O garoto de Liverpool

Ele sabia tudo sobre os índios do Amazonas, mas da ditadura tinha noções imprecisas. A imprensa britânica não se incomodava com a ditadura, uma entre tantas, e ele próprio a achava amena

Ele veio de Liverpool, chamava-se Patrick e devia ter menos de 24 anos. Veio atraído pelo realismo mágico de García Márquez e pelo Amazonas, com sua fantástica floresta tropical e seus povos indígenas, alguns recém-contatados pelo homem branco. Falava um pouco de português. Chegou para cobrir as atrocidades contra os Atroaris, denunciadas com destaque na imprensa britânica, e se alojou na minha casa. Era um rapaz muito magro de cabelos negros e rosto miúdo sempre semioculto pelos cabelos que lhe caíam da testa, abundantes.

Por causa da cabeleira desgrenhada e da barba por fazer, que a ela se misturava, o Patrick dava a impressão de sujo. Também não se vestia bem. No entanto, era um escritor de qualidade. Já havia publicado dois romances históricos, um deles, que eu lera, muito bom, sobre a submissão e quase extermínio dos aborígines australianos pelos colonizadores ingleses.

Achei que o Patrick fazia o gênero do hippie. Queria demonstrar no próprio corpo o desprezo pela convenção e sua disposição rebelde. Veio para ficar quatro semanas e sabia tudo o que se pode saber de leitura sobre os índios do Amazonas. Sobre a resistência à ditadura tinha noções gerais e imprecisas. A imprensa britânica não se incomodava com a ditadura, uma entre tantas, e o próprio Patrick achava que ela era amena.

Chegou num sábado; na quarta seguinte partiu para Belém do Pará de avião, de onde seguiria para Altamira. Foi de mochila, à moda hippie. De Altamira pegaria a Transamazônica, que estava sendo construída, para mapear os estragos que a abertura da estrada fazia à vida indígena. Esse era o plano.

Falei com ele dos boatos sobre a existência de um foco de guerrilha no Amazonas e de que o Exército ocupara parte de região. Recomendei que não deixasse de passar pela delegacia da Funai em Altamira, mas ele disse que tinha como método evitar contatos oficiais.

Passaram-se três semanas e nada de o garoto de Liverpool voltar. Já estava pensando em acionar algum conhecido de Belém do Pará quando, passados mais cinco dias, ele surge no portão de casa, cabelos e barba ainda mais desgrenhados e compridos, os olhos esbugalhados e marcas de ferimentos no supercílio esquerdo. Tremia de modo descontrolado.

Levei-o pra dentro. Tomou um banho, comeu. Depois contou o que aconteceu. Disse que foi preso assim que desembarcou na rodoviária de Altamira. Penduraram ele num pau, querendo saber quem era o contato dele. Ele nem entendia direito o que estavam perguntando e não adiantou dizer que era jornalista. Depois jogaram ele num buraco, de uns quatro metros de profundidade. Tiravam de vez em quando para mostrar fotografias ou fazer perguntas e depois jogavam ele de volta. Passou frio e fome. Chegou a defecar e urinar dentro do poço.

No dia seguinte ao seu retorno, à noite, o garoto de Liverpool embarcou de volta para a Inglaterra. Antes, passou pelo barbeiro do bairro, mandou fazer barba e cabelo completos, corte bem rente.