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Gregos e troianos

Depois dos Estados Unidos, a Europa sofre com a crise. Mas o risco de marolinha no Brasil é pequeno

John Kolesidis/REUTERS

Policiais protegem agência do Banco Nacional da Grécia em Atenas durante manifestação contra o governo em março passado

“Os piores temores sobre a Grécia se confirmaram”, declarou, no final de fevereiro, o primeiro-ministro Yorgos Papandreu. “O dano é incalculável, e não é só financeiro e fiscal. Afeta a posição do Estado.” A pátria-mãe da mitologia viu-se às voltas com problemas econômicos bem reais, mas não estava sozinha. Boa parte das nações do euro mergulhou na crise, esfriando o otimismo do mundo. No Brasil, o mercado – sempre ele – voltou a manifestar preocupação com a possibilidade de que a crise atravessasse o oceano. Mas a avaliação predominante é de que a economia permanece bem protegida, sem contar que a crise atual não é comparável à norte-americana. Os resultados do PIB em 2009 mostraram que o Brasil, apesar da taxa negativa, se saiu razoavelmente bem em relação à maior parte das nações desenvolvidas.

Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, o ex-grão-tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros definiu o Brasil como o “darling” (querido) do investidor. Mesmo em um ambiente mais conservador, continuamos em situação invejável, segundo ele. “Para chegar aqui (a crise), precisa quebrar muita gente. E não vai quebrar.”

Em Portugal, onde a crise também desembarcou com mais força, o governo apresentou um Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), a ser discutido com os partidos e outros representantes da sociedade. O primeiro-ministro, José Sócrates, afirmou que o desafio é reativar a economia, criar empregos e equilibrar as contas públicas até 2013. “Em toda a Europa, metade dos países vai aumentar o seu déficit, e Portugal vai reduzi-lo em 2010, dando o primeiro sinal claro do empenho do governo no sentido de pôr as contas públicas em ordem.”

No caso da Grécia, de onde nasceram os temores, houve até quem sugerisse que algumas de suas famosas ilhas fossem vendidas. No início de março, o governo anunciou um plano para economizar € 4,8 bilhões, incluindo soluções clássicas em tempos de crise: corte de salários no setor público e aumento de impostos (no caso, o IVA, Imposto sobre o Valor Agregado). “As medidas são duras e possivelmente injustas, mas são imprescindíveis para salvar o país”, admitiu Papandreu.

Menos

O economista Paulo Nogueira Batista Junior, diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), acredita que a crise mundial, iniciada no sistema financeiro em 2007, pode converter-se em crise fiscal, principalmente nos países desenvolvidos. “O problema é mais grave na Europa, onde diversas economias avançadas e emergentes registram deterioração dramática em termos de déficit público e nível de endividamento. A Grécia parece ser apenas a ponta de um iceberg”, escreveu, em artigo recente.

“Os números são medonhos. A dívida pública vem aumentando rapidamente nas economias desenvolvidas”, prossegue Paulo Nogueira. Segundo ele, os números das contas públicas têm deixado “inquietos” os mercados. “A Grécia é um caso extremo, mas diversas outras economias estão sob suspeita, notadamente Espanha, Portugal e Itália, mas também o Reino Unido e até mesmo a França.”

O professor Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, vê impacto mínimo em relação ao Brasil. “Estamos falando agora de uma crise de dimensões infinitamente menores que a do subprime norte-americano”, afirma. “O PIB da Grécia representa 2,5% da União Europeia. Mesmo para a Europa, é um país pequeno.”

E é lá que se concentra o maior problema, segundo ele. “O grande integrante dos Piigs, a Itália, tem problemas há muito tempo e não representa exatamente uma novidade”, afirma. “Portanto, o foco vai ser na Grécia, com algum rescaldo ainda para Portugal e Espanha. A União Europeia deve promover um grande programa de ajuste, pois está em jogo a estratégia de consolidação do euro, para o qual já investiram muito ao longo do último decênio.” Por Piigs, entenda-se a sigla, no original em inglês, para o bloco que reúne Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha.

O economista também diferencia a origem das duas crises. “A dos Estados Unidos vem do mercado e a da Grécia, do setor público. O que há em comum é um pouco de irresponsabilidade das agências de classificação de risco, que nos dois casos diziam que estava tudo bem.”

Assim, se no mercado norte-americano os problemas se originaram com o chamado subprime (de segunda linha), com empréstimos de maior risco – e, consequentemente, juros maiores –, na Europa têm na raiz o endividamento dos governos. Embora possa haver algum efeito em relação ao câmbio, Lacerda diz que as perspectivas para o Brasil este ano continuam bastante positivas: o PIB deverá crescer de 5% a 6%, a inflação deverá permanecer próxima ao centro da meta estipulada pelo governo (4,5%) e o mercado interno continuará dando a dinâmica da economia.

E os juros…
Em 17 de março, o Comitê de Política Monetária manteve, pela quinta reunião seguida, a taxa básica de juros em 8,75% ao ano. Mas três dos oito integrantes do Copom queriam aumentar a Selic para 9,25%. Já fica a sinalização de que pode haver alta na próxima reunião, marcada para 27 e 28 de abril – seria a primeira desde setembro de 2008. Mas o processo de cortes já foi interrompido.

Pressão localizada

Os primeiros indicadores divulgados este ano são positivos, com crescimento da atividade industrial e do emprego. A inflação medida pelo IPCA, considerada a “oficial”, subiu para 0,78% em fevereiro (a mais alta em quase dois anos) e chegou a 4,83% em 12 meses, acima do centro da meta fixada pelo governo (4,5%), mas o professor Lacerda vê “pressões localizadas” sobre o índice, que não deverão se manter.

O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, lembra que a crise norte-americana foi mais grave que a de 1929, o que exigiu um esforço mundial. “Houve uma ação coordenada dos bancos centrais e de ministros da Fazenda em todo o mundo, evitando que a recessão virasse uma depressão”, lembra.

No entanto, acrescenta, “quantidade expressiva de recursos públicos nas economias avançadas não se direcionou ao consumo e ao investimento, mas ao pagamento de dívidas”. Assim, muitos dos problemas ainda persistem. Um dos principais no caso da economia brasileira, o do comércio internacional, foi relativamente contornado pela ampliação do número de parceiros comerciais. Mas há outras questões preocupantes, observa Pochmann, ao lembrar que o Brasil já é uma economia bastante internacionalizada, com grande número de empresas estrangeiras operando internamente. “O baixo dinamismo da economia mundial pode fazer com que os lucros dessas empresas não sejam aplicados aqui.” Além disso, a aproximação comercial com o polo asiático poderia levar a uma “posição subordinada à China”.

“Durante a crise, houve (no Brasil) uma convergência entre a política monetária, cambial e fiscal. Na saída da crise, essa convergência foi reduzida”, diz o presidente do Ipea, destacando a valorização do real em relação ao dólar e a entrada de “recursos especulativos não desejáveis”, o que leva a um “déficit externo perigoso, embora administrável ao longo do tempo”.

O professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano Schutte, integrante do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, também chama a atenção para a possibilidade de remessa de lucros de empresas que operam no Brasil para a matriz. “A gente já viu isso acontecer nos Estados Unidos. O caso da GM foi emblemático”, lembra.

Emblemática foi a oferta pública de ações feita em outubro pelo Santander no Brasil. A operação, a maior da história no país, resultou em um aumento de capital de R$ 13,182 bilhões. O grupo fechou o ano com lucro líquido de R$ 5,508 bilhões, crescimento de 41% sobre 2008. Ao divulgar o balanço de 2009, com lucro de € 8,943 bilhões, a direção mundial do Santander reportou ganhos extraordinários de € 2,587 bilhões, vindos, entre outros fatores, do aumento de capital no Brasil.

Por outro lado, as dificuldades na Europa podem beneficiar o Brasil. “Há empresas que enxergam boas possibilidades de fazer investimentos aqui”, diz Giorgio, acrescentando que nos últimos anos as relações comerciais foram diversificadas. Isso tende a reduzir eventuais impactos em relação às dificuldades enfrentadas por nações europeias, que viverão uma “batalha” para reduzir seus déficits.

Aparentemente, a batalha aqui será mais amena. Depois de um período difícil, 2010 deverá confirmar a tendência de recuperação já notada no último trimestre do ano passado. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que o PIB industrial crescerá 7% este ano. Segundo a entidade, o crescimento esperado para a economia deverá fazer com que a produção industrial “ultrapasse o nível de antes da crise” ainda no primeiro semestre. “A recuperação da produção favorecerá a criação de empregos e o aumento de renda dos trabalhadores. Esses fatores, associados à elevação da oferta de crédito e dos programas de transferência de renda do governo, incrementarão a demanda interna”, diz a CNI.

Em 11 de março, o IBGE divulgou o PIB do quarto trimestre de 2009. Se o resultado do ano ficou negativo (-0,2%) – mas com desempenho melhor que o da maioria dos países desenvolvidos (leia quadro) –, os números dos últimos três meses confirmaram a trajetória de recuperação: o PIB cresceu 2% sobre o terceiro trimestre e 4,3% em relação ao quarto trimestre de 2008. A mesma indústria que sofreu o maior impacto da crise está puxando a retomada da atividade econômica.

Novo recorde de emprego
Se 2009 começou como o pior dos mundos para o mercado de trabalho e terminou de forma até razoável, as perspectivas para este ano são bem mais positivas. E os primeiros indicadores já divulgados atestam isso. A começar dos números sobre o mercado formal.

Em março, o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou um saldo recorde (para o mês) em fevereiro, de 209.425 vagas com carteira assinada. Em janeiro, o saldo do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) também havia sido recorde, com 181.419 postos de trabalho a mais.

Em janeiro, a taxa média de desemprego nas seis Regiões Metropolitanas pesquisadas pelo IBGE foi de 7,2%, um pouco acima de dezembro (6,8%, a menor taxa da série histórica), mas bem abaixo do registrado em janeiro de 2009 (8,2%) e no menor nível para o mês na atual série histórica.

Apesar de ainda alta, a taxa está praticamente no mesmo nível anterior à crise, atingindo um pico de 9% em março do ano passado, para voltar gradualmente aos 7%. E o país não vê uma taxa de desemprego de dois dígitos (pelos dados do IBGE) há quase três anos, ou desde maio de 2007. A pesquisa Seade/Dieese, que usa outra metodologia, mostrou em janeiro a menor taxa para o mês desde 1998.

“Tudo indica que teremos um ano muito positivo”, diz o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann. Ele estima em 2 milhões o número de empregos com carteira assinada que serão criados este ano. É a mesma projeção do ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi. Se confirmado, será o maior número de vagas formais criadas em um ano, superando o recorde de 2007 (1,617 milhão).

Segundo Pochmann, houve uma “rápida alta” das demissões no último trimestre de 2008 e no início de 2009, que acabou não se refletindo em elevação das taxas de desemprego, com absorção por outros setores. “A recessão foi menos profunda e prolongada. Salvo a indústria, os setores conseguiram recuperar o nível de emprego.”

Indústria
E é exatamente na indústria que há ainda um longo caminho a recuperar, conforme observa o diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Paulo Francini. Segundo ele, o setor mostra tendência positiva, com a expectativa de criação de até 140 mil vagas este ano apenas em São Paulo. Mas lembra que de setembro de 2008 a fevereiro deste ano foram eliminados 180 mil postos de trabalho. Assim, mesmo a alta de 6,2% em 2010 não será suficiente para voltar ao nível pré-crise – o que, para ele, deverá acontecer no início do ano que vem. A indústria automobilística, porém, já mostra reação. O número de trabalhadores em montadoras (excluído o setor de máquinas agrícolas) chegou a 110,7 mil em fevereiro, 2.200 a mais que um ano antes.

Na tentativa de prever o imprevisível, diante de uma crise de proporções inéditas, alguns economistas erraram feio em 2009. O Morgan Stanley projetou taxa de desemprego de 11%, podendo chegar a 13%. O professor José Márcio Camargo, da PUC do Rio, falou em 11% a 12%. E o infatigável professor José Pastore profetizou perda de 1 milhão a 1,5 milhão de empregos.