comportamento

Na palma da mão

O celular trouxe ao dia-a-dia soluções inimagináveis há pouco mais de uma década. É capaz de criar dependência, ansiedade e impulsionar uma indústria que não pára de inventar formas de seduzir. Mas ainda há quem resista bravamente a esse big brother de bolso

Paulo Pepe

O celular se intromete em momentos para os quais não foi convidado

Não importa a hora e o lugar. Tem sempre alguém perto de você falando no celular. O aparelho pode ser simples – que faz e recebe chamadas, troca torpedos, desperta e traz alguns joguinhos – ou sofisticado, capaz de filmar, fotografar, acessar a internet, trocar arquivos de computador e abrigar sistemas de telelocalização. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estima que existam hoje no país 89.408.719 celulares em serviço. É como se metade dos brasileiros tivesse um na palma da mão. 

O dado coloca o Brasil em sexto lugar no ranking mundial, à frente do Reino Unido. E há perspectivas desse número subir. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, estima que logo o telefone móvel estará mais presente na casa dos brasileiros do que o fixo. Famílias de baixo poder aquisitivo já buscam alternativas para se livrar do pagamento da assinatura. Não é à toa que operadoras e fabricantes de aparelhos estão entre os maiores anunciantes do mercado publicitário. Um desses fabricantes identificou, em pesquisa, que o brasileiro troca de celular a cada 19 meses. Outro estudo, da Fundação Instituto de Administração da USP, revelou que o aparelho é o maior objeto de desejo de quem mora na capital paulista.

O celular é mais um fenômeno da evolução das telecomunicações, mas que não chegou de vez às classes menos favorecidas nem consolidou seu poder de sedução. “Ainda existe quem tem poder aquisitivo, mas resiste; acha desnecessário consumir tudo o que chega ao mercado”, observa a antropóloga Rosali Telerman, professora de antropologia das sociedades da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo.

A vendedora Regina Damaceno, 42 anos, por exemplo, entra na internet apenas na livraria onde trabalha, não tem e-mail particular e é avessa a aparatos tecnológicos “dispensáveis”. Em junho passado, até que tentou aderir ao celular. “Como detesto relógio e precisava de um despertador, comprei um aparelho dos mais simples. Ele nunca me deixou na mão. Eu é que o deixo sempre em casa. Nunca lembro de levá-lo comigo”, diz Regina. “Se as pessoas precisarem me achar, podem ligar na loja ou em casa. Se não me encontrarem, é só deixar recado que eu telefono depois.”

Aparelho mobilizador

Ícone de status nos primeiros anos de seu lançamento – quando surgiu comercialmente nos Estados Unidos, em 1983, custava cerca de US$ 4 mil e havia filas de espera – o aparelho evoluiu, barateou e ganhou novas funções. Não demorou para que fosse visto por olhos engajados. Em 2001, nas Filipinas, mobilizados por mensagens de texto via celular, milhares de manifestantes reuniram-se diante do Congresso para pressionar pelo impeachment do então presidente Joseph Estrada, que perdeu o mandato.

O artifício também foi usado no começo deste ano por estudantes e trabalhadores franceses nas paralisações em protesto contra a lei do primeiro emprego, que entre outras coisas permitia a demissão sem justificativa ou indenização nos dois primeiros anos de contrato. No mês passado, manifestantes contrários ao governo do Nepal, na Ásia, usavam torpedos para conclamar a população a subir em seus telhados para protestar contra o atual regime que proíbe manifestações nas ruas.

A pesquisa Cibercultura e Tsunamis: tecnologia da comunicação móvel, blogs e mobilização social, de André Lemos e Lorena Navas, feita ano passado na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, revela a importância dos torpedos logo após a tragédia de dezembro de 2004. Redes para localizar e ajudar vítimas foram rapidamente estabelecidas, já que milhares de linhas telefônicas foram tragadas pelas ondas gigantes em diversas localidades. 

Esse meio de comunicação ganhou espaço em outros domínios, inclusive religiosos. No ano passado, antes do anúncio do nome do sucessor do papa João Paulo II, fiéis presentes à Praça de São Pedro buscavam no celular informações da votação. O papa então escolhido, o alemão Joseph Ratzinger, o Bento XVI, também aderiu à tecnologia. Em agosto passado, durante sua primeira viagem à Alemanha como sumo pontífice, abençoou os jovens através de torpedos. Nos Estados Unidos, já existem serviços que, ao toque de um botão, trazem mensagens de fé a seguidores de várias vertentes religiosas.

Patologia tecnológica

O sociólogo francês Dominique Wolton, num dos capítulos do seu livro Internet, e depois? – uma teoria das novas mídias, diz que “milhares de indivíduos saem assim, celular à mão, correio eletrônico conectado e secretária eletrônica ligada como última medida de segurança. Como se tudo fosse urgente e importante, como se fosse morrer caso não pudesse ser encontrado a qualquer instante”.

É mais ou menos assim que pensa Fátima Cabral, professora de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, em Marília, que não tem celular por opção própria. “A indústria produz e o marketing se encarrega de nos convencer de que se trata de algo imprescindível”, opina. “Mas será mesmo indispensável ao nosso modo de vida, à nossa profissão? Precisamos de fato ser encontrados instantaneamente?”

A resposta é sim quando o assunto é o mundo dos negócios. Sem loja ou escritório para atender seus clientes, o vendedor de ferramentas automotivas Renato Alves de Oliveira passa o dia na rua, comprando as mercadorias para atender encomendas que chegam pelos dois celulares que não param de tocar. Para o comerciante, seria impossível trabalhar ficar sem. “Eu diria que, no meu negócio, o carro é 50%, o celular 45% e os 5% ficam por conta dos meus contatos.”

O apego ao celular chega a extremos para muita gente que já começa a utilizá-lo inclusive para fazer movimentações bancárias. Até o momento em que essa reportagem estava sendo finalizada, havia mais de mil comunidades no site de relacionamentos Orkut enaltecendo a dependência em relação ao aparelho – ou aparelhos, em muitos casos. Aliás, viver sem ele é possível para apenas um terço dos usuários americanos, conforme revelou um estudo recente. Outro terço disse que não sobreviveria sem, enquanto que 45% afirmou que sentiria falta, mas poderia ficar sem. A psicóloga Luciana Rufo, colaboradora do Núcleo de Pesquisa e Psicologia em Informática da PUC de São Paulo, considera o celular prático, porém um mal moderno, que contribui sobretudo para o aumento da ansiedade. “Antes, se você não encontrava a pessoa, deixava recado. Hoje, não sossega enquanto não conseguir ouvir a voz dela pelo celular”, diz.

Mais do que um símbolo de ostentação, o aparelho pode camuflar medos e angústias. “Será que vão me ligar de novo caso não me encontrem?” A especialista, que atende pessoas com dependência patológica das novas tecnologias, deixa uma dica. Quando você parar de comer ou dormir direito para falar ao telefone, ou não desgrudar dele mesmo na companhia de outras pessoas, seu comportamento já merece mais atenção. Está na hora de verificar a bateria – a sua, não do celular.

Para o bem e para o mal

Na Alemanha, segundo o jornal Deutsche Welle, o celular está sendo usado também no combate ao crime. Maiores de 16 anos cadastrados no site da polícia recebem textos curtos, descrevendo o crime e os bandidos envolvidos.

Por aqui, é o crime organizado que tira proveito da tecnologia. De dentro das prisões, os bandidos organizam assaltos, resgates, extorsões, seqüestros, orientam seus “subordinados”, encomendam assassinatos. Fora delas, integrantes de quadrilhas avisam a chegada da polícia ou de membros de facções rivais. A “guerra” entre o PCC e as forças de segurança pública de SP escancarou essa função do celular.

Paulo PepeRenato
Para o vendedor Renato, trabalhar sem os dois celulares é impossível