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Machado, o contemporâneo

Machado de Assis é um dos escritores mais estudados e debatidos, quase 100 anos após sua morte. Mais que “escritor do século 19”, a força de sua obra e de seus personagens o torna perene

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Joaquim Maria Machado de Assis perdeu a mãe e o pai muito cedo e foi criado pela madrasta, a lavadeira Maria Inês, por quem tinha grande afeto. De tanto freqüentar a livraria de Francisco de Paula Brito, ponto de encontro da intelectualidade do Rio de Janeiro, ganhou, aos 17 anos, uma vaga de aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, onde trabalhou até 1858. Manuel Antônio de Almeida, o autor de Memórias de um Sargento de Milícias, então diretor da editora oficial, logo compreendeu o valor daquele jovem e ajudou-o na sua breve carreira.

Como tipógrafo da Imprensa Nacional, Machado foi no mínimo testemunha privilegiada de um acontecimento insólito. No começo de 1858, a cidade do Rio de Janeiro, capital do país, foi sacudida pela notícia de que estourara uma greve entre os tipógrafos que trabalhavam nos poucos jornais da cidade. Os donos dos jornais pediram à Imprensa Nacional que enviasse os seus tipógrafos para substituir os grevistas. Em assembléia, eles se recusaram.

Do movimento nasceu o Jornal dos Tipógrafos, que durou três meses e foi a primeira publicação alternativa brasileira feita por trabalhadores – um tataravô histórico desta Revista do Brasil. Os jornais que os tipógrafos publicaram traziam, em plena Corte brasileira escravista, idéias dos socialistas que seriam depois denominados por Karl Marx (1818-1883) “utópicos”: Charles Fourier (1772-1837), Claude Saint-Simon (1760-1825), o romancista Eugène Sue (1804-1857).

Não se sabe qual foi a atitude do jovem Machadinho diante daquele movimento, mas o acontecimento e seus componentes ilustram a peculiaridade de idéias que circulavam nesse mundo da tipografia em que o futuro imortal se criou.

Machado, que se notabilizaria primeiro na crítica literária, primou por ter idéias bastante animadas para a época. Um de seus primeiros escritos publicados – O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura –, em abril de 1858, atribui à literatura, à política e à crítica funções claramente reformadoras da sociedade, se não revolucionárias. Mas com o passar do tempo tais ardores foram deixados de lado. O jovem Joaquim acabou se tornando um “monarquista cético”: para ele, era melhor o Brasil ter um soberano esclarecido do que enveredar pelos conflitos insolúveis em que se debatiam as repúblicas vizinhas. Fez carreira brilhante como funcionário público, do Império à República. E também como escritor. Em 1906, quase no fim da vida (morreu em 1908), presidia a Academia Brasileira de Letras e era diretor da contabilidade do Ministério da Viação.

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Carreira brilhante

De suas narrativas, no romance ou no conto, ou como ensaísta e dramaturgo, além de poeta e até compositor de modinhas, resultou sua imortalidade. Machado de Assis criou personagens que fazem parte da nossa memória coletiva, como a extraordinária Capitu, a “dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ou dos “olhos de ressaca”, ao lado de seu marido, o tíbio Bento Santiago, que ganha o apelido que dá título a Dom Casmurro. Ou como o paradoxal Brás Cubas, o “defunto autor ou autor defunto” de suas Memórias Póstumas…, no qual faz uma descarada confissão de seus vezos de menino flor de nossas classes dominantes, completamente descompromissadas com o país e seu povo, e de seu tórrido adultério com Virgília, mulher de seu melhor amigo.

Fazem parte dessa galeria de tipos imorredouros os loucos Rubião e Quincas Borba, além de Flora, a moça que não consegue se decidir entre os gêmeos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, o desiludido diplomata Aires do Memorial que leva seu nome, e ainda a ardente Helena, a interessante Iaiá Garcia, dos romances de sua primeira fase.

Uma das razões para a perenidade de Machado, além de seu talento insubstituível, é que ele plasmou em letra literária, como poucos, os dramas e impasses da cordialidade brasileira, essa moldura cultural e política que faz o nosso espaço público permanentemente ocupado e saqueado pelos interesses, desinteresses, afetos e desafetos do mundo privado. Seu legado é o retrato de um Brasil bastante cruel.

Sem rodeios, seus personagens situam seus leitores no que o autor pensa ser a fragilidade desesperançada do ser humano, e na dificuldade de construir um país sobre a base histórica da escravidão, que tantas cicatrizes deixou. Isso ajuda a entender sua presença contemporânea: os problemas apontados são da herança brasileira presente, ainda.