Baseado em dores reais

Depois de mais de 40 anos de jornalismo, Bernardo Kucinski compila, em contos ficcionais, danos e perdas de um passado que ainda tortura suas vítimas

Depois de mais de 40 anos no jornalismo, Bernardo Kucinski lança seu primeiro livro de “ficção” (foto: © Paulo Pepe)

Há algum tempo, Bernardo Kucinski procurou-me para informar que iria se aposentar de vez da produção jornalística. Aos 74 anos, mais de 40 anos na área, trabalhou em dezenas de publicações, do Brasil e do exterior. Escreveu mais de dez livros e participou de outros tantos. Assessorou Lula antes e depois da primeira eleição. Ajudou a criar veículos como Carta Maior e esta Revista do Brasil. De repente, chega e diz que vai dedicar-se somente à “ficção”. Ponho entre aspas porque verifiquei depois que a ficção de Kucinski traz uma carga pesada de realidade. Essa percepção surge logo à leitura dos primeiros rascunhos de um romance policial que me enviara, tendo como pano de fundo crimes no interior da Faculdade de Física da USP. Em seguida, B.Kucinski (como passou a assinar) entusiasmou-se com a voracidade com que fatos remoídos na turbulência de suas memórias fluíam em questão de minutos do teclado para o computador. O romance ainda está guardado e as crônicas aos poucos vão saindo.

K., de B.KucinsckiO primeiro livro de contos, K., sai agora pela Expressão Popular – com livraria virtual em www.expressaopopular.com.br. A compilação de textos reunidos na obra – dois trechos são reproduzidos nestas páginas e um na página 50 –, segundo o próprio autor, “é tudo invenção, mas quase tudo aconteceu”. Em entrevista que o leitor poderá encontrar na íntegra na página da RdB na internet, Kucinski relata que a produção mistura experiências suas com as de seu pai, na busca de informações sobre a irmã, Ana, uma das pessoas desaparecidas pelos aparelhos de repressão da ditadura de quem nunca mais tiveram notícia. E revela que pessoas ligadas ao regime ainda se divertem com a dor das famílias de presos, desaparecidos e mortos pela repressão: “Outro dia uma mulher telefonou para o meu filho e disse: ‘Eu estou chegando do Canadá e eu estava em uma mesa conversando em português e apareceu uma senhora que disse que se chamava Ana Rosa Kucinski’… Isso foi agora e o desaparecimento, há mais de 30 anos. A mulher deixou telefone, nome dela… Tudo fajuto! É inacreditável”.

K. tem dois lançamentos programados:

  • Dia 27 de outubro, 19h30, na Livraria Expressão Popular, com debate. Rua Abolição, 201, Bela Vista, São Paulo
  • Dia 31 de outubro,19h, no bar Canto Madalena. Rua Medeiros de Albuquerque 471, Vila Madalena, São Paulo

Antes de finalizar seu projeto ficcional, o autor buscou a opinião de amigos. Recebeu da historiadora Maria Victoria Benevides um desabafo: “De todos os livros que já li sobre esse horror, K. é o que mais me emocionou. Minha emoção é primeiro de compaixão (solidariedade com a dor), depois de enorme raiva e indignação pela indiferença de tantos; pelo ‘perdão’ aos torturadores e demais responsáveis, garantido pelo STF; pela crueldade dos que até hoje martirizam sua família com “informações”; pelo papel nojento da USP; pelos políticos que têm ojeriza ao tema porque não dá voto; pelos ‘ex-combatentes’ que falam não querer revanchismo… a lista é longa”. E do amigo Flávio Aguiar vem uma definição irretocável: “No passado o pai procura resgatar a filha ou pelo menos a sua imagem; o escritor de hoje tenta impedir o esquecimento e reconstruir a memória. A narrativa é fragmentária, através de instantâneos elaborados a partir de detalhes, objetos, palavras que liberam esperanças e desilusões. Se a dor suprema pertence ao pai, a sua tragédia é a de todos”.

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