Fórum Social Mundial

No berço da humanidade

“A presença do Fórum Social Mundial na África tem significado simbólico muito grande. O melhor conhecimento que temos diz que a África é a mãe da humanidade. Encontramos aqui a nossa história com raízes muito mais profundas do que aquilo que a história do Ocidente conta”

Antony Njuguna/REUTERS
Antony Njuguna/REUTERS
Aldeia Masai, a apenas 60 quilômetros ao sul do 7º Fórum Social Mundial

A frase de abertura é do teólogo e frei Luis Carlos Susin, de Porto Alegre. A observação, feita à reportagem em pleno conjunto esportivo Moi (nome de um dos ex-presidentes do Quênia), nos arredores de Nairóbi, define a importância da realização da sétima edição do Fórum Social Mundial (FSM) no continente africano. Frei Susin ali estava pelo FSM em si, realizado de 19 a 25 de janeiro, e pelo 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, ocorrido alguns dias antes.

Desde sua primeira edição, em janeiro de 2001, em Porto Alegre, o Fórum Mundial já teve sede em três continentes: a América (Porto Alegre, 2001, 2002, 2003 e 2005), a Ásia (Mumbai, na Índia, 2004) e agora a África. Em 2006, a edição teve três partes: a primeira em Bamako, no Mali (África), a segunda em Caracas, na Venezuela (América) e a terceira em Karashi, no Paquistão (Ásia). Além disso, o processo tem desencadeado uma série de fóruns temáticos ou regionais: o Europeu, o Mediterrâneo, o Pan-Amazônico, o de Juízes, o da Educação, o Parlamentar, o das Águas, o da Teologia e Libertação. Essa movimentação tornou-se um dos principais espaços de contestação à globalização conservadora, ao Consenso de Washington, ao neoliberalismo e ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, que se realiza todo ano na mesma época.

Os números são sempre espantosos. Estima-se que a marcha de abertura deste ano tenha tido 250 mil participantes. Em Nairóbi, o número de inscritos chegou perto de 50 mil, enquanto o de participantes foi estimado em mais de 70 mil, e isso num continente em que alguns foram em caravanas pelo deserto e pelos altiplanos.

A frase de frei Susin espelha um sentimento comum que atravessa todos os Fóruns: sua própria realização é um acontecimento, uma conquista. Não foi diferente no Quênia. Mais até: desta vez, em que se enfrentaram muitas dificuldades e precariedades, a sensação de vitória foi intensificada.

O FSM não é apenas um “evento”. É muito mais que isso, é um processo, como enfatizam vários de seus organizadores históricos, entre eles o brasileiro Chico Whitaker: “Desde o primeiro Fórum nos demos conta de que o processo que estava sendo iniciado, e tem como ponto de apoio os eventos, tinha de se espalhar pelo mundo todo. Os africanos pediram isso, para que pudessem encontrar seus caminhos. Objetivamente este Fórum é um acontecimento histórico para a África. Nunca os africanos tiveram a oportunidade de tantas organizações diferentes se encontrarem. A África dividida em pedacinhos pelos colonizadores de repente se encontrou aqui e tomou conhecimento de suas lutas muito variadas. A África não será mais a mesma”.

verena glass/carta maiorglover
O ator Denny Glover fez discurso apontando a responsabilidade dos EUA nos conflitos locais

Voz aos cidadãos

Outra não foi a sensação de Taufik ben Abdallah, do Senegal, um dos membros do comitê africano organizador do Fórum. “É importante que o movimento africano possa mergulhar também nesta busca de alternativas. Traz, para nossos movimentos, um novo fôlego, tem um impacto político, mas também um impacto social. Aqui temos milhares de movimentos, de cidadãos de todo o continente. Esses movimentos estão em contato com outros milhares de pessoas em seu cotidiano, nos países de origem. E transmitirão por toda parte o impulso que ganharam aqui”, disse Abdallah. “Haverá novas campanhas de sensibilização, serão impulsionadas novas ações e novas políticas. Os cidadãos e as organizações não poderão mais ser vistos como antes. Crescerá a consciência de que é necessário ouvir a sua voz.”

Segundo Abdallah, muitas vezes a democracia fica entre parênteses na África. “Temos países com ditaduras, com guerras. A curto prazo nada disso vai mudar, mas talvez a longo prazo possa haver mudanças. Os políticos ficarão mais sensíveis à voz dos cidadãos e à necessidade de implicá-los na formulação de políticas. Os políticos são muito sensíveis aos organismos internacionais, como ONU, Unesco etc. Eles ligaram sua sobrevivência mais a organismos externos do que a seus próprios concidadãos,” avaliou o senegalês.

O ator norte-americano Danny Glover, que já estivera no Fórum de 2003, em Porto Alegre, ressaltou a importância do evento na África para o restante do mundo: “Nós conhecemos pouco o que se passa na África. Aqui é um cenário decisivo, para o mundo todo. Se olhamos para a América Latina, vemos muitos processos de integração se desenvolvendo. Mas a África é um cenário de grande alcance para o que chamamos de globalização. Temos, por exemplo, toda uma corrida armamentista no continente, e temos também, para discutir, o papel direto dos Estados Unidos nesses conflitos”.

Outra presença marcante foi a da ganhadora do Nobel da Paz de 2004, a queniana Wangari Maathai, que além de participar de debates plantou uma árvore no conjunto esportivo Moi, num momento simbólico pela vida e pela paz. Cidadãos comuns também se mobilizaram, às vezes num movimento que conjugava interesse militante com a própria sobrevivência. Foi o caso da dupla de jovens Owen Ranji e Veronica Kariouki, do Quênia, que vendiam água, frutas e sorvetes, como, aliás, centenas de outros quenianos. “O Fórum vai ajudar o small people”, afirmou Veronica. Perguntada sobre o que era esse small people, esclareceu: “É quem vive no Quênia com menos de 1 dólar por dia”.

O jovem Owen relata que em seu país a maioria do povo vive abaixo da linha de pobreza. “Poucos têm meios para melhorar. Eu, por exemplo, estudei computação, tenho diploma, mas não tenho trabalho. Preciso pegar o que aparece para sobreviver, como agora.” Para ele, a presença do FSM pode melhorar a situação, por influenciar o governo. “Hoje o governo é melhor que o anterior, está se esforçando, podemos ver mudanças.”

Veronica ressalta: “Aqui se pode trocar idéias. Vocês do Brasil vêm aqui e podem nos contar sobre como agem em seu país para ajudar o small people”. Owen pondera: “O Fórum deveria alcançar mais gente. Aqui só entra quem pode pagar a entrada. Mas há o povo nas favelas, nas zonas rurais. Eles não sabem sobre o Fórum. É preciso atingir essas pessoas. Aqui estão apenas os dignitários. Deveriam visitar essa gente, a favela de Kibera (uma das maiores da África, onde foram rodadas cenas de O Jardineiro Fiel), entre outras favelas, e ver como essa gente vive”.

Owen toca num tema que provocou muitas polêmicas. O ingresso no espaço do Fórum custava 500 shillings, cerca de 7 dólares, preço alto para a maioria da população. Essa cobrança motivou muitas críticas à organização do Fórum. Numa entrevista coletiva, a direção africana da organização se defendeu: “Houve muita pressão para se abrirem os portões, de modo que todos pudessem entrar”, disse Oduor Ongwen, em nome dos organizadores. “Mas as mesmas pessoas que pediam isso reclamaram dos furtos no espaço do Fórum”, acrescentou, dizendo ainda que a entrada livre poderia provocar situação de descontrole. De fato: o número de furtos foi muito grande. Houve até um assalto à mão armada na sala de imprensa, quando foram levados todos os computadores, apesar das constantes revistas nos portões de entrada. De todo modo, houve alguma integração com a população de outras áreas de Nairóbi. Várias visitas à favela de Kibera foram organizadas. Dali partiu a marcha inaugural do FSM, pela paz, como é tradicional nessas aberturas, culminando no parque público de Uhuru, num show que teve a participação do cantor brasileiro Martinho da Vila.

Juliana Di Thomazzoforum
Muitas manifestações conjugavam interesses militantes com a própria sobrevivência

Um momento, por favor

O acontecimento desse show foi o ex-presidente da Zâmbia Kenneth Kaunda, figura carismática e remanescente das lutas pela independência. Ele simplesmente interrompeu o show de Martinho para ler seu discurso, de quase uma hora, em que ressaltou a importância de completar a independência com as conquistas sociais indispensáveis para os cidadãos africanos.

Temas tradicionais também foram abordados durante o Fórum, alguns ressaltados pelo fato de se realizar na África: a água, as dívidas dos países pobres, emprego, trabalho decente e trabalho informal, as guerras, entre elas a da Somália e Etiópia com participação dos Estados Unidos, a condição das mulheres, muitas vezes submetidas ainda a mutilações sexuais (caso da Somália) ou esterilização forçada (caso do Sri Lanka, na vizinha Ásia, que enviou uma delegação especial para denunciar essa violação).

Um tema particularmente sensível foi o da posse da terra e acesso a ela. A Via Campesina organizou um encontro africano, ao qual compareceram camponeses de dezenas de países que estavam se reunindo pela primeira vez: do Mali, Moçambique, África do Sul, Tanzânia, Uganda, do próprio Quênia de tantos outros. Um tema muito discutido foi a discriminação contra as mulheres, pois há países em que, em caso de viuvez, elas não podem herdar a terra – são consideradas propriedade do marido, e uma propriedade não pode herdar outra. Essa era a queixa principal de Veronica Mwangi, do Quênia, ela própria uma small people: “Trabalho duro e ganho menos de 1 dólar por dia”.

O sétimo Fórum Social Mundial terminou com uma maratona que partiu da paróquia de Saint John, na favela de Korogosho, puxada por Paul Tergat, queniano vencedor olímpico e também de algumas edições da Corrida de São Silvestre, em São Paulo. Havia, é claro, dois grupos distintos: os corredores, para quem a corrida era para valer, e os participantes do FSM, para quem a maratona foi mais uma espécie de marcha longa pelas favelas de Nairóbi. Na aglomeração no ponto de partida, chamava a atenção o elevado número de crianças. Algumas (poucas) em cenas pungentes, cheirando cola, ou drogadas de outro modo, com alguns adultos. Mas outras também cantando, brincando, dizendo “how are you”, saudação comum em Nairóbi. Essas crianças mostravam que naquela maratona não havia vencidos, assim como no Fórum: a única alternativa era todos serem vencedores na luta para estabelecer “um outro mundo possível”, mais equânime, mais justo.