entrevista

Governo em disputa

Nos 25 anos da CUT, seu presidente, Artur Henrique da Silva Santos, avalia que os trabalhadores tiveram ganhos com o governo Lula e que é preciso disputar a hegemonia na sociedade com formação e comunicação

jailton Garcia

Socialista sim, embora reconheça as limitações e o reformismo da atividade sindical. Passados 25 anos, a polêmica persiste, dentro e fora da CUT. O atual presidente da Central, Artur Henrique da Silva Santos, 47 anos, estampa em sua sala uma foto de Che Guevara, “símbolo da transformação da sociedade”. Para ele, a luta sindical pode ajudar a construir bases nessa direção, mas tem seus limites. Foi para romper com pelo menos parte dessas barreiras que nasceu a CUT, em agosto de 1983. Era o começo da consolidação de um processo iniciado dois anos antes, com a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), fruto da rearticulação do movimento sindical, ainda em tempos de absoluta falta de liberdade política e de inflação que, no ano de fundação da CUT, passaria de 200%. Em 1983, Artur engatinhava na militância e nem de longe desconfiava que um dia comandaria a maior central do país, com mais de 3.400 entidades filiadas e 22 milhões de trabalhadores representados, com suas permanentes discussões internas, expostas em 9 congressos e 12 plenárias nacionais, incluindo a deste agosto, mês do 25º aniversário.

Pela primeira vez – depois de passar por Figueiredo, Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique –, a Central lida com um presidente cuja candidatura apoiou desde o princípio. Para Artur, no início do primeiro mandato havia duas visões equivocadas. Do lado da CUT, de quem acreditava que os problemas estariam resolvidos com um “companheiro” no poder. Do lado do governo, de quem achava que os trabalhadores abririam mão de suas lutas. “Não deixamos de fazer nosso papel. Mas também não somos daquele movimento sindical que tem de chamar uma greve geral por mês.” Ele observa que se trata de um governo “em disputa”, entre as pressões pelo viés econômico/financeiro e as de quem defende uma visão mais social. O papel da CUT é claro: pressionar e criticar o governo. Isso não significa, segundo seu presidente, que não tenha um lado. Por isso, a Central não hesitou em ir às ruas em 2005, quando detectou sinais de golpe para derrubar Lula.

Ele avalia que muito mais coisa poderia ter sido feita na área trabalhista. O tripé da ultrapassada estrutura sindical – unicidade, imposto sindical e poder normativo da Justiça do Trabalho –, por exemplo, ainda se mantém, contribuindo para manter dirigentes e entidades que não precisam de base para existir. E Artur alerta que isso acontece, em boa parte, porque os conservadores ainda predominam no movimento sindical – inclusive cutistas, acrescenta. “Há muita briga pela frente. Mas são 25 anos em que a CUT se transformou no principal instrumento de luta e de organização da classe trabalhadora.”

Onde você estava no dia 28 de agosto de 1983?
Não estava nem perto da fundação da CUT. Estava no Conselho dos Representantes dos Empregados da CPFL. A partir daí, a gente constituiu a oposição ao sindicato. Em 1984, ganhamos a eleição, mas não levamos – nos roubaram aqueles votos por correspondência que existiam na época. Em 1987 a gente ganhou. Fui diretor-suplente do Sindicato dos Eletricitários de Campinas, depois secretário-geral, tesoureiro e presidente, em dois mandatos. Sabia do processo de construção da CUT por outros companheiros. Foi um momento rico, um clima muito intenso de discussão, das relações de trabalho e das questões gerais de cidadania, de participação política, de abertura, da luta contra a ditadura. A criação da CUT foi parte desse processo. Nem me passava pela cabeça que depois de 25 anos eu estaria aqui. E ao promovermos essa nova organização deparamos com um processo que inviabilizava disputar as direções dos sindicatos que vinham de um momento de subordinação ao regime militar. Então a gente já discutia que era preciso mudar também a estrutura sindical.

E mudou?
Muito pouca coisa, infelizmente.

Nem com a Constituinte de 1988, nem com a eleição de um presidente operário?
Existem ainda muitas forças conservadoras ligadas ao movimento sindical, e muitos parlamentares eleitos com o apoio dessas forças. Além disso, ainda há uma discussão muito parecida com a que a gente tinha em 1983, quando nasceu a CUT. Havia duas grandes visões. Uma defendia entrar na estrutura existente – sindicato, federação e confederação, sistema confederativo, imposto sindical, unicidade – e democratizá-la por dentro. Outro grupo defendia montar uma estrutura paralela, constituir a central e organizar os departamentos de cada ramo de atividade. Passados 25 anos continua a estrutura sindical oficial, com mudanças importantes, mas poucas.

Por exemplo?
A possibilidade de ter federações e confederações por ramo, além daquelas oficiais, oriundas da era Vargas. E também o reconhecimento das centrais sindicais. Mas continua tendo unicidade dos sindicatos, continua tendo imposto e poder normativo da Justiça do Trabalho. Esses três pilares da velha estrutura continuam. Porque há dirigentes acomodados na máquina dos sindicatos, que facilita muito para quem quer se manter no poder.

Dirigentes cutistas também?
Também. Tem muito dirigente cutista acomodado. Hoje você não precisa ter sócios. Aliás, quanto menos, melhor, sócio dá trabalho. Aí, você trata muito bem os poucos sócios, mas recebe dinheiro de todos os outros por meio do imposto sindical. Então, tem garantia de financiamento e na hora da eleição eu trato bem aqueles 500 ou 1.000 associados, numa base de 40 mil.

Nessa discussão do imposto, não ficou a impressão de que as centrais brigaram apenas para manter o dinheiro e deixaram para lá a reforma estrutural?
No Brasil, a gente ouve muito falar sobre a estrutura sindical do lado dos trabalhadores, mas pouco da estrutura do lado dos empregadores. A emenda proposta acabava com o imposto sindical só para o lado dos trabalhadores, mas mantinha toda a estrutura do Sistema S e do imposto sindical para os empregadores. Acabar com o imposto, ok, mas não permitir mais nada no lugar significa que teria apenas sindicato financiado pela mensalidade sindical. E não tem acordo só para sócio. O sindicato investe muito na campanha salarial. Defendemos que a mesma assembléia que aprova o acordo aprove uma contribuição, para que todos os beneficiados pela campanha compartilhem sua sustentação. Apontamos para uma grande campanha neste ano e no ano que vem.

Agora, do outro lado vão estar outras cinco centrais lutando para manter como está, e os empresários também, porque não querem democracia nem liberdade. Hoje você tem um sindicato, faz o estatuto como quer, tem o monopólio da representação e ainda tem dinheiro garantido. É mais fácil criar um sindicato no Brasil do que uma microempresa, e dá mais dinheiro.

O movimento tem conseguido se reciclar e acompanhar as mudanças no mundo do trabalho?
O novo sindicalismo, além da combatividade, obrigou os dirigentes a sair do castelo, a sede do sindicato, e ir para a porta das empresas. Agora, apenas estar na porta da empresa não basta. Tem de estar dentro, é lá que as mudanças acontecem. Tem trabalhador achando que tudo o que a empresa tem de bom foi ela que deu. É preciso um intenso diálogo, formação e comunicação até para resgatar a história de como chegaram ali coisas como trabalhar menos de 8 horas, férias, cesta básica, aumento real, PLR – para ninguém acreditar que o patrão um belo dia resolveu ser bonzinho. Teve gente que morreu, desapareceu, perdeu emprego por essas conquistas. 

Por outro lado, hoje um dirigente sindical é constantemente instigado a não dizer somente “não” para as coisas, mas “por que não” e qual é a alternativa. É bom ter gente boa de discurso, de microfone. Mas também precisa ter gente dentro do local de trabalho acompanhando assédio moral, perseguição da chefia, as mudanças na gestão. Responsabilidade social e empresarial, que até algum tempo atrás não ia além de peça de marketing, está virando um conjunto de obrigações para uma empresa. O movimento sindical tem de estar apto para dizer “essa empresa é responsável socialmente; essa não é, por isso e aquilo”. Então, os desafios dos sindicalistas de hoje são diferentes, complexos.

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A CUT apoiou o governo Lula desde o começo? Como lidar com o carimbo de “chapa branca” e qual o papel da central em relação ao governo?
Nenhum setor do movimento sindical que se opõe à CUT tem alcançado acordos coletivos como os obtidos pelos sindicatos cutistas. Nestes seis anos quem mais fez greves, seja servidor público federal, de bancos, setor elétrico, Petrobras, foram sindicatos filiados à CUT. Não deixamos de fazer nosso papel. Mas também não somos daquele movimento sindical que tem de chamar uma greve geral por mês. Como se a massa estivesse a ponto de ser chamada por uma liderança para fazer a revolução. Uma coisa é acumular força, construir base de apoio e disputar hegemonia para transformar a sociedade. Agora, não vai ser no próximo domingo.

Muitas pessoas que passaram pela CUT durante sua história assumiram tarefas no governo. No início, achavam que íamos “entender” que elas não poderiam atender a todas as nossas reivindicações. E também teve gente do lado de cá que achava que eleger o Lula resolvia todos os problemas. Que ele daria uma canetada, “artigo 1º, instale-se o socialismo; artigo 2º, revogam-se as disposições em contrário”, e não precisaria mais luta, greve, mobilização. Duas visões erradas. Trata-se de um governo em disputa. Ganhamos a eleição, não o poder. A gente deixou claro a independência e a autonomia. Mas não vamos permitir um processo de golpe, como foi tentado por grande parte da mídia e da direita, para derrubar o Lula. Para eles o Lula presidente é um pesadelo.

Mas a CUT era mais barulhenta antes.
No governo Fernando Henrique Cardoso fizemos a Marcha dos 100 mil à Brasília. Uma baita marcha, importantíssima do ponto de vista de chamar atenção, mas que resultou em nada. Ano passado pusemos 25 mil trabalhadores em Brasília, pouco depois teve 40 mil mulheres na Marcha das Margaridas, depois outra marcha das centrais sindicais. E por que não sai uma linha se colocamos 100 mil pessoas em Brasília em dois meses, e com resultados concretos na negociação do salário mínimo, da tabela do imposto de renda, do aumento do Pronaf? Há uma disputa dentro do governo e na sociedade. Nosso desafio é não permitir que esses avanços, essa discussão que alia pressão com negociação, acabe em 2010.

Você acredita que adianta procurar a Fiesp, como a CUT-SP fez, para discutir o combate à inflação?
Era preciso fazer um movimento primeiro mostrando que a inflação de hoje não é a que alguns veículos de comunicação estão tentando disseminar. Outro dia vi uma reportagem com a maquininha de remarcar preços de supermercado, um desserviço. Lançamos a campanha “Menos Juros, Mais Desenvolvimento, Menos especulação, Mais Produção”. Não concordamos com a política do Banco Central de aumentar os juros. Vamos continuar batendo, como no dia 17 de junho, na frente do BC, junto com a Coordenação dos Movimentos Sociais. Ninguém deu uma linha. Mas não é só o BC. Fizemos ato na frente da Fiesp para denunciar a especulação por parte de empresários. E vamos fazer em frente a um grande banco, a um grande supermercado, a um grande produtor de alimentos. Tem muito empresário reclamando dos juros, mas está todo dia na porta do BNDES tomando empréstimo. Qual é a contrapartida? Vai aumentar preços? Vai pegar dinheiro sem dar garantia de emprego com carteira assinada?

E não seria papel do governo essa iniciativa?
É coisa que o governo não fez ainda. Fez em algumas áreas, mas queremos mais, contrapartida em todos os empréstimos. Não sai um centavo sem retorno social e de emprego. Esse é o embate. Agora, há muito exagero de parte da mídia em criar um clima, expectativa de inflação, remarcação de preços. O Brasil é o único lugar do mundo que só discute meta de inflação. Estamos há alguns anos cobrando a ampliação do Conselho Monetário Nacional, com participação de trabalhadores e empresários, para poder incluir o setor produtivo nas decisões, e incluir outras metas a levar em conta. A mesma obsessão que a política monetária tem hoje em relação à questão da inflação deveria ter em relação ao crescimento e ao emprego.

E conter os salários faz parte da meta?
Esse é o discurso do BC. Os reajustes de salários até têm conseguido vencer a inflação, mas estão perdendo para os ganhos de produtividade. O aumento real que temos não alcança o que os empresários ganharam em produtividade. É absurdo alguém dizer que salário causa inflação.

Você se queixa da mídia, mas o que impede a CUT de investir mais e melhor em comunicação?
Do ponto de vista legal, nada. Neste mandato, temos considerado duas prioridades. Se não investir em formação e em comunicação, você não vai disputar hegemonia nem com as outras centrais sindicais, nem com os outros projetos na sociedade brasileira. O que critico na mídia não é que tenha a sua posição ideológica. É a ausência de jornalismo. Você pode dar um espaço de 10%, 20%, 30% de determinado acontecimento e usar 70% do espaço para fazer a sua análise ideológica dele. Mas dê o acontecimento. Aqui, nem isso. Logo depois da eleição, a Rede Globo começou a fazer campanha colocando os informais contra os formais. O centro do debate era “a maioria dos brasileiros não tem direitos porque não tem carteira assinada, e não tem por culpa dos que têm muitos direitos”. Então, precisa tirar uma parte dos direitos de quem tem.

Fizeram uma semana de reportagens. Ficaram aqui duas horas gravando sobre essa questão da informalidade, falei sobre um monte de coisas. E dão 10 segundos para uma frase de efeito do presidente da CUT, “continuaremos lutando pela manutenção de direitos adquiridos dos trabalhadores”. Depois aparece o José Pastore, consultor independente… da Confederação Nacional da Indústria, falando como “economista e professor” sobre o “peso dos encargos”.

E essa foto do Che Guevara na parede, o que significa esse personagem para você?
Eu sou sociólogo formado pela PUC de Campinas, além de ser técnico eletrotécnico. Sempre gostei muito de ler. Acabei lendo muito Marx, Gramsci, Che, até Fernando Henrique eu li. O Che Guevara carrega muito simbolismo. Daquele processo histórico que aconteceu em Cuba a uma visão mais ampla, de integração da América Latina, tendo como fio condutor o sonho da transformação da sociedade. Continuo acreditando nesse sonho. Mesmo sabendo que estou no movimento sindical, que, na prática, é reformista e tem seus limites.

E como relacionar os últimos 25 anos e, por que não, os próximos 25 com esse sonho?
Se você pegar processos revolucionários que aconteceram e as falhas que aconteceram depois… Voltamos àquela discussão da correlação de forças, da formação de uma base social. O governo Lula está fazendo uma série de coisas importantes. Eu tenho medo de que duas ou três eleições depois a gente perca o que penamos tanto para alcançar. Que democracia é essa? Tem muita coisa para debater ainda do ponto de vista da democracia. E muita briga pela frente. Mas são 25 anos em que a CUT se transformou no principal instrumento de luta e de organização da classe trabalhadora. Mesmo com tudo isso que eu falei da imprensa, a população enxerga a marca CUT como algo forte, ligado à defesa dos trabalhadores. Vamos viver os próximos 25 para fazer uma disputa maior. Hoje eu faço ato junto com a Força Sindical, a UGT e tem dirigente sindical que não sabe qual é a diferença que tem entre a CUT e a Força. Por quê? Porque estamos há muito tempo sem fazer formação sindical, com medo de renovar, daí a acomodação – “eu não faço formação porque você vai ficar melhor do que eu e vai querer meu lugar”. Essa mudança nós estamos fazendo. E vai ter renovação. Eu estou no primeiro mandato, espero ser reconduzido no próximo, não sei se vão querer. Mas não posso continuar aqui 9, 12, 18 anos? Tem de reciclar, sair, fazer outras coisas, conhecer outros lugares, outras realidades.

Como o Che?
É.