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O bolo abatumado

O objetivo por lá não é propriamente salvar a Grécia, mas os bancos e a zona do euro. Do prometido socorro de € 110 bilhões para “os gregos”, 80% vão direto para a contabilidade dos “credores”

John Kolesidis/Reuters

Gregos conclamam os europeus à insurgência

A receita a gente conhece desde pequeno. O curioso é que dá para fazer bolos muito diferentes com ela. A primeira versão, no tempo da ditadura militar, chamava-se “Bolo do Milagre Brasileiro”. Seu mote era dado por ainda hoje prestigiado economista: “Para dividir o bolo, é necessário primeiro fazê-lo crescer”. Daí vinham a receita e o modo do preparo: arrocho salarial, cortes nos direitos trabalhistas, marginalização dos sindicatos, cabrestagem dos trabalhadores, com a inevitável concentração de renda. Tudo financiado por empréstimos descontrolados no exterior, o que, entre outras causas, levaria o país à bancarrota.

Agora se trata da receita “Bolo Abatumado”, já conhecida no passado por brasileiros, assim como por argentinos, mexicanos e outros povos invadidos pelo vírus “FMI”. Com algumas variantes, é a mesma: congelamento ou diminuição de salários e aposentadorias, cortes em pensões e no auxílio-maternidade, arrocho e cabrestagem dos trabalhadores. É verdade que agora não se fala em fazer o bolo crescer, mas em abatumá-lo, impedi-lo de crescer.

Antes, ao tempo da ditadura, praticavam-se investimentos faraônicos (Transamazônica, Ponte Rio-Niterói) que beneficiavam meia dúzia; agora fala-se em desinvestimento, em cortes que, com o arrocho imposto, vão estraçalhar o poder aquisitivo da população, aumentando a recessão já implantada como modo de vida. Quem não teve a oportunidade de experimentar a receita na ditadura teve uma segunda chance, concedida pela cartilha neoliberal, nas décadas seguintes.

Tudo isso foi enfiado goela abaixo do povo grego pelo novo consenso (não mais o de Washington, cuja credibilidade está abalada) União Europeia-FMI. A Grécia, que ameaçava não pagar suas dívidas públicas para com os bancos europeus e outros, terá uma “ajuda” de € 110 bilhões durante três anos. Em troca terá de aplicar a receita, pela qual quem paga são os trabalhadores, os funcionários públicos, os aposentados e pensionistas. Esses todos terão de suportar ainda um aumento de impostos sobre o consumo que vai fazer a economia grega retrair-se de modo dramático.

O objetivo desse plano não é propriamente salvar a Grécia. Trata-se de salvar os bancos credores e a zona do euro como um todo, pois vários países dessa região, embora com economias mais robustas, estão com a credibilidade em baixa no que toca à possibilidade de cumprirem os compromissos de sua dívida pública. Dos prometidos € 110 bilhões “para a Grécia” (que poderão ir a € 140 bilhões), esta ficará com apenas 20%, pois € 88 bilhões farão escala na Grécia, mas vão aterrissar diretamente na contabilidade dos bancos.

Socializam-se as perdas

Como a Grécia chegou a esse ponto? Os dedos dos financistas e economistas conservadores apontam unanimemente para a generosidade do sistema de aposentadorias, pensões e salários dos funcionários públicos, e exigem (e vão conseguir) cirurgias profundas e dolorosas sem anestesia. Como sempre se pratica, embora nunca se admita, privatizam-se os lucros, socializam-se as perdas.

Já faz tempo que rolar dívidas públicas e privadas pela sucessão de empréstimos encadeados atingiu cifras cujo número de zeros à direita ultrapassou a capacidade imaginativa humana. A Grécia não ficou atrás. Sua dívida pública chegou, no ano passado, a € 300 bilhões. A economia do país já anunciava sinais de turbulências à frente, e com isso e mais alguns escândalos de quebra o governo conservador perdeu as eleições para os socialistas de George Papandreou.

Algum tempo depois, começaram a aparecer números estapafúrdios. O governo anterior maquiara cifras, para diminuir a participação da dívida pública no PIB (e assim poder continuar a poder fazer empréstimos e mais empréstimos). A relação dívida-PIB é utilizada pelos consultores econômicos para avaliar a possibilidade do governo de cumprir seus compromissos. A União Europeia recomenda oficialmente que esse resultado, expresso em porcentagem, não ultrapasse 3%. Pelos números anteriores, a razão estaria na casa dos 5%, o que não é recomendável, mas aceitável. Quando o novo governo de centro-esquerda, ao final de 2009, divulgou os novos números, a cifra pulou para quase 13%. Acendeu-se a luz vermelha, a Grécia deixou de ter créditos para honrar seus compromissos de curto prazo, os bancos retiraram-se, ou melhor, expulsaram-na da praça, e o governo de Papandreou ficou pendurado no pincel.

Mas mais coisas vieram à tona, que não são muito faladas. O governo conservador pulverizou sua capacidade de fiscalização. Em consequência disso, criou-se um vácuo de € 20 bilhões de sonegação, além de o “mercado paralelo” (antigamente a gente dizia “negro”) grego ter chegado a € 77 bilhões. Havia uma espécie de farra financeira generalizada, e não propriamente feita pelos aposentados, pensionistas, funcionários públicos e demais trabalhadores, que agora estão convocados manu militari a pagar a conta.

Se a Grécia não pudesse pagar seus compromissos de curto prazo, teria de decretar uma moratória ou uma reestruturação da dívida, o que poderia levá-la ou a abdicar da zona do euro, ou a dela ser expulsa. Isso poderia deflagrar uma reação em cadeia sem precedentes, porque vários países da zona do euro estão numa situação próxima, semelhante ou até pior que a da Grécia no que toca à relação entre dívida e PIB.

Exemplos: Itália, 5,3%; França: 7,5%; Portugal: 9,4%; Espanha: 11,2%; Irlanda: 14,3%. Uma falta generalizada de credibilidade levaria o euro ao derretimento, e isso seria um desastre para credores e devedores no curto prazo. A Europa está algemada ao euro.

Foi esse risco que levou a duas medidas centrífugas, mas de acordo com as receitas do momento. Depois de conversações generalizadas, principalmente entre a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, e os presidentes Nicolas Sarkozy, da França, e Barack Obama, dos EUA, a UE apresentou seu já famoso pacote de € 750 bilhões como reserva para calafetar eventuais fendas e rachaduras na moeda ou nos fundos dos devedores. Tudo isso foi feito com a participação substancial do FMI, cujo papel, além de colocar fundos à disposição, é funcionar como cão de guarda desse campo minado financeiro. Por sinal, via FMI, até o Brasil deu uma ajudazinha à estremecida Europa, mobilizando € 224 milhões de suas reservas internacionais à guisa de socorro. Quem nos viu e quem nos vê…

Por outro lado, os países na berlinda começaram a se mobilizar e a refazer contas. O premiê também socialista da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, antes que qualquer vaticínio internacional atingisse seu governo, já anunciou um conjunto de medidas parecido com aquilo que foi imposto à Grécia: diminuição de 5% nos salários do setor público, congelamento dos outros salários, de aposentadorias e pensões, diminuição de € 600 milhões nos investimentos públicos e suspensão do “cheque-bebê”, um auxílio de € 2.500 que os pais recebem quando o bebê nasce, como estímulo à natalidade.

Se medirmos esse quadro algo dantesco com a régua tarimbada latino-americana, diríamos que o que se vê, nessa primeira grande crise da zona do euro, é que ela está criando a sua “coroa periférica”. Já há outros países nessa situação de “periferia da União Europeia”, ou primos pobres como Romênia, Bulgária, Hungria, Polônia, Lituânia, Letônia e Estônia. Mas agora a maré dessa relativa pobreza (que nada tem de miséria, ainda) está molhando o convés da arca da “Eurolândia”, como às vezes se chama a região da nova moeda.

Essa maré ainda não se assemelha às das regiões miseráveis do mundo, mas também destrói sonhos, expectativas e direitos. Como aconteceu e ainda vai acontecer, certamente, nas ruas em chamas de Atenas e outras capitais. Fica a pergunta: terá sido a criação do euro precipitada? Sem dúvida, ela favoreceu o sistema bancário. E na crise financeira que antecedeu à da moeda ficou demonstrada a irresponsabilidade e incúria, pela qual ainda nenhum de seus dirigentes, a bem da verdade, pagou. Como sempre.