Opinião

Muito além do etanol

Bush quer recuperar terreno no continente e isolar a esquerda. É preciso um amplo debate para apurar se um acordo à primeira vista bom pode trazer retrocesso no futuro

Ricardo Stuckert/PR

Bush quer recuperar terreno no continente e isolar a esquerda. É preciso um amplo debate para apurar se um acordo à primeira vista bom pode trazer retrocesso no futuro

Os acordos em torno do etanol que o governo brasileiro pretende firmar com os Estados Unidos ainda não são públicos. Há pelo menos dois pontos pouco claros nesses entendimentos. Um a respeito de questões socioambientais provocadas pelo cultivo da cana-de-açúcar numa proporção muito maior que a atualmente existente. Outro envolve a aproximação entre Brasília e Washington, num nítido afastamento de Lula dos governos de esquerda da América Latina.

O governo brasileiro opta por um tipo de produção agrícola possível apenas por meio de lavouras extensivas, em enormes áreas de terra. Não se produz cana em unidades de agricultura familiar. Fica num plano secundário a reforma agrária e reforça-se o agronegócio. O Brasil vê no etanol uma forma de reestruturar sua economia. Mas quer crescer sem romper com os constrangimentos que impedem o desenvolvimento. Ou seja, sem mudar a política de juros elevados, alto endividamento público e a prioridade ao capital financeiro.

A política do etanol tem defensores competentes. De acordo com o economista Luís Augusto Barbosa Cortez, coordenador de Relações Institucionais e Internacionais da Unicamp, se o país produzir 130, 140 bilhões de litros e vender a 1 real o litro, teremos R$ 140 bilhões por ano. “É muito dinheiro e representa 40% das exportações atuais”, diz ele em entrevista ao boletim Inovação, da Unicamp.

No entanto, há outros aspectos a ser considerados. Os EUA desejam reduzir a dependência de combustíveis fósseis. Há quase uma década não se descobrem jazidas significativas e o consumo mundial – com a entrada da China como grande consumidor – não pára de aumentar. A revista britânica The Economist estima que a produção mundial se esgotará por volta de 2045, levadas em conta apenas as reservas conhecidas. Até lá, os preços chegarão a níveis insuportáveis. A previsão é que em três anos o preço do barril cresça mais de 50% e alcance 100 dólares.

Os EUA querem chegar à adição de 20% de etanol na gasolina até 2017. Isso reduziria o consumo. Coincidência ou não, o percentual equivale ao volume de petróleo importado da Venezuela. Para atingir tal proporção, a Casa Branca conta com fornecimento de sua produção interna, a partir do milho, e de países da América Latina, a partir da cana. A utilização do milho para o etanol já está provocando uma elevação dos preços do produto, acarretando aumentos em diversos alimentos. No Brasil, a expansão da monocultura da cana pode substituir áreas destinadas ao plantio de alimentos, ocasionando também uma pressão sobre os preços desses produtos.

Na questão política, o panorama é igualmente delicado. O etanol a ser produzido não busca incentivar a soberania regional, mas abastecer a frota de automóveis americana. A professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente Maria Aparecida de Moraes Silva diz em entrevista à agência Notícias do Planalto: “Sempre respondemos às necessidades externas, e não às internas. Produzimos sempre o que os países de fora estão precisando. Primeiro foi cana-de-açúcar, depois ouro, café, borracha. Neste momento estamos vivendo essa situação”. Para ela, a produção de etanol no Brasil segue a geopolítica dos EUA.

Muitos acham que a política externa do governo Lula é independente. As negociações com George W. Bush deixam de lado tal argumento. Da parte do governo dos EUA, os acordos têm o nítido sentido de isolar a esquerda no continente, recuperando terreno perdido para Hugo Chávez e para os governos nacionalistas e progressistas da região.

É preciso estabelecer um amplo debate nacional antes que o país assine, sem suficiente conhecimento da sociedade, um contrato que à primeira vista traz benefícios – mas a longo prazo pode representar um gigantesco retrocesso.

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Carta Maior, é doutor em História pela
Universidade de São Paulo e autor de A Venezuela Que Se Inventa – Poder, Petróleo e Intriga nos Tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo)