uma carreira meteórica, que fez a trajetória teatro, cinema e TV e logo virou protagonista, galã. A que você atribui essa aceitação, uma vez que não é comum ver negros nesses papéis?

É difícil avaliar porque ainda sou uma exceção. Você diz que minha carreira foi rápida, mas eu considero que foi no tempo que deveria. Porque tudo foi muito suado para conquistar, e se for contar oficialmente estou com 30 anos e faço isso há 20. É meteórica para o público, mas foi uma escalada. O Bando me deu oportunidade de exercitar uma diversidade gigante de personagens, o que, como ator, permitiu que eu nunca me sentisse limitado – e nunca deixei que barreiras chegassem a mim. Sou muito abusado. O fato de poder interpretar Sancho Pança, Zumbi dos Palmares ou o Puck, do Sonhos de uma Noite de Verão, fez com que meu exercício como ator sempre fosse pela diversidade. É claro que a cor da minha pele é meu símbolo – do qual me orgulho muito –,
mas minha construção de personagens não passa por isso. Eu me considero uma pessoa dedicada e talentosa, mas no meu caminho encontrei pessoas que me deram régua e compasso, como o Zebrinha, o coreógrafo do Bando, uma referência de responsabilidade profissional e política muito forte para mim. O João Falcão, que apostou em mim, em Wagner Moura, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão, quando a gente morava lá no Nordeste, metade em Pernambuco, metade na Bahia, nos deu a oportunidade de mostrar nosso talento no eixo Rio-São Paulo com o espetáculo A Máquina. O Jorge Furtado, que fez teste com 60 ou mais atores para O Homem Que Copiava, me colocou nesse personagem sem alterar uma linha do texto porque sou negro.

Seu sucesso e o desses atores que você citou abrem caminho para talentos de fora do eixo Rio-SP?

Ah, mas tem os dois lados da moeda. Na peça A Máquina há uma frase muito interessante: “Feliz a cidade que não consegue cumprir sua função, que é manter suas pessoas nela mesma”. Eu percebo que vários atores da minha geração ou posteriores saíram de Salvador, e de outros lugares, mas ao mesmo tempo minha expectativa é de que a produção cultural do local tenha visibilidade suficiente para manter esses artistas lá. Eu, Wagner e Vlad somos frutos de uma geração que foi do boom do teatro baiano dos anos 1980, 1990, que tinha A Bofetada, Os Cafajestes e tantos outros. Os profissionais da minha terra me estimularam a fazer teatro. Nunca tive pressa de ir para a TV ou para o cinema.

Ser galã incomoda?

Não me incomodo principalmente porque nenhuma imagem colou em mim ainda. Nem a do ator de cinema alternativo, nem do ator comediante, nem do ator galã. Meu desejo como artista é exatamente este: poder fazer vários personagens e vários estilos. Consigo me identificar com diversos públicos. Os negros se identificam, é claro, a classe popular também sente que a represento, mas não para por aí. Outro dia estava gravando na Praia Grande (SP) e uma menininha loirinha chegou, me abraçou com um carinho enorme e disse: “Você é meu ídolo”. Fico feliz em dialogar com todo mundo. Posso fazer o Foguinho (da novela Cobras & Lagartos), que é uma palhaçada, mas depois faço o Evilásio (de Duas Caras), que é mais sério, tem uma discussão social. Aos pouquinhos, os promotores de cultura estão começando a entender que o público deseja ver essa diversidade e essa inserção mais inteligente e menos estereotipada do artista negro está ganhando espaço.

Você já conquistou essa liberdade de escolher seus personagens?

Sempre escolhi meus trabalhos. Antes de fazer a primeira novela tinha sido chamado para outras, o dinheirinho seria uma beleza, mas neguei. É um leão por dia, porque aqui no Brasil não tem isso de planejamento de carreira. Eu procuro escolher os trabalhos e me violentar o mínimo possível. Às vezes você vai fazer um trabalho e pensa: “É só pelo aluguel, só pelo hambúrguer que estou fazendo isso” (risos).

Hoje, contratado da Rede Globo, você consegue manter essa independência?

Tenho uma liberdade de diálogo com os diretores que achei que não teria. É claro que nem sempre concordo com o que eles dizem nem eles comigo, mas, no geral, tenho sido bem-sucedido. Isso também é um reflexo do nosso tempo, não estamos mais na ditadura. Digo o que penso e a empresa sabe que isso é um valor. O mundo fala de diversidade. Quando a Dow Jones diz que quem quiser entrar no mercado financeiro vai ter como um dos critérios de avaliação a diversidade de ideias que promove em sua empresa, isso é um valor.

O mercado financeiro entendeu, mas a sociedade já chegou a essa compreensão?

A cada dia está entendendo e a tendência é essa. Quem diria, um dia, que o filme ganhador do Oscar seria legendado, sobre uma cultura completamente diferente da ocidental e falando de miséria? (Referência ao filme Quem Quer Ser um Milionário?, ambientado na Índia.) Acho que são pequenos sinais desse novo pensamento mundial que está chegando. A internet derrubou fronteiras, todo o mundo está conectado e temos de estar preparados para o que isso traz, para essa diversidade cultural e ideológica.

Você não teme que personagens como os do Ó Pai Ó, quase caricatos, reforcem estereótipos atribuídos aos negros?

A gente sofre uma carência tão grande de representatividade que, quando tem um produto, parece que é sua responsabilidade resolver tudo. O Ó Pai Ó é só uma minissérie. Outras deverão vir com outras abordagens, outro elenco. Não acho que a série reforce estereótipos –
apenas representa uma parcela da história do povo negro no Brasil. Minha esperança é que venha, um dia, uma minissérie sobre Zumbi dos Palmares e uma como Fresh Prince of Bel Air (série norte-americana dos anos 1990 que lançou o ator Will Smith ao estrelato), e outras que nem toquem no assunto negritude e sejam apenas a inserção do negro, em qualquer contexto.

A dramaturgia não está aí justamente para ser um escape da realidade?

Acredito que o público se interessa por aquilo que é verossímil. O que falta é coragem e oportunidade para experimentar. A renovação da dramaturgia depende da inserção, de observar o que acontece na rua e pode ser levado para a televisão. O público quer se enxergar, e eu batalho por isso.

Atuar como diretor está nos seus planos?

Sim. Tenho vários projetos. Estou captando recursos para montar um texto do João Bettencourt que pergunta se o poder modifica ou revela uma pessoa. Estou empurrando com a barriga um longa-metragem porque exige que eu pare e escreva. Já tenho um curta pronto e dirigi umas pílulas de incentivo à leitura para o Canal Futura chamadas Parabólicas, seis programas de dois minutos e meio cada um.

A invasão de modelos e big-brothers na dramaturgia incomoda?

Quem se estabelece, quem dura, quem fica mais tempo? Aquele que tem uma bagagem, uma história, uma preocupação com o estudo. O sucesso é a permanência. Vou me sentir um artista bem-sucedido quando estiver bem velho, olhar para trás e vir que meu trabalho teve coerência, foi perene. O tempo se encarrega de peneirar.
Mas tem muita gente talentosa que não consegue espaço porque foi tomado por pessoas que têm como principal atributo, senão o único, a beleza.

A grande arma, a grande solução é não esperar pelo espaço cedido, é produzir coisas. Hoje eu me organizo para produzir, e não para esperar convite de trabalho. Não gosto de ficar me queixando, falando dessa falta de espaço que, sim, é um fato. Quero partir para a ação, chamar pessoas que pensem como eu. Os interesses financeiros de quem produz cultura são esses, mas eu me sinto impelido a mostrar alternativas. O Espelho, por exemplo, é uma das maiores audiências do Canal Brasil e não tem truque de edição (risos). Em alguns programas eu praticamente não falo, porque as pessoas têm coisas muito interessantes a dizer.

Você consegue conciliar todas essas suas atividades profissionais?

Hoje consigo, mas no início era uma loucura. Felizmente tenho uma empresária e sócia, a Tânia Rocha, que segura minhas pontas. Além disso, trabalho com a mesma equipe há três anos, um pessoal muito bom, formado no Audiovisual da Cufa (Central Única das Favelas).

No início do ano você esteve em Washington para assistir à posse de Barack Obama. Como foi?

Para ser bem sincero, não deu para emocionar, não. Estava tão frio que, se eu chorasse, acho que meus olhos iam empedrar. Estava com o peso do equipamento nas costas, cheio de casacos, tinha de ser prático. Mas foi lindo ver a emoção das pessoas e vê-las se sentindo representadas. E foi bom porque eu fiz o caminho de uma pessoa comum. Saí de Nova York de trem, fui para Washington, peguei perrengue como todo mundo para encontrar espaço. Mas, mais do que a imagem do Obama com a família que consegui fazer, o que me impactou foi ouvir as pessoas: “Esse homem me representa, eu tenho esperança nele”, ouvi de negros e brancos. Elas estavam eufóricas, viam a câmera e vinham falar, queriam compartilhar a emoção. Quanto ao momento histórico, me senti no dia do discurso do Martin Luther King. Particularmente, o que me impressiona muito no Obama é a forma como ele lida com sua família, a maneira como se pronuncia nos discursos, com segurança, independentemente da sua cor… Ele disse uma frase maravilhosa: “Escutarei a todos, principalmente aqueles que discordam de mim”. Isso é frase de um líder.

Barack Obama é fruto das ações afirmativas. O Brasil é um terreno fértil para produzir um Obama?

O Brasil é um país de muitos talentos, o que temos de aprender é a potencializar isso. Como bom baiano, bom nordestino e bom brasileiro, sou muito otimista. Infelizmente, a gente não investe em educação como deveria. Acho lindo o presidente Lula dizer: “Vamos matar a fome do povo” , “Vamos inserir a diversidade no meu governo”. Mas ainda espero um líder que diga: “A educação vai ser prioridade”. É preciso corrigir o que foi feito na época da ditadura, quando se desprestigiou o professor, a escola pública. Vamos investir no ensino de base, é assim que se potencializam talentos, assim que se cria um Obama: priorizando o conhecimento.

Você é a favor ou contra as cotas para negros nas universidades?

A gente precisa potencializar talentos, e sou a favor de qualquer medida que sirva para isso, para promover a igualdade. Não acho a cota um mecanismo perfeito, tenho muitas críticas quanto à maneira de selecionar, mas também não fui capaz de encontrar outro mecanismo de rápido efeito que promova os mesmos resultados. Acima de tudo, fico muito feliz com essa discussão porque o debate não é sobre cotas, é sobre educação, o que deveria ser a prioridade de todo cidadão, não só do governo. Escolhi como projeto de vida, por um tempo pelo menos, a criação de bibliotecas em bairros carentes de Salvador. Tenho um projeto chamado Ler É Poder, pelo qual abri cinco bibliotecas com recursos próprios e com a doação de livros por parte de pessoas e empresas. Mas não adianta só abrir bibliotecas. Meu foco agora é promover a leitura.

Você acabou de ser eleito embaixador da Unicef na luta contra o racismo dirigido às crianças.

Educação e igualdade são teclas em que eu bato muito, e tudo o que faço acaba recebendo o reflexo disso. Minha militância passa pelo meu trabalho e meu comportamento, e acho que foi isso que a Unicef viu em mim. É um grande orgulho.

Você é supersticioso, religioso?

Acredito até em mapa astral, mas passo embaixo da escada. Eu sou baiano (risos). Frequento igreja aos domingos, vou ao culto de candomblé e recito mantra budista. Alguém vai me ouvir, com certeza! Claro que tenho um carinho especial pelo candomblé.

O assédio da imprensa é inevitável. O que incomoda mais: invasão ou especulação?

Hoje em dia nenhuma das coisas. O limite já foi estabelecido e consigo dialogar com a imprensa. Em um momento incomodou porque eu precisei demarcar o limite e deixar claro que minha vida pessoal não está aí para vender revista, mas hoje a relação é supertranquila. O público comum me trata muito bem. Não sei se é por causa do meu trabalho com o humor ou porque faço muitos personagens cômicos, bonzinhos e carentes, mas os mais velhos me tratam como neto, os jovens como um primo e as crianças como a Xuxa! Os adolescentes me adoram! Aliás, meu sonho é sair na capa da Capricho – acho que ia vender muito.

E, falando em assédio, você está solteiro?

Por que, está interessada?