entrevista

Mezzo cineasta, mezzo político

Pino Solanas e sua batalha cultural para democratizar a democracia

Eduardo Seidel

Solanas durante a entrevista em sua casa em Olivos, na Grande Buenos Aires

Fernando “Pino” Solanas hoje é deputado nacional pela cidade de Buenos Aires e encabeça o Proyecto Sur, movimento político que reúne o Partido Socialista Autêntico, a ala social da Central de los Trabajadores Argentinos (CTA), além de outras frentes importantes da esquerda argentina. Diretor e roteirista de um dos mais importantes filmes latino-americanos da década de 1980, Solanas se dedica a registrar a Argentina pós-crise em documentários. Enquanto Sur, de 1988, melhor direção em Cannes e Prêmio do Júri do Festival de Havana, despeja na tela uma história de amor ao país em ficção, Memória do Saqueio, A Dignidade dos Ninguéns, Argentina Latente e A Próxima Estação montam hoje o mosaico cinematográfico da Argentina contemporânea.

Não apenas em filmes Solanas denunciou o saqueio promovido pelos delírios neoliberais de Carlos Menem. Depois de uma série de entrevistas nas quais abria fogo contra o então presidente argentino, levou seis tiros nas pernas em 1991, episódio que ficou claro como um atentado. O novo alvo de Solanas é o casal Kirchner. Tanto que, pela frente de esquerda Proyecto Sur, pretende concorrer às próximas eleições presidenciais na Argentina, em 2011. A candidatura se baseia em um plano de governo em que as principais linhas estão na nacionalização da mineração e da exploração do petróleo argentino. Em setembro, Solanas lançou o primeiro de uma nova série de filmes que expõe a contaminação e a destruição do meio ambiente na zona de cordilheira que o Chile e a Argentina compartilham. “A água é mais importante que o ouro”, afirmou o cineasta durante a apresentação de Tierra Sublevada – Oro Impuro, no cinema Gaumont, em frente à Praça do Congresso, em Buenos Aires. A película é uma viagem pela depredação e saqueio dos recursos minerais e pelas lutas comunitárias contra a crescente contaminação das terras.

Oro Impuro teve estreia movimentada e quase não pôde ser exibido em Buenos Aires. Na primeira noite, ônibus de sindicatos patronais das mineradoras recrutaram trabalhadores sob a alegação de que o filme seria responsável caso os empregos na região sumissem. A briga polarizou trabalhadores e moradores das comunidades atingidas pela mineração e atrasou a projeção em algumas horas. As explorações ao ar livre com cianureto que as corporações instalaram no noroeste argentino – San Juan, La Rioja, Catamarca, Tucumán e Salta – provocaram verdadeiros levantes contra a contaminação do solo e da água. Nas jazidas, colinas voam com explosivos e se utilizam diariamente de 80 milhões a 100 milhões de litros de água potável, que são misturados com 10 toneladas de cianureto.

Depois da estreia do filme, Solanas recebeu a reportagem da Revista do Brasil em casa, num sábado frio e seco em Olivos, na Grande Buenos Aires. Nesta conversa, regada a chá verde, ele revisa a história política argentina, fala de cinema e cultura, não poupa críticas ao casal Kirchner e apresenta o Proyecto Sur.

Sur não é seu primeiro filme, mas ficou conhecido pelas premiações. O que mudou desde Sur até hoje?

A crise social dos fins de 2001, com a queda do governo de (Fernando) De la Rúa, marcou um antes e depois na Argentina. Eu voltei a filmar pelas ruas e foi nascendo a ideia de fazer um filme sobre a crise mirando, sobretudo, uma geração jovem que não entendia direito o que estávamos passando. Era um momento no qual o país contava milhares de desnutridos, uma alta porcentagem de mortalidade infantil e de indigentes que não tinham atenção médica. Os dados oficiais somaram mais de 35 mil mortos em 2001. Tudo aquilo me levou a pensar em um filme retomando o que eu havia começado há quase 40 anos, que era o filme La Hora de los Hornos. Retomei um pouco esse caminho inicial de películas de investigação, de correr o país, viajar, olhar as pessoas. No final, tudo era tão grande que eu me dei conta de que teria de fazer vários capítulos de uma obra. Memória do Saqueio é tentar explicar os anos 90, o neoliberalismo do governo de (Carlos) Menem. A Dignidade dos Ninguéns é a resposta dos populares às políticas neoliberais, como se defendeu a gente frente à falta de trabalho, de comida, de segurança social. São dez histórias reais contadas por seus protagonistas, que vêm de distintos setores sociais unidos pela cooperação e pela solidariedade. Professores, um assistente social de um grande hospital, indigentes de um bairro que se organizaram para dar o que comer às crianças, fábricas recuperadas, tomadas e recolocadas em funcionamento. Argentina Latente, por sua vez, fala sobre as potencialidades técnicas, industriais e científicas do país. Finalmente, a quarta película foi sobre a destruição do sistema ferroviário, A Próxima Estação.  

Esses filmes formam um importante mosaico da história recente na Argentina. O cinema pode funcionar como terapia coletiva de um país e ajudar uma nação a entender o que se passou?

Isso é muito importante. Um filme ou um livro não mudam a realidade de um país, mas ajudam muito. Passei os últimos dez anos falando sobre o saqueio da mineração no país e sobre a contaminação. Os que estão ao meu redor já escutaram mil vezes meus argumentos e podem repeti-los letra por letra. Mas eles não tinham as imagens. Quando saímos do cinema depois da exibição de Oro Impuro, as pessoas me diziam “que coisa extraordinária!” E eu respondia: “Pô, vocês já me escutaram falar sobre isso mil vezes”. E eles disseram que não imaginavam que era assim. Entende? Esse é o valor do cinema, e isso não se apaga. O valor do cinema de testemunho é levar o espectador até regiões que ele não conhece e dificilmente conheceria. Descobrir um país e explicá-lo é importante. Não é um simples filme de denúncia, ele se explica. É cinema de ensaio, de investigação. Qualquer uma dessas películas não se faz em menos de um ano e meio… 

    A crise social dos fins de 2001, com a queda do governo De la Rúa, marcou a Argentina. E foi nascendo a ideia de fazer um filme sobre a crise mirando uma geração jovem que não entendia o que estávamos passando      

Os filmes sobre a mineração levaram dois anos apenas em filmagens…

Sim, pelo menos. E ainda existe toda a parte de montagem. Nos documentários, é na montagem que se compõem de verdade o roteiro e o filme. Quando você sai a buscar, filmar, investigar, não sabe o que vai encontrar e tudo isso modifica suas ideias iniciais. Em março ou abril do ano que vem, estreia a segunda parte de Tierra Sublevada, que é Oro Negro, sobre o petróleo.  

Entender o peronismo e as últimas correlações de forças no país nos parece bastante difícil…

Bueno, o peronismo nasce em 1945 frente a uma Argentina oligárquica, aristocratizante, uma semicolônia inglesa. E houve um movimento impulsionado pelo nacionalismo popular frente à crise e ao esvaziamento da política. Ali se juntaram várias causas. O peronismo se junta com uma migração do velho Partido Radical, mas também de todos os setores dos distintos pontos da esquerda. Foi como o nascimento de uma causa patriótica protagonizada pelos trabalhadores, foi nossa pequena revolução social. Claro que todo o sistema midiático, oligárquico e os partidos conservadores e tradicionais o acusaram de fascista, outros de bolchevique e até comunista. E era um movimento nacional popular que havia tomado alguns setores das Forças Armadas, seguindo noções de um nacionalismo popular da independência, não do nacionalismo da burguesia norte-americana, por exemplo, que é um nacionalismo imperialista. Pense que o primeiro bloqueio norte-americano na América Latina no pós-Segunda Guerra é aqui na Argentina. Pela primeira vez, a greve não era delito, se construíram mais escolas que em toda a história da Argentina, as oito horas de trabalho se estabeleceram, assim como o sábado de folga. Para a burguesia foi terrível. O processo de desenvolvimento industrial também foi marcado pelo peronismo.

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E o que Juan Domingo Perón diria sobre o casal Kirchner hoje?

Que não são peronistas. As duas grandes causas democráticas e progressistas de massa que aconteceram na Argentina foram esvaziadas de conteúdo. Aos fins do século 19, a Revolução do Parque é encabeçada por uma figura ética extraordinária, o fundador do Partido Radical, Leandro Alem. O movimento vai crescendo e, em 1912, pela primeira vez há o voto obrigatório e secreto e triunfa o governo radical de (Bernardo de) Irigoyen, cuja base de sustentação era formada por grandes setores médios e trabalhadores. O radicalismo foi um momento democrático muito importante. Em 1930, o primeiro golpe oligárquico militar da Argentina do século 20 acontece. Cai o governo de Irigoyen e, nos 15 anos seguintes, temos ditaduras e governos pseudodemocráticos. Até Perón, em 1945, que ganha uma eleição por enorme maioria. Bueno, radicalismo e peronismo possuem conteúdos democráticos e transformadores muito parecidos, mas aquelas causas desapareceram, fica a pele, ficaram as estruturas partidárias, que é outra coisa. Ficaram os partidos, os instrumentos, a burocracia partidária, negociadora, traidora e corrupta. Tu vais dizer: “Ah, não digas assim”, mas é a história da Argentina. E o kirchnerismo descende disso. Difícil ganhar deles em picardia. Los Kirchner? No les dé la espalda, ni te agaches, que te hacen cuatro hijos.  

E a atuação da Argentina na Unasul, como o senhor avalia?

O projeto da Unasul é fundamental para a América Latina, sem ele não há destino para nenhum de nós. Dependeremos da sabedoria dos nossos dirigentes, e não falo apenas dos políticos, mas dos dirigentes econômicos e industriais, que saibam interpretar bem as coisas. E que cedam, cada um, para conquistar algo. Ninguém vai conquistar tudo. A sabedoria está em nos aproximarmos e enxergarmos a longo prazo. Nossa tragédia é que são tantos os problemas do dia a dia que só vemos fogo aqui, fogo ali, e não vemos o incêndio completo, ou não vemos que no final está o sol, está amanhecendo logo adiante.  

Um filme ou um livro não mudam a realidade de um país, mas ajudam muito. O valor do cinema de testemunho é levar o espectador até regiões que ele não conhece e dificilmente conheceria

E os planos do Proyecto Sur convergem de que forma nesse cenário?

Nas próximas eleições, o Proyecto Sur ganhará a cidade de Buenos Aires. Porque os distintos partidos de centro-esquerda e esquerda que concorrem sozinhos, em uma eleição polarizada, votam conosco. Somos companheiros de toda a vida, mas vamos em listas separadas porque todos querem eleger deputados. Nós nascemos em 2002, como um núcleo que estudava uma proposta para a Argentina. E, em 2007, quando Kirchner autorizou a prorrogação das concessões das petroleiras por 30 anos mais sem debater o tema, nos demos conta de que havia um enorme vazio no país e era necessário nos transformarmos em força política. Em 45 dias de campanha em nossa primeira eleição, saímos em quinto lugar, na frente de alguns partidos tradicionais, e conseguimos eleger um deputado na capital. Nosso projeto incluiu nacionalizar o petróleo e o gás e revisar todas as concessões. Temos um terço da população na pobreza, e com a renda anual gerada pelas nacionalizações poderíamos acabar com os indigentes no país. O outro ponto que nos é caro é relançar uma verdadeira revolução no ensino, na ciência, na tecnologia e na saúde. Democratização da democracia. Não se pode fazer tudo isso sem um aprofundamento da democratização das instituições da República. Precisamos democratizar os partidos políticos, o futebol, os sindicatos. A maior parte das indústrias terceiriza as funções, 55% dos trabalhadores argentinos trabalham sem seguridade social. Essa é uma batalha cultural de democratizar a sociedade para caminhar rumo a uma democracia participativa e social de verdade. E, em 2011, nos apresentaremos. É prematuro dizer se ganharemos, mas já fui candidato à Presidência e, em Buenos Aires, estamos no topo das pesquisas.