O cinema acabou. A cidade vive

Para o cineasta Ugo Giorgetti, o que importa é levar a obra ao público. Para o paulistano Ugo, um olhar atento pode redescobrir lugares dados como perdidos

Ugo Giorgetti

O brasileiro torce mais ou menos na Copa. Sua pátria é seu clube. Quem gosta da Copa são os anunciantes. O futebol é ambíguo, mexe com a emoção e ao mesmo tempo é tão mercantilista que dá asco

“Você tem certeza que esta é a Rua Mourato Coelho?”, diz o personagem central de O Príncipe, filme lançado em 2002 por Ugo Giorgetti. A cena revela o espanto de alguém que retorna a São Paulo depois de mais de 20 anos e perde as referências. Nascido há 70 anos em Santana, na zona norte de São Paulo, o cineasta pensava que tudo tinha ficado para trás quando, andando pelo bairro a trabalho, surpreendeu-se ao descobrir que ali ainda existem coisas intactas que ele supunha desaparecidas. Giorgetti também passou por Higienópolis, na região central, pelo Horto Florestal, na região norte, e mora em Perdizes, na zona oeste.

São Paulo está presente o tempo todo em sua obra. Seus primeiros trabalhos são os documentários Campos Elíseos (1973) e Edifício Martinelli (1975). “Eu nasci aqui, grande parte da cidade me é muito familiar. Fazer esses personagens circular por São Paulo é mais imediato. Não me preocupo muito com a cidade, primeiro a cidade, depois o personagem. É o contrário. Primeiro o personagem, depois a gente o coloca em algum lugar.” No filme Sábado (1995), um de seus nove longas-metragens, ironiza o fato de as pessoas não irem mais ao centro, mesmo falando bem do local. Em sua opinião, São Paulo é uma cidade de apartheids­. Isso se transforma no cinema, que para ele acabou, de certa forma, ou perdeu para a televisão. É a era do audiovisual. “O importante é você fazer e passar.”

Além do cinema e da cidade, o futebol faz parte das paixões de Giorgetti, mesmo desgostoso com o Palmeiras, seu time do coração.

Boleiros (1998), que ganhou uma continuação em 2006, é provavelmente o seu filme mais conhecido. Ele adora futebol, mas abomina o mercado e o oba-oba. E registrou em crônica sua admiração por um livro que conta a história do Pracinha F.C., uma tentativa de clube feita por garotos que batiam bola numa praça paulistana. “O que acho interessante no futebol é como se insere na sociedade.” Ao descrever o Pracinha, o autor descreveu um modo de vida, a sociedade da época.

É possível ainda reconhecer um pouco da São Paulo em que você cresceu, brincou?

Isso é uma coisa um pouco estranha. Filmo há muitos anos, primeiro na publicidade, que também se passava em São Paulo. Então, estou filmando essa cidade há quase 50 anos, eu circulo por aí. Isso que você falou, sobre as marcas de outro tempos que ficaram na cidade, é algo curioso. Para descobrir essas coisas que ficaram, redescobrir, precisa olhar com atenção. Eu preciso da cidade, sou uma pessoa que anda na rua. Mesmo assim, você só se dá conta de que alguns aspectos restaram quando vai fazer alguma coisa específica. Nasci no bairro de Santana. A prefeitura faz uma série de documentários sobre bairros, e me encarregaram de fazer sobre Santana. Fui com a cabeça de não achar mais nada do tempo em que morei lá. Meu irmão mora lá, então vou frequentemente. Indo para visitar meu irmão, achei que não tinha mais nada, era um horror. Mas, como fui fazer o documentário (lançado em 2009), tinha de olhar com atenção. E realmente sobra. A vida não é mais a mesma, mas a coisa está lá, às vezes intacta. Vilas, ruelas, é impressionante. Mudei completamente minha posição.

No filme O Príncipe, o personagem mostra uma estranheza, porque ficou muito tempo fora do Brasil. Mas aí também é outro olhar…

É outro olhar e também um personagem de ficção. Você tem liberdade para exacerbar… Agora, a cidade está mudando violentamente, com esse boom imobiliário. Perdizes está sendo destruído. Claro que daqui a alguns anos alguém vai descobrir uma casinha aqui, uma viela acolá. Eu botei o personagem por causa disso. A Vila Madalena, a Mourato, virou uma loucura…

Boleiros 2
Os donos do futebol antigo era
m pessoas muito mais simplórias. Depois entram os negociantes, gente que está a fim de fazer dinheiro no futebol

Cara ou Coroa
Cara ou Coroa não é um filme sobre a ditadura, é sobre o período da ditadura. Mas o distribuidor não estuda seu produto. Não tem nenhuma estratégia

O primeiro Boleiros é nostálgico. O segundo é mais realista, com os empresários tomando conta do esporte. É a visão que você tem?
Os donos do futebol antigo eram pessoas muito mais simplórias. Eram uns caras que tinham algum dinheiro, mas não eram negociantes. Eram torcedores, em primeiro lugar. Você pega aquelas figuras antigas, como o Vicente Matheus (ex-presidente do Corinthians), que era antes de tudo um torcedor, amava o clube. Esse futebol está representado no primeiro Boleiros. Depois entram os negociantes, gente a fim de fazer dinheiro. Mesmo que ele não queira para ele, está fazendo caixa pro clube. O objetivo é sempre caixa. E entrou a publicidade, vigorosamente. Uma infinidade de gente que nunca tinha se metido com futebol. Era outra sociedade, mais simples. O marketing, o consumismo aloprado, para usar a palavra do Lula, esse consumismo absurdo, sem freios, não havia, até porque não havia tanto o que consumir. Agora as pessoas vêm oferecer coisas dentro da sua casa. Os filmes, então, representam épocas diferentes. O futebol acompanha a sociedade à qual ele pertence, o momento histórico em que está.

Com tudo isso, você gosta de ver jogos?

Para mal dos meus pecados sou palmeirense. Então, não tenho acompanhado mesmo. Nunca pensei que fosse desligar a televisão em um jogo do Palmeiras. Eu escrevo sobre futebol, então tenho de seguir. Mas o Palmeiras eu não vejo, não quero ver.

Nem no estádio novo, que está sendo construído no mesmo local?

Nem lá. Inclusive fui contra esse estádio. Você vê o que é a inserção de estranhos, não estranhos, porque é o mercado que está aí, no futebol. Um estádio é um estádio. Se você chamasse um arquiteto recém-formado, de 23 anos, e dissesse: eu tenho o Parque Antártica, cabem aqui 25 mil. Eu quero que você bote mais 15 mil. Um arquiteto hábil, que não fosse um primata, botava mais 15 mil pessoas. Tinha lugares que você podia ajeitar, e não precisava fazer arena alguma. O que você precisava era de um time.

E pela Copa? Você se interessa?
Nem um pouco.

Nem a do Brasil?

Bom, essa nem pretendo estar aqui. Estava até pensando em ir para o Uruguai, mas periga o Uruguai se classificar, e aí fica a loucura lá. Mas, se não se classificar, vou pra Montevidéu. Não vou ficar aqui, nessa palhaçada. Esse negócio de ligar pra Copa do Mundo não corresponde exatamente ao futebol. O Brasil perdeu várias e o futebol continuou magnífico. O brasileiro torce muito mais pro clube. Sua pátria é seu clube. Quem gosta da Copa são os anunciantes. O futebol é muito ambíguo. Ele mexe com isso (emocional), e ao mesmo tempo é um negócio tão mercantilista que dá asco. Então, você fica sempre dividido. Quem gosta e quem escreve é uma pessoa dividida. Ao mesmo tempo que você sente que é uma força verdadeira, honesta, entranhada, que vem de quando você era criança, também sabe que é um charco, uma coisa odiosa, de compra e venda, de gente corrupta até a raiz dos cabelos.

Você saiu da publicidade para não ter de lidar com empresários. Para fazer filme, precisa correr atrás deles, para captar recursos. Como foi com o Cara ou Coroa (lançado em 2012)?

Cinema é uma atividade que requer dinheiro alto. No Cara ou Coroa tive sorte. Eu não circulo muito por aí socialmente. Então, não tenho nenhum laço com empresários, estou sempre desfalcado nessa vertente, precisa ter sorte. Era uma pessoa que tinha estudado com minha filha mais velha, que tinha se transformado numa pessoa importante numa organização e entrou… Você tem de contar com isso, não tem muito jeito. É muito complicado.

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São Paulo tem uma classe média aterrorizada. O sujeito tem medo de andar na rua, muitas vezes sem razão. E não suporta o diferente, o contato com pessoas pobres. O Rio de Janeiro é mais democrático

O Estado deveria apoiar mais?
O Estado apoia tremendamente, mas de uma maneira que ele pretende que não seja vista como apoio do Estado. Então, o dinheiro que os empresários põem nos filmes é público. Por mais que tenha gente fazendo sofisma, dizendo que não é, na minha opinião é inteiramente público. Portanto, é dinheiro do Estado, que por motivos que a gente pode discutir mil vezes ele pretende ficar oculto e fingir que não deu, que quem deu foi o banco não sei o quê. Mas o banco deu o dinheiro que deveria pagar para o Estado, com os impostos. O Estado transfere para o particular a decisão sobre que filme vai fazer. É uma coisa um pouco insensata, que não acredito que exista fora do Brasil. Na França, imagine. Você não vai pedir dinheiro pra Renault. Vai pedir pro governo. A diferença é muito simples: a Renault não faz filmes, faz carros. Por que ela entraria em filme? Então, (a empresa) aprova um filme mais inócuo, uma comedinha facinha, que não incomoda ninguém, que daqui a três dias ninguém vai lembrar que existe. Por que vai colocar sua marca associada a um produto polêmico? Você começa a escolher o filme que não incomode. Isso é terrível, porque mutila artisticamente o país. Mas está instaurado aí há muitos anos, e não vejo nem pessoas muito descontentes com isso, nem a classe reage muito a isso. Então, eu devo estar errado.

E a distribuição, é outro problema?
É o maior problema do cinema nacional. Porque o distribuidor é um sujeito, na minha opinião, desinteressado de filmes em que ele não veja qual é o público imediato. Você pega, vamos supor, uma comédia. Opa, tem global? Tem, dois ou três globais. Legal. A Globo dá? Dá. Então, ele já classifica, não tem a perspicácia e a vontade de falar: pera aí, esse filme é isso ou aquilo. Não, ele classifica imediatamente: esse é o filme que vai dar dinheiro. Seu filme, Cara ou Coroa, sobre o que é? Ditadura? Não, não é sobre a ditadura, é sobre o período da ditadura.

Até explicar…

Dá trabalho. O filme é como produto, sabonete. Os distribuidores fariam o papel de uma agência de publicidade. Você leva seu produto a uma agência, eles vão quebrar a cabeça para ver como colocar esse produto no mercado. Essa é a função, que armas usar, como atingir o público. O distribuidor deveria fazer isso. Primeiro, ter capacidade pessoal para analisar se o filme tem méritos ou não, o que eu já acho discutível. Depois, descobrir qual é o público. Todo filme tem público, até o mais cabeça. Agora, precisa ter inteligência. Aqui é assim: ou você é um filme fácil, ou… não sei. Quando você diz “não sei”, ele é imediatamente relegado a uma vala comum. O distribuidor não tem nenhuma estratégia. Você tem a Globo ou não tem. No fundo, é mais ou menos isso.

Para mal dos meus pecados sou palmeirense. Eu ia muito a estádio, até uns cinco anos atrás. Escrevo sobre futebol, então tenho de seguir. Mas nunca pensei que fosse desligar a TV em um jogo do Palmeiras

Não é culpa do blockbuster, do 007…
É também. Mas daí é outra coisa. Você não pode, num parque cinematográfico de 2.300, 2.400 salas, ter um filme que entre em mil salas. Isso é uma anomalia, uma aberração. Por outro lado, se esses filmes não entrassem nessas salas, entrariam outros parecidos. A sala também está rotulada. Então, você não entra no Cinemark. Não entra nem um filme não com um mínimo de dificuldade, mas que requeira um pouco mais de atenção do espectador. Só isso. Se não entrasse o Crepúsculo, entraria alguma coisa parecida. Não se engane. Não é que o Crepúsculo está tirando salas de Cara ou Coroa. Em absoluto. O que ocorre é uma atividade anômala muito ruim.

São Paulo vem perdendo os cinemas de rua, em troca das grandes salas. Isso atrapalha?

Na minha opinião, o cinema não existe mais. O cinema acabou. O que existe é audiovisual. Isto é, você ver cinema por outros meios. Você tem de pensar em televisão. No DVD, que também está periclitante neste momento, em termos de vendas. Na verdade, você tem de contar com a televisão, com a internet, coisas desse tipo. As salas são um enfeite hoje. O cinema perdeu para a televisão, e teria de perder mesmo. Quando a televisão foi posta em prática nos Estados Unidos, Hollywood percebeu. Por que você vai sair quando pode ver em casa com a mesma qualidade? Numa cidade que não te convida a sair de casa, é insegura, que tem um trânsito desgraçado, o estacionamento é caro… Então, o cinema é uma atividade inviável, na minha opinião. Serve como uma espécie de vitrine, a crítica vai lá, e você vai pra televisão.

Apesar disso, você continua fazendo filmes.
Lógico, mas eu faria pra televisão, sem nenhum problema. Não tenho nenhum romantismo a respeito do filme, do cinema, todas as pessoas ali sentadas. O importante é fazer e passar isso de alguma forma.

Sábado ao mesmo tempo fala da decadência de uma parte de São Paulo e do glamour da publicidade… São Paulo tem essa mistura.

Às vezes no mesmo lugar.

As pessoas têm essa relação com a cidade?
Se andam pela cidade, é para lugares muito definidos. O centro não é mais. Aliás, pode ser que o centro venha a ser um lugar aonde as pessoas vão. Mas tem de ser proporcionado pelo Estado, com a iniciativa privada não vai ser isso. Por exemplo, a prefeitura fez um dispositivo chamado Praça das Artes, estão transferindo instalações do Municipal, foi restaurado completamente o Conservatório Musical… Mas isso aí é obra de um secretário de Cultura, que é o Carlos ­Augusto Calil. Você está sempre na mão de um fenômeno que apareça, de uma pessoa que o destino coloca lá. E dentro de uma prefeitura extremamente, para ser delicado, conturbada, como foi essa prefeitura Kassab, de repente na Cultura teve um secretário exemplar, que transformou a Biblioteca Mário de ­Andrade, teatros de bairros em teatros viáveis, distribui livros nos terminais de ônibus… O único jeito de ter o centro novamente é uma intervenção do Estado. São Paulo é uma cidade de uma classe média aterrorizada, por tudo, especialmente pela televisão. O sujeito tem medo de andar na rua, sem razão nenhuma, muitas vezes. E não suporta o feio, o diferente, o con­tato com pessoas pobres. O Rio de Janeiro é muito mais democrático, até porque está muito próximo… Aqui, quando o pobre, o desvalido, o malvestido, o sujo, está num lugar, a classe média vai pra outro. Então, para ver uma ópera, você vai ter de conviver com o cara que transita na São João. A Broadway é isso. Em São Paulo é que você convive com apartheids, esse apartheid violento. Você vai na Broadway, ninguém pensa em pegar um teatro e levar para um lugar chique de Nova York. É uma maneira de deixar a cidade viva.