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O poeta dos cataventos

Não se surpreenda se, caminhando por Porto Alegre numa noite nevoenta, ver na sombra que passa o vulto de Mário Quintana: deve ser ele sim, passeando para tentar recuperar o sono...

liane neves

No extremo sul do Brasil, quem tem a primeira palavra é o vento. Pois a criança recém-nascida, antes de balbuciar qualquer coisa, já ouve os seus assobios e uivos pelos invernos, seja à solta pelos descampados, seja quebrando esquinas no labirinto das cidades. O épico sul-riograndense do século 20, de Érico Veríssimo, chamou-se O Tempo e o Vento. Seu primeiro volume – O Continente – saiu em 1949. Fora precedido, em 1940, por um pequeno livro despretensioso, concluído em 1938, A Rua dos Cataventos, de Mário Quintana.

Era um estranho livro para o seu tempo. Em meio à moda da experimentação e do desalinho, destravada pela Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, o livro de Quintana tinha um insólito ar passadista. Era inteiramente composto por sonetos. Mas mesmo em forma de sonetos, esses poemas não tinham linguagem requintada, como os dos antigos parnasianos, nem esotérica, como a dos simbolistas de antanho.

Eram sonetos que falavam de coisas simples, do cotidiano, envoltas, é verdade, ora num ar de sonho, ora de pesadelo. Seus personagens preferidos eram as coisas miúdas da vida, como os velhos sapatos do poeta, que os punha no parapeito da janela para que sonhassem que eram barcos ancorados à beira de um açude… Ou, em meio às então contínuas guerras e ameaças de guerra na Europa, uma Fragata noturna e fantástica que navegava nas trevas, cheia de crianças mortas…

A trajetória pessoal e intelectual de Mário Quintana – cujo centenário de nascimento se celebra no dia 30 de julho – foi semelhante à de tantos intelectuais gaúchos que cresceram na primeira metade do século 20. Nasceu em 1906, em Alegrete, região da fronteira com o Uruguai e Argentina. Foi para Porto Alegre, onde se fixou.

Quinta e alguns de seus “Quintanares”

Soneto XXVII
Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,

Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados…
Depois, voltando ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!…

E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê…
Até os cegos, os entrevadinhos… E

Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cataventos!

Das utopias
Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não quere-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!

Da inquieta esperança
Bem sabes tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu… quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.

Ressalva
Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco por aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.

Biografia
Era um grande nome – ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua… E continuaram a pisar em cima dele.

Dos nossos males
A nós bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais…

 

Quintana fez-se jornalista e trabalhou em diversos periódicos gaúchos, sobretudo no Correio do Povo, onde manteve uma coluna fixa durante muito tempo, Do caderno H, com crônicas curtas, aforismos, pequenos poemas. Traduziu Balzac, Proust, Joseph Conrad, Virginia Woolf, Somerset Maugham e escreveu livros infantis, principalmente poemas, que foram se tornando mais e mais conhecidos por todo o Brasil, fazendo dele um dos poetas mais populares da língua portuguesa.

O poeta gostava de fazer caminhadas pelas ruas de Porto Alegre, acompanhado ou só. Assim, o visitante da capital gaúcha não se surpreenda se, numa noite nevoenta, pensar reconhecer na sombra que passa o vulto de Mário Quintana: deve ser ele sim, passeando para tentar recuperar o sono…

Para ler mais
As obras de Mário Quintana têm edições recentes e disponíveis nas livrarias, inclusive para compras pela internet. Os livros para adultos são publicados pela Editora Globo e os infantis, pela Global Editora. Eis alguns deles:

Para adultos: A Rua dos Cataventos (1940); Sapato Florido (1948); Aprendiz de Feiticeiro (1950); Espelho Mágico (1951); Apontamentos de História Sobrenatural (1976); A Vaca e o Hipogrifo (1977); Baú de Espantos (1986).

Para crianças: Sapo Amarelo, Sapato Furado, Lili Inventa o Mundo. Há também a Poesia completa (Nova Aguilar, 2005).