Brasil

O caipira vive pela boca

São Luiz do Paraitinga encontra na solidariedade e na prosa a força para voltar à normalidade. Sua história e sua geografia são um alerta para cidades expostas a riscos semelhantes

Luciano Dinamarco

Duas semanas após a enchente, boa parte do barro foi removida, revelando o tamanho dos estragos

São Luiz do Paraitinga passou as primeiras semanas do ano sacudindo a lama trazida pelo rio nas horas iniciais de 2010. A destruição de parte do centro histórico dói, mas o caipira há de transformar tudo em causos. Como o da enchente de 1914, que chegou ao terceiro degrau da Igreja Matriz, agora reduzida a escombros. A cultura oral, patrimônio da cidade, não foi abalada. A inundação vai passar de geração em geração pela boca desse povo bom de prosa. É assim desde quando todos se deram conta de que, na virada de um ano para outro, 300 anos de história ruíram pela força do rio. E a história recente da cidadezinha pode servir de exemplo para centenas de outras com características geográficas expostas a riscos semelhantes – e igualmente agravados pela ocupação inadequada.

O professor de Geografia da Universidade de São Paulo, Aziz Ab’Saber, natural da cidade, entende que a enchente faz parte de um ano anômalo, mas previsível. Aponta uma periodicidade climática a que estão sujeitos o Sul e o Sudeste, que varia entre 12 e 13 anos, quando há uma ocorrência de chuva muito acima do normal. E se é sabido, de acordo com um dos geógrafos mais respeitados do Brasil, que algo do gênero ocorrerá novamente no início da década de 20, que se aja. Ab’Saber considera fundamental ensinar a geografia e o clima locais para as crianças. “O problema é saber de antemão para prever os impactos desses ciclos de tempo anômalo”, afirma.

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As enchentes fazem parte da vida de São Luiz. A cidade foi erguida no século 18, contornada pelo rio Paraitinga. A ocupação indevida de algumas áreas multiplicou os riscos. Na avaliação de Carlos Murilo Prado Santos, professor da Universidade de Taubaté, a enchente juntou fatores geográficos, históricos, urbanísticos e climáticos. E, nos últimos anos, os donos de construções que ocupavam a margem direita do rio fizeram um soerguimento de suas áreas, o que acabou empurrando mais água para a parte oposta, o centro histórico.

O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), incumbido de encontrar explicações para a enchente, soma à história a formação de barreiras naturais e artificiais e o assoreamento dos rios na região, fatores que dificultam a absorção de água e reduzem a profundidade dos leitos. O acúmulo de chuva ao longo de quatro dias na cabeceira e no fim do Paraitinga, com o represamento do rio do Chapéu, mais à frente, também é apontado como causa da enchente.

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Anjos d’água

Foi de boca em boca que se acionou o socorro às pessoas ilhadas nas casas. A água já ia pelo telhado quando chegavam os meninos do rafting. Sem eletricidade nem telefonia na cidade, cabia a eles localizar quem precisava de resgate e de notícias. É difícil calcular quantas vidas foram salvas por aqueles que outrora eram vistos com desconfiança. Rodrigo César da Silva, o Mindé, conta que uma senhora tirou sarro de seu colega que passou com o bote em meio à chuva, afirmando que agora eles tinham diversão de sobra. Hélio Alexandre de Souza estava a caminho de um resgate. E a senhora também não sabia que duas horas mais tarde ela própria teria de ser socorrida.

“Quando minha mulher ficou grávida, muita gente falava que agora eu ia ter de arrumar um emprego de verdade. Sei que vou ganhar pouco, mas aprendo a viver com esse pouco”, afirma. Mindé começou no esporte pensando em ser campeão mundial e agora viu que remar leva a conquistas mais importantes. Os preconceitos contra os “vagabundos” são coisa do passado. Há quem os chame de anjos d’água. “A atuação da equipe foi exata. Você passa na rua e uma pessoa que nunca falou com você te chama de menino do rafting. Somos só uma parte entre tantas pessoas que estão tendo atitudes de humanismo”, aponta Hélio.

Uma parte sem a qual não existiriam outras. Não haveria, por exemplo, a atuação da família de Benedito Paula Rocha, o Bozó. Calmo, ele não esquentou a cabeça quando “centenas de pessoas” tinham em sua casa, em um ponto alto da cidade, uma das poucas fontes de água e de banho. Uma das minas de sua propriedade saciou a sede dos que tiveram de passar a noite em seu quintal. O leite de sua fazenda foi buscado de barco para alimentar essas pessoas. “Trabalhando em grupo a gente socorreu todos sem estresse. Na minha casa pode ficar Deus e todo mundo. A fronteira está aberta.” Bozó só não perdoa a ausência de autoridades municipais na missa rezada em frente à Igreja do Rosário, a única das antigas que se salvou, no domingo pós-inundação.

A queda da Matriz – ponto central e de partida para todos os eventos da cidade – machucou mais que a perda da própria casa, para muita gente. Tadeu de Campos, estudioso dos temas históricos, mora logo atrás da igreja. Antes, podia ver dali a movimentação. Agora, os escombros da construção e o barro parecem não ter fim. “Eu não durmo direito. Penso o tempo inteiro nessa visão da igreja caindo aos poucos, na cidade destruída”, lamenta.

A notícia dada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de que será possível reerguer a Matriz e toda a cidade aliviou parte do sofrimento. Tadeu entende que a igreja deveria ser reconstruída nos moldes originais, jesuíticos e com apenas uma torre. Essa discussão vai longe. Por ora, dividem-se as tarefas que caberão a cada ente público. Os governos federal e estadual buscam superar diferenças partidárias e unir esforços. A prefeita Ana Lúcia Billard terá sua gestão comprometida. “Meu mandato inteiro vai ser só para reconstruir o que a chuva levou. E também poder arrumar o que estava errado na área urbana. Não podemos permitir mais ficar na beira do rio”, constata.

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Goiás Velho (GO), cidade devastada pela enchente entre 2001 e 2002 e cuja reconstrução é tomada como exemplo, levou dois anos para voltar ao normal. Salma Saddi, superintendente do Iphan em Goiás, ficou seis meses sem deixar o município e outro ano e meio trabalhando intensamente. Quando soube da tragédia de São Luiz, ela e sua equipe colocaram-se à disposição para ajudar. Salma acredita que é possível reerguer tudo, mas adverte que nada deve ser feito com pressa. “Em alguns momentos, vão sofrer, vão pensar que as coisas estão devagar. Mas é uma população que tem uma história de vida muito interessante e cultiva muito suas tradições. Essas coisas, ninguém tira do povo. Acredito muito nisso.”

Com isso, as festas poderão retornar ao calendário luizense. Alguns acham até que a pausa forçada é um momento para repensar a maneira como vinham ocorrendo os eventos. No Carnaval, por exemplo, muitas pessoas estocam comida para seis dias e só saem de casa quando os turistas já se foram. São Luiz tem apenas quatro padarias, alguns mercadinhos e outros tantos restaurantes. A partir da Praça Central, há meia dúzia de ruas para um lado, meia dúzia para outro. O espaço, habitado por pouco mais de 10 mil pessoas durante os tempos sem festa, entra em convulsão rapidamente.

Este ano, com o Carnaval tão próximo, artistas de São Luiz contam com a solidariedade que vem de outros cantos. Benito Campos, fundador do bloco Juca Teles, tem acordos fechados com as prefeituras de Pindamonhangaba e do Circuito das Águas (Lindoia, Águas de Lindoia e Amparo, entre outras) para promover apresentações em fevereiro. Ele lamenta que a tragédia tenha ocorrido no momento em que a cidade experimentava uma efervescência que permitia aos artistas viver de seu trabalho. “A cultura local com certeza ficou órfã de pai e mãe. E estamos no meio dos escombros. Precisamos de ações mais efetivas que mostrem uma luz no fim do túnel.”