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O neorracismo na África do Sul

Os novos líderes do Movimento de Resistência Afrikaner afirmam que não são racistas. Apenas acreditam na pureza da raça branca e querem um país só para eles

SIPHIWE SIBEKO/Reuters

Chris Mahlangu, de 28 anos, mais um menor, de 15 anos, são acusados de matar, a golpes de barra de ferro e de machete, o fazendeiro Eugène Terre’Blanche, de 69 anos, em 3 de abril deste ano. Eugène Terre’Blanche era o líder do Afrikaner Weerstands Beweging (AWB) – Movimento de Resistência Afrikaner –, que reivindica um país independente exclusivo para os brancos da África do Sul. Sua morte, às vésperas do evento mais importante do esporte mundial, ameaçou provocar uma tempestade racial na África do Sul. Tal conjuntura levou o presidente do país, Jacob Zuma, e o ministro da Polícia, Nathi Mthethwa, a fazer apelos por paz e contenção.

Isso não impediu que, dias depois do assassinato, quando os dois acusados se apresentaram à polícia, duas multidões se reunissem e quase se confrontassem. Uma de brancos, pedindo literalmente “vingança”, e a outra de negros, defendendo os dois acusados, tiveram de ser separadas à força pela polícia.

A ficha de Eugène Terre’Blanche não era nada limpa. Seu nome vinha de um longínquo ascendente, Etienne Terre’Blanche, protestante francês que em 1704, fugindo das perseguições religiosas em seu país, chegou à futura África do Sul. Eugène Terre’Blanche era descendente de militares que lutaram sempre com os bôeres – colonos brancos, em geral de origem holandesa – contra o domínio britânico da região e contra os negros nativos.

Nascido em 1941, Terre’Blanche fez carreira policial, chegando a ser da equipe de segurança dos governos sul-africanos durante a vigência do apartheid, o regime de separação entre brancos e negros. Foi um dos fundadores do AWB, cuja página na internet – www.awb.co.za – exibe uma bizarra mistura de hinos religiosos, citações bíblicas, conclamações militares e a reivindicação de um país só para brancos.

A partir dos anos 1990, quando ficou claro que o apartheid caminhava para o fim, o AWB entregou-se a uma série de ações violentas e atentados. O pior deles foi um ataque a bomba às vésperas das eleições de 1994 que levaram Nelson Mandela ao poder, e marcaram o fim do regime discriminatório. Na explosão morreram nove pessoas. Em 2001 Terre’Blanche foi condenado por agredir um negro a golpes de barra de ferro, causando-lhe danos cerebrais definitivos. Solto em 2005, assumiu uma atitude menos agressiva, permanecendo em sua fazenda, mas ainda ativo na pregação separatista do movimento branco.

Dívida ou defesa

Há diferentes versões sobre os motivos de seu assassinato, perpetrado enquanto ele dormia. A primeira diz que se tratava de uma questão salarial, pois os acusados reivindicariam o pagamento de uma dívida equivalente a quase R$ 100; já a segunda, sustentada pela defesa, diz que o crime sucedeu a tentativas de estupro do menor. Ambas as versões estão sendo investigadas. Mahlangu pleiteou liberdade sob fiança; o menor, não; a defesa levantou o argumento de que, na prisão, ele estará mais seguro do que em liberdade.

Em 10 de junho, exatamente na véspera da abertura da 19a Copa do Mundo de Futebol, na África do Sul, um tribunal sul-africano deverá se pronunciar sobre o pedido de liberdade sob fiança para Chris Mahlangu. A decisão só se tornará conhecida após o fechamento desta edição, em 1º de junho. Mas, independentemente da decisão judicial, sobressai do episódio que ele é parte de um quadro angustiante.

Dezesseis anos depois do fim do apartheid, as feridas deixadas pelo regime continuam abertas, como continua vivo o ressentimento de muitos brancos contra a “predominância” dos negros. Junte-se a isso uma inquietação na zona rural, onde grande parte das terras continua em mãos de fazendeiros brancos e um processo lento de reforma agrária não é suficiente para pacificar os ânimos. Desde o fim do apartheid o governo registrou 9.400 casos de violência na zona rural, com 2.500 mortos, segundo cifras oficiais; 3.000, segundo outras fontes. Das vítimas, 60% eram de pessoas autodeclaradas de raça branca.

O regime do apartheid existiu na África do Sul a partir de 1948, preservando os privilégios da minoria branca. Em 1949 foram proibidos os casamentos inter-raciais; em 1950 foi declarado crime de “imoralidade” uma relação sexual entre pessoas de raças diferentes, e ao mesmo tempo foi instituída a obrigação de todos se registrarem como membros de alguma raça, branca, negra, mestiça ou “nativa” de outra que não as anteriores. Entre 1950 e 1953 o regime terminou de se estruturar, estabelecendo a separação em todos os espaços: hospitais, escolas, parques, praças, praias, transporte, áreas de residência etc. A partir de 1970 os negros perderam a cidadania sul-africana, passando a ser cidadãos de um dos dez “Bantustan” (Lugar dos Bantus), regiões esparsas no território que, a longo prazo, ganhariam “autonomia”.

Não poucas fontes situam o “Waterloo” do apartheid na batalha de Cuito Cuanavale, em território angolano, em 1988. Nessa batalha, descrita como a maior na África desde a Segunda Guerra Mundial, confrontaram-se, de um lado, militantes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de esquerda, e tropas cubanas; do outro, militantes da União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita), de direita, e tropas sul-africanas. A batalha durou meses, envolvendo infantaria, artilharia e aviação. Embora ambos os lados clamassem vitória, ficou claro que dali para a frente o poderio da África do Sul declinaria, o que deu margem às progressivas negociações, a partir de 1990, que puseram fim à discriminação.

Partidários do AWB declararam que a morte de Terre’Blanche era o começo de uma “guerra”, e conclamaram, inutilmente, os países envolvidos a boicotar a primeira Copa do Mundo em território africano. Apesar de tudo, os novos líderes do movimento insistem na tecla de que nada têm contra os negros, querem apenas um país só deles. Andriés, irmão do morto, declarou à imprensa: “Nós não somos racistas. Só acreditamos na pureza da raça branca”. Em si, a declaração já é bastante bizarra. Ainda mais diante de uma palavra de ordem que seguidamente está presente, embora jamais oficialmente, nas manifestações do AWB: “Negros, voltem para suas tribos”.