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Legitimidade para prosseguir

Lula diz que o novo governo se chamará “desenvolvimento”. Mas, na agenda do país, a pressão da sociedade será decisiva para apontar os rumos do governo, do Congresso e a qualidade do segundo mandato

Ricardo Stuckert/PR

Luiz Inácio Lula da Silva esperou o telefonema do adversário Geraldo Alckmin – às 20h do domingo 29 de outubro – para então fazer as primeiras declarações como presidente reeleito. Na semana que se seguiu à vitória, a confirmação da vantagem de quase 21 milhões de votos foi interpretada pelo presidente como “plena legitimidade” ao exercício do poder. E citou uma série de certezas para o próximo período: “O nome do segundo mandato será desenvolvimento – desenvolvimento com distribuição de renda e educação de qualidade”, afirmou, em pronunciamento no dia 31. Já não se trata de promessa de campanha, mas de compromisso a ser cobrado ao longo dos próximos quatro anos.

Para se antecipar a essas cobranças, Lula aposta que o palanque eleitoral montado desde o início do ano passado pela oposição se desarme e dê lugar ao debate político: “Conclamo toda a sociedade, a começar pelas lideranças políticas e movimentos sociais, a unirmos o Brasil em torno de uma agenda comum de temas de interesse geral”. Ou seja, Lula sabe que terá de enfrentar dificuldades no Congresso e com a oposição, e alerta a sociedade, inclusive os movimentos sociais, a tomar assento no jogo.

Para o analista Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o governo corre o risco de fazer “concessões à direita” na Câmara e de ter dificuldades ainda maiores no Senado. Mas ele não vê espaço para o fisiologismo, o toma-lá-dá-cá. “Acho que não há ambiente para isso. Tudo o que aconteceu foi por causa desse apetite. Com as instituições funcionando, a imprensa fiscalizando e a sociedade vigilante, essa possibilidade é bem menor.”

Levantamento feito pelo Diap mostra uma Câmara menos socialdemocrata e mais liberal, por causa da formação e da fonte de renda dos novos parlamentares. Por isso, o Diap vê inclusive “espaço para novas tentativas de propostas em bases neoliberais, como a flexibilização da legislação trabalhista”. Segundo o perfil ideológico preparado pelo instituto, 36% dos parlamentares que assumirão em 2007 são de centro-esquerda, 33% estão no campo da centro-direita e 31%, no centro. Mais da metade (52%) são profissionais liberais e 23% são empresários.

O professor Paulo Roberto Figueira Leal, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), também vê dificuldades para o novo governo: “É muito pouco provável que a oposição dê trégua a Lula”. Isso também dependerá de entendimentos internos no bloco de oposição, acredita o professor, que põe de um lado os governadores eleitos de Minas Gerais e São Paulo, Aécio Neves e José Serra, e de outro o candidato derrotado Alckmin e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Os dois primeiros mais dispostos ao diálogo e a outra dupla mais resistente a entendimentos.

O cientista político Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), acredita que o governo encontrará na Câmara uma bancada oposicionista menos disposta a cooperar, embora do ponto de vista numérico Lula possa ter uma situação de igual a melhor que a anterior. “A ala governista do PMDB terá mais poder”, aposta Nicolau. A colunista política de O Globo Tereza Cruvinel considera que Lula terá condições muito melhores agora. “Terá o apoio de 16 governadores, uma maioria simples na Câmara e uma situação difícil no Senado: 41, contra 40, votos da oposição. A oposição manteve o poder (1/3 de votos) de convocar CPIs nas duas Casas. Então, que se cuide para não dar pretextos”, observou a colunista.

As análises coincidem quando se discute a falsa polêmica sobre a polarização, na eleição, entre ricos e pobres. “Foi retórica de campanha”, diz Jairo Nicolau. Segundo Marcos Coimbra, diretor do instituto de pesquisas Vox Populi, embora não se possa negar a preferência de eleitores de menor renda e instrução por Lula, falar em divisão no país foi um dos principais equívocos da campanha eleitoral. “Lula está ganhando a eleição porque conseguiu comparar favoravelmente o seu governo com o anterior”, afirmou Coimbra à agência Reuters poucos dias antes do segundo turno.

O desafio será recompor alianças, algumas possivelmente polêmicas, enfrentar uma oposição ainda ressentida – apesar de uma parcela dessa oposição aceitar o diálogo –, equilibrar o jogo no Congresso e dar ênfase a políticas sociais.

“Só a eleição não resolve”, afirmou o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos. “Os movimentos sociais ficaram com uma série de críticas relacionadas a alguns itens da política econômica. Para o próximo governo, teremos de rever o processo de articulação e entendimento dos movimentos sociais. Não basta só pressionar o governo, mas também o Congresso.”

Parte da agenda do país – que depende de o Executivo e o Legislativo andarem – foi rascunhada ao longo do primeiro mandato pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão consultivo criado por Lula para reunir representantes de todos os setores da sociedade e suas respectivas demandas. Dessa agenda esboçaram-se propostas para os três eixos da esfera governamental. O eixo econômico – com destaque para a democratização do Conselho Monetário Nacional, hoje monopolizado pela Fazenda e pelo Banco Central; o eixo social, com destaque para as prioridades relacionadas à educação, que o presidente parece ter assimilado de fato; e o da infra-estrutura, que tem entre os desafios fazer sair do papel as parcerias público-privadas. “Acho que há uma unanimidade quanto à redução dos juros”, diz o presidente da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), Sérgio Haddad. “Não há perigo de inflação, os riscos não se mostram elevados e o país clama por mais emprego e distribuição de renda, diminuindo a desigualdade social.”

Sustentabilidade

“O que fará o Brasil crescer de forma sustentável é cuidar de sua população”, observa o presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Oded Grajew – que assim como Sérgio Haddad integrou o CDES. O empresário costuma enfatizar que o Brasil já teve momentos de forte crescimento, como nos anos 50 e 70, que nada significaram em termos de distribuição de renda e, pior, foram uma tragédia do ponto de vista ambiental. Ele lembra que a devastação da Mata Atlântica e da Amazônia é resultado de momento de crescimento econômico que trará grandes prejuízos no futuro.

“Crescimento sustentável é o que traz benefícios às atuais e futuras gerações”, defende. “O crescimento, conforme a rota, pode destruir ou aprofundar as desigualdades. É importante discutir a qualidade do crescimento.” Ele cita como exemplo o uso dos recursos públicos. “Os países mais bem colocados no Índice de Desenvolvimento Humano têm carga tributária bem maior que a do Brasil. É uma carga justa socialmente, e a distribuição do orçamento é para beneficiar os que mais necessitam. Aqui, nós arrecadamos dos pobres e distribuímos para os ricos.”

Segundo Grajew, três reformas deveriam ser vistas como prioridade para o país: política, fiscal/tributária e do Estado. “Essas três coisas nenhum governo irá fazer se a sociedade não pressionar”, alerta. “A prioridade deve ser o aumento da participação da maioria da população no usufruto dos bens e serviços que ela ajuda a produzir. Tudo deveria girar em torno disso”, diz Had-dad. “Estamos começando a fazer isso, mas de maneira muito tímida para as necessidades do país.”

Para o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio, a discussão sobre um projeto de desenvolvimento para o país ainda é recente. “Crescimento econômico tem de ser distributivo. Uma aposta pesada na educação tem tanto um componente social, ao elevar a escolaridade da população, como um fator de sinergia econômica. Isso promove redução de custos lá na frente”, analisa.

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo lembra que são praticamente 25 anos de baixo crescimento, com situações diferentes. “No período de Fernando Henrique fizemos a combinação entre política monetária e cambial que freou o crescimento. Todo mundo imaginava que depois as coisas mudariam, mas aí teve o apagão, que desorganizou tudo de novo. A partir de 2003, houve uma espécie de demora, do Banco Central sobretudo, em perceber que a situação internacional tinha mudado. A situação macroeconômica permitiria hoje uma política mais ousada.” E o primeiro passo nesse sentido, acredita Belluzzo, seria reduzir juros. “Você precisa mudar o sinal da política fiscal, precisa incentivar o investimento público.”

Marco Aurélio GarciaA voz dos termocéfalos

Com 58,295 milhões de votos dados ao presidente reeleito, que venceu em 19 dos 27 estados e no Distrito Federal, o debate sobre impeachment, ensaiado por algumas forças oposicionistas e colunistas de jornais, tende a arrefecer. Nas duas semanas que antecederam a eleição, a RdB procurou três dos principais líderes do PSDB e do PFL. Nenhum quis falar sobre o tema. Um deles chegou a dizer que falar sobre isso antes de 29 de outubro “traria azar”.

Segundo jornalistas que acompanham o dia-a-dia dos próceres tucanos e pefelistas, a visão predominante é de que será difícil levar a discussão adiante com um presidente com votação e popularidade tão expressivas. Para um analista, o segundo turno, além de colaborar com algum debate em torno de idéia, contribuiu para esvaziar o ímpeto da oposição. Em declarações poucos dias antes da eleição, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também praticamente retirou o tema da agenda política.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, achou mais prudente não se pronunciar. Em maio, quando a OAB decidiu arquivar o assunto, ele declarou que o impeachment voltaria a ser discutido se houvesse “uma situação incontornável”. Para o presidente do PT e coordenador de campanha de Lula, Marco Aurélio Garcia, o debate era coisa de alguns “termocéfalos” da oposição. Sem verbete no dicionário, termocéfalo pode ser interpretado como alguém de cabeça quente. Algumas ainda precisam esfriar. Serenados os ânimos, Garcia acredita que possa haver entendimento em torno de alguns projetos.

Colaboraram Cláudia Motta e Xandra Stefanel