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Jogando no escuro

Graças à crise e à ajuda de empresas e investidores, o mundo não foi tão voraz em levar nossos craques embora. De imediato, os clubes e os campeonatos agradecem. Mas fica o risco de um futuro catastrófico

Ricardo Nogueira/Folha Imagem

Com os gols de Keirrison, o Palmeiras vai atrás da Taça Libertadores, título ainda inédito na carreira de Vanderlei Luxemburgo

Na Libertadores, o São Paulo de Hernanes, reforçado pelos gols de Washington, vai atrás do título que falta na era Muricy. O Palmeiras, com Keirrison e Edmílson, busca uma taça que falta a Vanderlei Luxemburgo. No Grêmio, Souza e Tcheco têm a companhia de Alex Mineiro. O Cruzeiro, com o talento de Ramires e a força de Kléber, também quer chegar lá. O Sport, que aposta as fichas no veterano Paulo Baier, corre por fora. Na Copa do Brasil, as atrações são Ronaldo no Corinthians, D’Alessandro, Alex e Nilmar no Internacional, Kléber Pereira no Santos, Thiago Neves no Fluminense, Reinaldo no Botafogo, Léo Moura e Juan no Flamengo, Diego Tardelli no Atlético Mineiro. E valem também para o Campeonato Brasileiro, que começa em maio. Se fosse há uma década, essa safra de jogadores talvez nem sobressaísse tanto. Mas em tempos em que os times brasileiros não conseguem nem deter o assédio de clubes pouco expressivos do Leste Europeu, da Coreia ou do Oriente Médio, a manutenção desses jogadores é reforço para o futebol nacional.

Dos grandes, apenas três jogadores deixaram o país na janela de transferências que se encerrou no dia 1º de fevereiro. O zagueiro Thiago Silva trocou o Fluminense pelo Milan. O volante Rafael Carioca deixou o Grêmio para jogar no Spartak Moscou, da Rússia. E Guilherme, do Cruzeiro, se mandou para o Dinamo Kiev, da Ucrânia. A diminuição do êxodo bem que poderia significar que os clubes brasileiros encontraram o equilíbrio entre receitas e despesas para que não haja a necessidade desesperada de negociar os atletas para o exterior. Mas não é verdade. A debandada só não foi maior por falta de propostas.

“A força do futebol são os patrocinadores e os problemas na economia mundial fizeram as empresas reduzir investimentos. Os jogadores vão continuar saindo, mas o espaço para os melhores, e mais caros, será reduzido”, diz Gilmar Rinaldi, agente da Fifa e representante de jogadores como Adriano, Washington e André Dias. A tendência é as receitas dos clubes caírem. “A TV paga € 600 milhões por temporada para transmitir o Campeonato Francês. Acho difícil que esse valor seja mantido na próxima renovação”, afirma Marcelo Dijan, que representa no Brasil o Lyon, heptacampeão francês.

Por tabela

O reflexo no Brasil é que os clubes ficaram sem a receita da venda de jogadores e em breve terão problemas. O Flamengo foi o primeiro a abrir o bico, de início com os esportes, mas o time de futebol, com salários atrasados, também já sentiu. O Corinthians, mesmo com toda a receita que espera ganhar com a presença de Ronaldo no time, vai sofrer se não conseguir vender nenhum jogador até o fim do ano. “Temos R$ 100 milhões em dívidas, dos quais R$ 22 milhões vencem neste ano e precisamos vender para cobrir isso”, afirma Raul Corrêa, vice-presidente financeiro do clube paulista.

O São Paulo foi obrigado a reduzir os gastos com o futebol porque não arrecadou o que precisava com venda de jogadores. A esperada proposta milionária por Hernanes não chegou ao Morumbi. Em 2008, o Tricolor faturou apenas R$ 8 milhões com as negociações de Aloísio e Alex Silva. Em 2007, o Tricolor arrecadou R$ 76 milhões com as negociações de Breno e Josué para os alemães Bayern de Munique e Wolfsburg, Lenílson para o mexicanos Jaguares e Ilsinho para o Shakthar, da Ucrânia.

“Os clubes brasileiros têm de vender dois jogadores por ano, de preferência, e compulsoriamente um por ano porque existe um déficit de caixa. No Grêmio, no ano passado, esse déficit era de R$ 800 mil mensais”, revelou Túlio Macedo, que até o fim de 2008 era vice-presidente do clube gaúcho. Por essas contas, o déficit anual do Grêmio foi de R$ 9,6 milhões. Menos mal que o clube conseguiu vender Rafael Carioca. O Spartak Moscou pagou R$ 12,7 milhões pelo jogador, o que não bastou para tirar os gaúchos do vermelho, donos de apenas 54% dos direitos do atleta. Parte do que foi recebido destinou-se ao pagamento de dívidas trabalhistas. “O Grêmio criou um condomínio de credores para sanar as dívidas. A cada jogador vendido, 25% do valor arrecadado vai para este condomínio”, explica Túlio.

No Cruzeiro, a negociação de Guilherme foi turbulenta. O time havia acertado com o Dinamo Kiev quando o Zaragoza da Espanha entrou na disputa e ofereceu R$ 26,3 milhões pelo atacante – 
R$ 11,2 milhões ficariam na Toca da Raposa –, mas o negócio não saiu. Restou a proposta dos ucranianos. Tecnicamente, o saldo foi bom, pois envolveu a vinda de Kléber. Mas, financeiramente, o “troco” para os cofres celestes foi de “apenas” R$ 6,2 milhões.

Dos que deixaram o país, Thiago Silva não resultou em nenhum centavo para o time que defendia no Brasil. O contrato com o Fluminense terminou e o zagueiro assinou com o Milan. Júnior César e Washington fizeram o mesmo para acertar com o São Paulo. Arouca seguiu pelo mesmo caminho, mas como tinha contrato até abril foi liberado pelo Flu em troca do empréstimo do atacante Roger. O Fluminense deve R$ 280 milhões, 93% dos bens que possui, e só consegue montar elencos com os investimentos da Unimed. A parceira do clube desde 1999 contrata jogadores e paga salários, mas o dinheiro não passa pelos cofres das Laranjeiras para não correr risco de penhora. Nesse cenário de fragilidade surgem empresas dispostas a investir, mas com o objetivo de usar o futebol brasileiro como vitrine para obter lucros maiores. Traffic, Grupo Sonda, Turbo Sports e a própria Unimed são exemplos disso. Daí ser cada vez mais comum ver os direitos federativos dos jogadores repartidos entre vários grupos.

“A Traffic faz o investimento, coloca os jogadores no Palmeiras e o clube é o responsável pelo pagamento de salários, luvas e direitos de imagem, e, na venda dos jogadores, fica com 20% do lucro”, explica o vice-presidente Gilberto Cipullo. Logo no primeiro ano da parceria, em janeiro de 2008, a Traffic e seus investidores compraram o zagueiro Henrique, do Coritiba, por R$ 6 milhões. No meio do ano, o Barcelona desembolsou R$ 20 milhões pelo jogador. A Traffic ficou com R$ 16 milhões; o Palmeiras, que nada tinha investido além de salários, levou R$ 4 milhões.

A empresa contrata jogadores com no máximo 23 anos. Quanto mais jovens, mais mercado no futuro. A menina-dos-olhos hoje é Keirrison, principal revelação do futebol brasileiro. Foi comprado pela Traffic também do Coritiba e chegou ao Parque Antártica levando mais alegrias do que a torcida esperava. Na CBF, o atacante está registrado como jogador do Desportivo Brasil, clube de propriedade da empresa de marketing esportivo, e emprestado ao Verdão. É assim com todos os atletas que pertencem à Traffic, como os jovens Clayton Xavier, Marquinhos e Willians.

Pessoas de vida simples

Fundos de investimento também têm sido usados para socorrer os clubes. Ano passado, precisando de dinheiro para quitar dívidas e manter em dia os salários dos jogadores que disputariam a Série B, o Corinthians negociou 50% dos direitos federativos de André Santos com a Turbo Sports. Outros 25% do lateral foram vendidos para o Grupo Sonda, que ficou também com 22,5% de Dentinho.

O mais polêmico desses casos aconteceu em maio, quando o Corinthians vendeu para o empresário Giuliano Bertolucci os 10% que ainda detinha dos direitos do atacante Jô, que defendia o CSKA Moscou, por R$ 2 milhões. Um mês depois, o jogador foi vendido pelos russos para o Manchester City, da Inglaterra, por R$ 58 milhões, dos quais R$ 5,8 milhões recheariam os cofres do Parque São Jorge se a negociação com Bertolucci não tivesse acontecido. “Não tivemos escolha. Precisávamos do dinheiro para honrar os pagamentos das dívidas que tínhamos com Nilmar e com Daniel Passarella, que foram casos definidos pela Fifa e podiam gerar punições esportivas, como o rebaixamento, se não fossem cumpridas. Não podíamos imaginar que o Jô seria vendido tão pouco tempo depois”, explica o dirigente Raul Corrêa.

No começo do ano, o Santos queria fazer dinheiro com o lateral-esquerdo Kléber e já tinha até acertado o retorno de Léo para o seu lugar, mas nada de aparecer proposta pelo jogador. A solução foi negociá-lo com o Grupo Sonda, que pagou R$ 6 milhões por Kléber para jogar no Internacional, clube que conta com outros atletas sobre os quais o grupo tem participação nos direitos, como Nilmar e o argentino D’Alessandro.

O que todas essas empresas têm em comum? Investidores misteriosos. “Eles preferem assim por questão de segurança. A Turbo é um grupo de pessoas que atua em vários ramos de atividade. Não são milionários. São pessoas de vida simples, que acordam cedo e trabalham o dia todo para ganhar dinheiro”, explicou Régis Villas Boas, representante legal da Turbo Sports ao jornal Lance!. Mesmo com tanto mistério, esse tipo de parceria tem resolvido problemas pontuais dos clubes. Pode parecer uma boa solução de imediato, mas causar prejuízos no futuro, já que as equipes perdem a gerência sobre o momento para negociar um atleta. Basta chegar uma proposta que os agrade. Os investidores estão interessados no lucro, e não em títulos que os times podem conseguir.

Mas a crise econômica mundial preocupa também os investidores. Se o mercado não se aquecer na próxima janela de transferências, que será aberta em agosto, as empresas não vão conseguir o retorno pelo qual esperam ansiosamente. O futuro pode ser catastrófico para o futebol brasileiro. Mas é possível encontrar um lado positivo. Ou ao menos aprender com a crise.

Sem as propostas milionárias batendo às portas dos clubes, existe a oportunidade de as equipes se organizarem para basear suas finanças em outras receitas e não depender exclusivamente da venda de jogadores. Basta usar o princípio simples que todo cidadão usa para cuidar de suas contas: gastar menos do que ganha, incluindo no orçamento as dívidas devidamente negociadas e amortizadas. E, quando o mercado se normalizar, não haverá essa sangria desatada para mandar para a Europa os nossos talentos. Duro é acreditar na capacidade de gestão de nossos cartolas.

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