literatura

O código da venda

Os romances policiais contemporâneos aposentam Sherlock Holmes e entram na escola de Indiana Jones. Fáceis de ler e campeões de bilheteria, eles se metem em algo escondido num tempo remoto a ser decifrado

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Tom Hanks pelas ruas de Londres na pele de Robert Langdon

Paira no ar a ameaça de um crime. Não, prezada leitora, prezado leitor: desta vez não é mais um ataque do PCC nem outra chacina praticada por policiais. A vítima é você. Sua existência está ameaçada. Você olha para o futuro e nada vê. Ou se percebe num caminho coberto pela neblina: o alcance de sua visão não vai longe. Essa perda de contato com o futuro também faz você sentir uma ruptura com o passado. Não que você tenha esquecido quem é, onde nasceu, como cresceu, o que estudou, o que trabalhou até aqui. Mas lembrar isso não significa mais nada, não garante nada. Numa palavra, você e os seus ficaram sós, e a qualquer momento podem cair no vácuo, no abismo, sejam pobres, remediados ou até mesmo ricos. Não importa. Você se sente como um antigo habitante das cavernas nos tempos pré-históricos: obrigado a ganhar a vida a cada dia, sem compromisso com o passado, sem garantia de futuro. Não, isso não é um pesadelo: é a percepção real do seu dia-a-dia.

Os anos de neoliberalismo, a pulverização de direitos, de expectativas de direitos, esboroaram sua percepção do tempo. Você vive enclausurado num presente contínuo, numa bolha-sem-saída, o tempo é a repetição do mesmo, todo o tempo o tempo todo. Tudo está perdido? Não!

Pelo menos durante algumas horas, alguns dias, que podem se prolongar se sua capacidade de leitura for calejada. Vêm aí – para salvá-lo – não da vida, é claro, mas do desânimo, talvez do pânico, os novos heróis dos romances policiais! À frente, os heróis do novo mega-herói Dan Brown. E em primeiro lugar desfila, neste cordão de salvadores da pátria – ops, de você – Robert Langdon, professor de simbologia da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Na adaptação para o cinema do livro O Código Da Vinci, ele foi vivido pelo simpático Tom Hanks – aliás, herói de um outro filme emblemático destes tempos neoliberais: O Náufrago.

Antes de mais nada, um lembrete: aparentemente, o livro de Dan Brown “trouxe à luz” a versão “esquecida” de um caso amoroso entre o Messias cristão e Maria Madalena. Mas essa história ou estória, como se queira, não é novidade. Sua versão primeira está num dos Evangelhos chamados “apócrifos” – O Evangelho Segundo Maria Madalena – em que ela reproduz os ensinamentos de Cristo pela ótica feminina. No Brasil, essa paixão da Paixão foi tema de um poema musicado de Catulo da Paixão Cearense (autor de Luar do Sertão), A Dor da Paixão, que terminava cantando que a dor maior do crucificado não era a de não poder salvar a humanidade “da eterna atrocidade do sofrer”, mas sim “a crucial pena / de sentir por Madalena / o coração desfalecer”.

Mas quem é, afinal, esse nosso “herói” pós-moderno? É um professor universitário, sofisticado, conhecedor dos signos do tempo. Ele decifra pergaminhos perdidos, mensagens cifradas há séculos, previsões sobre o futuro enigmático. Em suma, ele restaura a sensação do tempo, de algum tempo, seja ele qual for.

O velho detetive Sherlock Holmes, ainda o mais famoso do mundo, decifrava os crimes porque conhecia o mapa territorial e social de sua nevoenta Londres: por uma mancha de barro num sapato ele sabia por onde o suspeito (ou a vítima) tinha andado e o que tinha aprontado. Os tempos neoliberais borraram este mapa social, transformando sua percepção numa mixórdia mais confusa do que o trânsito em São Paulo às seis da tarde.

Mas o herói pós-moderno, Robert Langdon como modelo, é um leitor exímio do mapa das linguagens, sejam elas verbais ou outras. É, portanto, conhecedor de tecnologias (sendo a língua uma primeira tecnologia, nessa visão completamente utilitária do mundo), e emprega o conhecimento como principal arma de sobrevivência. Ele é, de fato, o herói-mercadoria desse tempo do império dos mercados e das mercadorias.

Robert Langdon, curiosamente, é herdeiro de uma recente tradição cinematográfica, a de Indiana Jones, inaugurada por Steven Spielberg, também professor universitário. E sua fórmula se repete, primeiro, em outros romances do próprio Dan Brown: Anjos e Demônios, o mais antigo, Ponto de Impacto, Fortaleza Digital. E há outras obras, de outros autores, em que esses heróis do conhecimento comparecem. Num deles, até o poeta Dante foi convocado, na Florença medieval: Os Crimes do Mosaico, de Giulio Leoni.
Uma coisa é certa: eles garantem absorção do leitor e são, de fato, de fácil leitura e interpretação. E são, de fato, heróis das vendas.

Leituras sugeridas
O Código da Vinci, Anjos e Demônios, Ponto de Impacto e Fortaleza Digital, de Dan Brown, são todos da Editora Sextante. Os Crimes do Mosaico é da Editora Planeta. Há ainda, e pelo menos, O Enigma do Quatro, de Ian Caldwell e Dustin Thomason (Planeta) e O Enigma Vivaldi, de Peter Harris (Editora Relume Dumará). Todos eles remetem, de algum modo, a um conhecimento de algo que se passou num tempo remoto e que deve ser decifrado.