História

O filósofo da revolução

As origens de Rousseau, um pensador do século XVIII cujas ideias, forjadas pela extraordinária Madame de Warens, influenciaram a tomada da Bastilha

Flávio Aguiar

Annecy, cidade no sopé dos Alpes franceses

Cherchez la femme: “Procure a mulher” (ou, numa versão livre, “a mulher é sempre a culpada”) é uma fórmula tradicional do romance policial francês, e pode servir como luva à biografia do filósofo revolucionário Jean-Jacques Rousseau, escritor de obras fundamentais da modernidade como Do Contrato Social, no século XVIII. Suas ideias tiveram influência capital sobre a Revolução Francesa de 1789 e todo o universo conceitual da modernidade, desde a importância do aleitamento materno até a necessidade de superar a aceitação tácita do contrato da desigualdade social para que todos, indivíduos e coletividades, possam se realizar como tal.

Tive a sorte de visitar o lugar onde a personalidade desse filósofo começou a se formar, ou a se reformar. Uma paisagem fantástica, onde houve uma espécie de “crime”: o mundo do Antigo Regime, das aristocracias que se viam como encarnações superiores de uma desigualdade “natural” entre os homens, fruto da “vontade de Deus”, começou a declinar, assassinado, entre outras, pelas mãos ou pela pena desse Jean-Jacques. No centro desse “crime” estava, como diz o ditado, une femme: Louise Éléonore de la Tour du Pil, Madame de Warens.

Nossa história começa na Rue de La Cité, em Genebra, Suíça. Ali cresceu Jean-Jacques Rousseau, e o local hoje abriga uma galeria de arte e um pequeno museu a ele dedicado. Genebra era um enclave protestante, de um calvinismo austero e rigoroso, no qual o jovem Rousseau foi criado sem se acomodar àquela rígida moral. Como a mãe morrera logo depois do seu nascimento e o pai casara novamente, ele foi educado por tias e tios, tutores e tutoras, e terminou fugindo da cidade que hoje o consagra como seu maior rebento. Por essas artimanhas do destino, um padre católico o encaminhou para a vizinha cidade de Annecy, na França, ao encontro de uma preceptora/protetora que poderia lhe dar formação e educação: a já famosa Madame de Warens. Em retribuição, ele converteu-se ao catolicismo.

A extraordinária Warens nasceu em Vevey, hoje também parte da Suíça, 13 anos antes de Rousseau, em 1699. Sua família, como a dele, era protestante. Casou-se talvez apenas para se ver livre da tutela da família. Pouco depois se separou do marido, mas guardou seu nome, assinando Françoise-Louise de Warens. Estabeleceu-se na região de Annecy, do lado francês, onde se tornou uma agente (protegida) do papa católico e também do rei do Piemonte. Era um posto estratégico, em meio protestante e hostil tanto ao Piemonte como ao catolicismo e à influência de Roma.

Encontro

Annecy é uma cidade encantadora dos Alpes franceses. Foi nessa cidade, em local hoje preservado e assinalado por uma homenagem ao filósofo e ao encontro dos dois, que eles se viram pela primeira vez, em março de 1728. Rousseau ia completar 16 anos; ela, 29. O mútuo encanto foi delicado e fulminante. No seu livro Confissões, publicado postumamente, Rousseau evoca a surpresa que teve. Esperava uma velha e vetusta senhora, talvez ranzinza, embora de fina educação. Essa última ele encontrou, mas numa mulher de corpo, rosto e alma jovens e cheios de encantos.

De Warens investiu na formação de Rousseau. Enviou-o para Turim, na Itália. O jovem passou alguns anos entre afastamentos e voltas a Annecy, sempre apaixonado pela mulher que o acolhera. Parece que nesses primeiros anos nada aconteceu do ponto de vista sexual. A francesa tinha uma vida afetiva intensa, mas aquele jovem que a amava despertara-lhe sem dúvida algo no coração.

Assim, De Warens introduziu Rousseau no universo da mundanidade católica. A moral sempre foi rígida quanto às relações então tidas como legítimas (isto é, o casamento). Mas sobre o restante – o vasto mundo dos amores proibidos –, além da proibição, ela nada tinha a dizer. E foi a esse mundo das liberdades praticadas (e silenciadas) que ela o conduziu pela mão.

O certo é que quando Russeau completou 20 anos, em 1732, ele já era seu amante. Ou melhor, um de seus amantes, condição que sempre o incomodou e, parece, acabou por provocar a ruptura entre ambos. Mas De Warens, a quem ele chamava de “Maman”, foi a grande mentora teórica e prática de sua educação sentimental, sensual, sexual e também, em muitos aspectos, intelectual.

Flávio Aguiarcasa
Casa de Rousseau em Chambéry: aberta aos visitantes

Contrato social

 A relação deles se manteve entre idas e voltas até cerca de 1742, quando Rousseau se afastou de vez, mudando-se para Paris e depois vivendo em outras cidades, como Chambéry. Tornou-se o autor célebre de livros, mas o mais revolucionário talvez tenha sido o de suas memórias, Confissões. Nele, Rousseau conta a formação e desenvolvimento de sua personalidade, entrando em detalhes de intimidade, e advoga a ideia de que o princípio da individualidade e da subjetividade única deve ser respeitado universalmente, isto é, deve ser uma prerrogativa de todo e qualquer ser humano. E que, não sendo “natural”, o mundo centrado na desigualdade social forjada por meio de um contrato social iníquo prejudica a formação e o alcance desse conceito e dessa condição, tolhendo a maioria dos seres humanos numa condição servil.

Foram ideias como essa que levaram à tomada da Bastilha, em Paris, em 1789, à Revolução Francesa, à dos Estados Unidos (antes), à independência do Haiti (depois) e – vejam só – até à nossa Inconfidência Mineira.

Não é difícil, ainda mais para quem visita essas paragens – Annecy e Chambéry –, discernir e visualizar a força e a energia daquela relação com a suave, refinada e ardente De Warens no “desenho” do espírito e do caráter do filósofo. Muito tempo depois Rousseau (em 1767-68), que vira De Warens novamente uma única vez, voltou a procurá-la e descobriu que ela morrera, em relativa pobreza, mas sempre altiva e digna, em 1762, em Chambéry.

E foi tão inesquecível que as últimas linhas que escreveu, pouco antes de morrer, em 1778, foram a ela dedicadas, em seu livro incompleto Os Devaneios do Caminhante Solitário. Depois de evocar o amor entre os dois, e lamentar que continuar compartilhando o amor dela com outros fora insuportável, ele diz: “Mas o que é extraordinário é que este primeiro momento foi decisivo para toda a minha vida, desenhando, por um encadeamento inevitável, o destino do resto de meus dias”.