esporte

Garra sem limites

Eles eram 1.300 atletas de 25 países e deram um show de talento e dignidade nos Jogos Parapan-Americanos do Rio. Disputaram dez modalidades, encantaram o público, bateram recordes e mostraram que não são coitadinhos

Rodrigo Queiroz

Gilmara sofreu uma lesão na medula quando foi atingida por uma bala perdida. “Escolhi viver e o esporte abriu muitas portas”

Foi na batalha do Parapan que o norte-americano Scott Winkler, aos 34 anos, experimentou sua primeira competição internacional. Conquistou o ouro no arremesso de peso e superou o recorde mundial com a marca de 10,23 metros, na classe cadeirantes. Mas Winkler, também bronze no arremesso de disco, já estivera em outra batalha – a ocupação americana no Iraque até maio de 2003, quando descarregava um caminhão de munição e foi lançado longe após uma explosão acidental. Uma lesão na espinha dorsal o deixou paraplégico. Aposentado pelo Exército, demorou meses para assimilar a nova realidade. Aproximou-se de atividades esportivas de reabilitação e conheceu as provas de arremesso num camping paraolímpico militar.

Winkler atua também na diretoria do Hospital da Associação dos Veteranos Paraplégicos no estado da Geórgia e é voluntário na recuperação de veteranos de guerra. O acidente não mudou sua visão das operações do governo Bush no Iraque: “Eu não gostaria de tocar nesse assunto, mas, se existe um mal, tem de ser combatido por alguém”, disse, constrangido. O ex-combatente viu no Parapan uma oportunidade de os atletas fazerem algo mais por si mesmos e pelo próprio país. “Nunca vi nada igual. Tudo muito organizado e bonito. Estive no Corcovado; o Cristo é de tirar o fôlego.”

Um acidente também mudou a vida do brasileiro Rodrigo Alves de Mello, que sonhava ser jogador de futebol. Ele estava numa calçada de Mogi das Cruzes (SP), saindo de um casamento, quando foi atropelado por um carro que disputava um “racha”. Era o ano de 2003 e, aos 16 anos, teve a perna esquerda amputada. “Fiquei muito triste, discriminando a mim mesmo. Depois de alguns meses já estava com a minha prótese. Entrei para a seleção de vôlei sentado e disputei o Parapan de Mar del Plata, na Argentina. A viagem mudou minha cabeça, nasci de novo. Perdoei, em plena audiência, quem me atropelou. Todo mundo que erra merece uma segunda chance”, resume.

Vaidoso, Rodrigo ainda comemora a conquista do ouro no Rio, de virada, sobre os favoritos Estados Unidos. “Parece que estou sonhando”, diz o vencedor. Suas prioridades agora são a manutenção da bolsa – ameaçada por suas faltas – no curso de Fisioterapia da Universidade de Mogi das Cruzes e as Paraolimpíadas de Pequim, ano que vem. Seu parceiro de equipe, Cláudio Irineu da Silva, o Choquito, de 38 anos, além de jogar na seleção de vôlei sentado é tetracampeão de futebol de amputados. Jogava futebol profissional em Brasília quando, em 1990, sofreu uma forte pancada durante uma partida. A lesão evoluiu para gangrena e custou-lhe a perna. “Tive apoio da família, dos amigos, mas não queria sair na rua. Passei a me isolar. Tinha aversão à idéia de jogar numa cadeira de rodas. Até que um técnico de futebol de amputados do Rio de Janeiro soube do meu caso e me procurou. Recuperei a coragem de enfrentar a vida e voltei a fazer o que sempre gostei”, afirma Choquito. Ambos são comandados pelo técnico Amauri Ribeiro – ouro na Olimpíada de Barcelona (1992) e prata em Los Angeles (1984) pela seleção principal de vôlei.

Três horas no ponto

Dez centésimos de segundo tiraram a medalha de bronze nos 50 metros costas da nadadora Gilmara Sol do Rosário, de 35 anos. Ficou o desafio: treinar mais por uma vaga em Pequim. Gilmara foi atingida por uma bala perdida, aos 15 anos, perto de sua casa em Guarapiranga, São Paulo. Uma lesão na medula afetou o movimento de pernas e tronco. Passou sete anos deitada. Depois de muita persistência e fisioterapia voltou a sentar. No processo de reabilitação começou a praticar basquete em busca de condicionamento físico. Mas foi com a natação que Gilmara se identificou. “Escolhi viver e o esporte abriu muitas portas. Aprendi a nadar adulta e agora estou usando a camisa da seleção, representando o meu país. É um sonho”, afirma, relembrando que quase já se afogou na Represa de Guarapiranga.

Ela treina no mínimo duas horas por dia e recebe 750 reais do Bolsa Atleta, programa do governo federal destinado a competidores de alto rendimento. Apesar de suas conquistas, em sua avaliação faltam iniciativas para que pessoas com deficiência possam viver melhor – ela já ficou três horas num ponto de ônibus em frente à Associação de Assistência à Criança Deficiente, na capital paulista, à espera de um veículo adaptado.

Rodrigo QueirozRobson
Robson perdeu a visão aos 9 anos. Aos 14 participava de competições de judô junto com adversários que enxergavam

Aula de superação

As praças de esporte do Parapan foram também espaço privilegiado em que professores de escolas públicas e particulares aproveitaram para trabalhar com os alunos o respeito à diversidade. O judoca Robson André Santos de Souza, que completou seus 22 anos durante a estada na Vila Olímpica, aprovou a tática. Robson nasceu com problemas crônicos como glaucoma e úlcera na córnea. Aos 9 anos perdeu totalmente a visão. Conheceu o judô na escola em que estudava em Porto Velho (RO). Desde os 14 participa de competições e garante que mesmo lutando com judocas que enxergavam não deixava de subir ao pódio. “Em Rondônia só temos eu e mais dois cegos. Então, ou eu competia com quem enxergava, ou não participava. Tudo é mais difícil fora do eixo Rio−São Paulo, e foi o judô que abriu um mundo novo para mim”, avalia o estreante na seleção brasileira.

Para alcançar o uniforme verde-e-amarelo, o judoca treinava mais de seis horas por dia. Em outubro de 2006, viajou 72 horas de ônibus até a Copa Brasil de Judô, no Rio de Janeiro. Para as seletivas do Parapan, em maio deste ano em São Paulo, viajou mais 52 horas. No Parapan, ficou em quinto. Diz ter tido azar de pegar um cubano logo de cara. Robson vive com o salário mínimo e parte da pensão do pai, que precisou ser processado para honrar com suas obrigações. “Felizmente tenho um técnico que não cobra nada e treinamos na academia de uma escola pública de Porto Velho.”

A argentina Perla Muñoz, de 33 anos, enfrenta dificuldades semelhantes por viver longe da metrópole. Perla tem os movimentos dos quatro membros comprometidos por causa de uma paralisia cerebral e diz que em sua cidade faltam políticas para os moradores com deficiência. Ela vive sozinha em Bahía Blanca, a 700 quilômetros de Buenos Aires, e acabou de quitar a casa própria. Disposição não lhe falta. Das 5h às 6h distribui jornais, treina das 7h às 9h e à tarde trabalha com deficientes na prefeitura local. Ficou com o bronze no arremesso de peso no Parapan. Perla já foi recordista mundial no México, em 1999, como velocista nos 100, 200 e 400 metros, mas não há mais as provas de corrida de paralisados em sua categoria. “O esporte é a ferramenta mais verdadeira de integração”, acredita.

A amiga Giselle Munõz, de 22 anos, que não tem movimentos do braço direito por causa da paralisia infantil, conquistou medalhas de prata e bronze no tênis de mesa. Começou a jogar aos 12 anos num centro de esportes em Buenos Aires. Treina até quatro horas por dia e trabalha por temporadas numa multinacional, na área de responsabilidade social corporativa. “Na Argentina, o paraesporte não é muito divulgado. Só nos últimos três anos passamos a ter ônibus adaptados em Buenos Aires, e no interior a situação é pior”, afirma.

Rodrigo Queiroz argentinas
As argentinas Giselle e Perla: superando a paralisia com esporte e trabalho

Esperança e glória

Se alguns viram no Pan do Rio, em julho, uma chance de arriscar novos rumos na carreira – como os cubanos que abandonaram sua delegação –, para outros competir é o ápice do orgulho que guardam de seu país. O cubano César Rubio Guerra, de 27 anos, não tem os movimentos nas pernas devido a um trauma medular na adolescência e afirma ter recuperado no esporte o gosto pela vida. No Parapan, conquistou o ouro na prova de halterofilismo ao erguer 145 quilos. “Graças à revolução, minha família e aos amigos, recuperei o amor pela vida. Dedico minha medalha ao presidente Fidel Castro, que fez 81 anos”, conta César, que estava no orelhão da Vila Olímpica ansioso para dar as boas-novas à família.

De acordo com Eusebio Guanche, segundo-chefe de Departamento de Reabilitação, Desportes, Recreação, Atenção Social e Trabalho, em Havana, Cuba tem políticas de saúde, emprego e acessibilidade visando à integração social e à elevação da qualidade de vida das pessoas com deficiência. A preparação para o esporte é promovida a partir das escolas de iniciação desportiva escolar e chegam às Escolas Superiores de Aperfeiçoamento Atlético, Centros de Alto Rendimento e o Instituto Superior de Cultura Física, em que paraatletas e atletas realizam seus estudos de maneira integrada.

A embaixadora do Parapan, a canadense Stephanie Dixon, de 23 anos, conta que no Canadá há um enorme esforço em proporcionar igualdade de oportunidades. Ela, que nasceu sem a perna direita, já ganhou 15 medalhas em piscinas de Jogos Paraolímpicos; das seis de ouro, uma foi no Rio de Janeiro. Stephanie começou a nadar aos 2 anos e superar limites virou obsessão: “A única diferença entre os atletas e os paraatletas é que nós ainda estamos tentando quebrar barreiras sociais, rótulos e estereótipos”, afirma.

Stephanie está prestes a se formar em Psicologia e é voluntária em um hospital de crianças em Victoria. Pratica escalada em rochas e pretende se tornar instrutora de alpinismo. “Meu principal desafio é continuar olhando pra frente. Após cada meta alcançada, caminho para a próxima.” Para ela, é responsabilidade dos próprios deficientes brigar por direitos e oportunidades mais igualitárias: “Empresas, organizações e a sociedade não reconhecerão nossas reivindicações se não nos manifestarmos”.

Leia também

Últimas notícias