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Frio na barriga

Falta de legislação específica para a reprodução assistida aumenta a angústia dos brasileiros que dependem de uma barriga amiga para gestar o filho que não podem ter

Samam Pahlevan

Solidariedade Dênio, Miete, Fernanda e a pequena Michelli: tudo às claras

No anúncio em uma rede de relacionamentos na internet, Ana – “saudável, não fumante e sem vícios” – se diz disposta a realizar o sonho de casais que não podem ter filhos. Por e-mail informa detalhes. Morena clara, olhos e cabelos castanhos, três filhas e um marido desempregado. Não tem casa própria e uma de suas filhas teve de ir viver com a avó. “Ficamos sem possibilidade de sustentar as três.” Ana quer R$ 100 mil pelo aluguel do útero (quando uma mulher é paga para gestar o embrião gerado a partir do óvulo e do espermatozoide de um casal), preço médio encontrado nas centenas de anúncios que se espalham por redes sociais, classificados e fóruns de discussão virtuais e até em jornais.

As histórias são parecidas: saudáveis e não fumantes, mães solteiras ou com marido desempregado, crianças a sustentar, dívidas. O útero é barganhado por valores que chegam a R$ 500 mil. Há uma lei, a nº 11.105 de 2005, que proíbe a comercialização de material biológico, com pena de três a oito anos de reclusão. Mas a reprodução humana ainda cai em uma grande lacuna na legislação brasileira. O professor José Roberto Moreira Filho, presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil, de Minas Gerais, explica: “Não há uma lei sequer que regule a reprodução humana assistida ou a barriga de aluguel. Apenas normas do Conselho Federal de Medicina, como a que permite a utilização de um útero de substituição desde que a pessoa que venha a ceder o útero tenha parentesco com a beneficiada em até segundo grau ou, se não houver parentesco, que haja autorização do Conselho Regional de Medicina”.

Muitos especialistas da bioética e do biodireito, como Moreira Filho, defendem a criação de leis rígidas e específicas para o “comércio” de partes do corpo, por entender que a vida não pode ser negociada como bem de consumo: “Se legalizássemos esse tipo de comércio, as pessoas que não têm condições financeiras serviriam de meros veículos das mais abastadas que, por exemplo, não querem engravidar por motivos fúteis. No caso da barriga de aluguel, a criança viraria mercadoria, entregue aos pais ricos ao final de nove meses”.

Daniel Faúndes, diretor do Centro de Reprodução Humana de Campinas (SP), discorda. “Entendo que alguma compensação econômica não seria malvista e poderia ser regulamentada aqui no Brasil, como é nos Estados Unidos. A pessoa gestará por nove meses, correrá riscos, terá desconfortos. Então, por que não? O comércio existe, está acontecendo”, observa. Em sua clínica, porém, Faúndes exige que os procedimentos estejam em conformidade com a lei: “Se é uma doação entre não parentes, colocamos nosso advogado para acompanhar e fazemos uma declaração em cartório para garantir que não há dinheiro envolvido e não haverá confusão”.

A confusão pode ocorrer quando as duas partes resolvem querer a criança ou ambas decidem não querer mais. Se esse tipo de situação pode acontecer entre parentes, com dinheiro envolvido fica ainda mais complicado. “E se nascerem gêmeos? E se os pais se separarem durante a gestação ou a criança nascer com alguma doença?”, questiona Luciana Leis, psicóloga em uma clínica de fertilização em São Paulo. “Muitos casais colocam questões importantes de lado e podem ser explorados ou ter a família desestruturada. Esse tipo de negociação é arriscado porque a mulher que cede o útero por dinheiro não tem vínculos com o casal ou com a criança, é só usada como objeto”, explica. Para Luciana, os papéis precisam ser predefinidos. “É um gesto de amor ao próximo, mas a dinâmica familiar deve ser analisada. Irmãs que rivalizam e até a mãe que gesta para o filho podem gerar sentimentos complexos.”

O casal Miete Peixoto de Melo e Dênio Gonçalves, ambos advogados, conseguiu trilhar um caminho seguro ao aceitar a oferta de uma amiga, Fernanda, após seis abortos espontâneos e a morte de um filho nascido prematuro. “A Fernanda acompanhou nosso sofrimento e se ofereceu para gestar um filho nosso”, lembra Dênio. “A Miete estava deprimida, sofreu muito com tudo por que passou. Confesso que tive medo de a Fernanda querer ficar com a criança, porque sei que laços se criam durante a gravidez, mas correu tudo bem.”

Aparecida Fernanda da Silva diz que resolveu ajudar por acompanhar o quanto os amigos sofriam por querer um filho. “Eu nem sabia o que era barriga de aluguel. Apenas quis ajudar.” Fernanda diz que sofreu preconceito de amigos, vizinhos e colegas de trabalho: “Alguns diziam que eu ia ficar rica, outros que eu era boba por ter me deixado explorar, ouvi de tudo. Mas eu estava muito certa do que fazia”, lembra. Até a filha de Fernanda enfrentou constrangimentos na escola, episódios que ela prefere nem contar. “Passou. Deu tudo certo. É uma alegria, para mim, ver o amor deles com a menina.” A amiga diz que não teve conflitos sentimentais: “Coloquei na cabeça que minha barriga estava emprestada, que aquele bebê não era meu. Foi muito tranquilo”. 

Michelli, hoje com 7 anos, foi a primeira criança a nascer de um útero de substituição no Brasil e tem um quadro em seu quarto que conta sua história. “Sempre fizemos tudo às claras, tanto na Justiça quanto em casa. Ela sabe como foi gerada e não há conflitos de sentimentos”, orgulha-se o pai. O caso demorou mais de dois anos, desde o início do tratamento até o registro da criança, e só saiu no nome da mãe biológica após a obtenção de uma liminar pelo casal na Justiça. E valeu a pena. “Nem imaginamos nossa vida sem a Michelli”, diz.

Nesse universo, porém, não são raros os casos de mulheres ansiosas e sofrendo com a impossibilidade de ser mãe. Bárbara, de 30 anos, teve dois filhos e, aos 20, “amarrou” as trompas, influenciada por amigos e família. Depois, casou-se com um homem sem filhos e o desejo de ser mãe voltou. “Tentei fazer uma reversão que não teve sucesso. Por conta disso, surgiu um mioma contra o qual luto há quatro anos”, explica. Ela não descarta pagar para outra mulher engravidar: “Eu posso perder o útero a qualquer momento. Estou cansada de tantas tentativas”, desabafa. Bárbara tem medo de pedir a alguém da sua família ou a uma amiga: “Acho que prefiro pagar, teria menos problemas. Essas mulheres são profissionais, sabem o que estão fazendo. Querem o dinheiro, e pronto, acabou”. 

Se optar por pagar a uma “profissional”, Bárbara deve estar disposta a desembolsar, além do aluguel, mais R$ 15 mil a R$ 20 mil pelo procedimento de inseminação artificial e demais despesas médicas. Também precisa estar ciente de que, se a gestante tiver qualquer conduta que a desagrade, não poderá contar com a Justiça. Estará suscetível a riscos como receber chantagens ou de a gravidez se tornar o sequestro de um filho que ainda nem nasceu. Também não poderá contar com a clínica que fez a inseminação, que alegará não ter responsabilidade sobre o caso.

Se Bárbara desistir no meio do caminho, a mãe de aluguel terá de ficar com a criança – afinal, mãe para a nossa legislação é quem dá à luz. E mais uma criança terá futuro incerto ao “pesar” na vida de alguém que só a levou na barriga pelo dinheiro. A Justiça brasileira seguirá isenta e calada. E a barriga de aluguel continuará refletindo a dura realidade do país: quem tem dinheiro paga, quem não tem vende. 

Países têm entendimentos diferentes

Na Índia, a barriga de aluguel é permitida por lei. Por cerca de 25 mil libras muitos casais têm bebês alugando barrigas por lá. No ano passado, o jornal Daily Mail contou o drama de Chris e Susan Morrison, que em 2009 tiveram gêmeos gestados por uma indiana em Mumbai e não conseguiam registrá-los. Para a legislação inglesa, que também permite o aluguel do útero, o problema era a nacionalidade: as crianças eram indianas. Na Espanha, mãe é quem dá à luz. Na Alemanha, idem – mas já houve casos em que a Justiça decidiu pela mulher que gerou. Nos Estados Unidos, a barriga de aluguel é permitida inclusive para casais homossexuais. Na França, o Comitê Nacional de Ética condena a prática, mas não há lei específica. Na Austrália, a cessão do útero é proibida em qualquer situação, com ou sem cobrança de “aluguel”. O advogado José Roberto Moreira Filho, professor da PUC-MG e presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB de Minas Gerais, é referência na discussão sobre os limites da reprodução humana assistida no Brasil. Para ele, a falta de leis abre brechas para experimentos e até para a eugenia (controle geracional por intervenção genética). Ele é contra a barriga de aluguel paga: “Os pobres virariam meros veículos dos mais abastados, até os que não querem engravidar por motivos fúteis”.

Por que não temos leis sobre reprodução assistida no Brasil?
Talvez pela falta de sensibilidade, de atenção, pois essas questões estão mais do que à tona. Em Minas Gerais tivemos o caso de uma sogra que gestou o filho da nora e a família teve um grande problema para registrar, porque temos um ordenamento jurídico que diz que mãe é quem dá à luz. Essa dúvida foi, então, dirigida a um juiz de uma comarca próxima a Belo Horizonte, e ele decidiu que o registro da criança deveria observar o laço biológico, através do exame de DNA. Mas não se apoiou em nenhuma lei específica. Estamos tentando levantar hoje no biodireito normas que regulamentem isso. Quem vai ser o pai, a mãe, quais as responsabilidades da clínica de fertilização, são vários fatores a considerar.

Essa falta de leis não dá uma liberdade perigosa às clínicas de reprodução?
Temos notícias de clínicas aqui em BH que nunca receberam sequer uma visita de um órgão de saúde, da Vigilância Sanitária, do Conselho de Medicina. A fiscalização é precária. Por isso e pela falta de leis, estamos sujeitos a vários absurdos, seja em pesquisas sem caráter ético, seja por infrações como o descarte de embriões, porque não há um controle de embriões produzidos. 

E quanto a cessão de útero e barriga de aluguel?
Não existe uma lei para a barriga de aluguel. Mas é nulo qualquer contrato que tenha por objeto a pessoa humana, órgãos e partes do corpo. Se uma pessoa contrata uma barriga, não poderá levar esse contrato à Justiça. Agora, a cessão temporária gratuita do útero não é regulada por lei.

Diretores de clínicas dizem que é quase impossível saber se há dinheiro envolvido em um procedimento como esse e dificilmente uma autorização é negada…
Se houve dinheiro ou não, é difícil saber. Mas eu já tive notícia de pessoas que tiveram pedidos negados. Lembro um caso no Rio de Janeiro em que a pessoa que cederia o útero era empregada da família. Então houve um conflito de interesses, e o Conselho Regional de Medicina resolveu indeferir essa cessão. Se há um vínculo ou subordinação trabalhista, se há jogo de interesses e isso for apurado, há, sim, a possibilidade de o pedido ser negado.

Em alguns países é permitido que se cobre por esse procedimento, como nos Estados Unidos…
Sim, lá se vendem sêmen, óvulos, se aluga barriga. Mas vários países europeus vedam a prática com caráter remuneratório. Eu sou contra, porque senão as pessoas que não têm condições financeiras vão servir de meros veículos daquelas com mais condições, até as que não querem engravidar por motivos fúteis. Aí os ricos buscariam a criança ao final de nove meses como se fosse mercadoria. Não é um procedimento acessível à maioria da população. Uma fertilização in vitro custa de R$ 15 mil a
R$ 20 mil. Agora, não podemos esquecer que é um procedimento médico e não deve ser procurado para fins fúteis ou até mesmo para a eugenia, que é a busca de determinadas características físicas ou a escolha do sexo da criança. Eu acho que, sendo a infertilidade uma doença e a inseminação artificial a cura, deveriam existir tratamentos no Sistema Único de Saúde. Mas ainda estamos longe disso.

Tema já rendeu drama e suspense tipo exportação

No início dos anos 1990 a autora Glória Perez levantou polêmica com a novela Barriga de Aluguel. Na trama, o casal Ana (Cássia Kiss) e Zeca (Victor Fasano), após várias tentativas frustradas de ter um filho, aluga a barriga de Clara (Cláudia Abreu) por US$ 200 mil. Ela desfaz o trato e decide ficar com a criança. Na batalha judicial, o casal alega herança genética e a moça diz que o filho era seu porque foi gerado em sua barriga. A questão causou discussões em todo o país, a autora pediu a dois juízes que dessem sentenças deixando brechas para que ela encaixasse no roteiro. O julgamento em primeira instância favoreceu Clara. O casal recorre e vence no Superior Tribunal de Justiça. Na cena final, a autora não se arriscou com a opinião pública. As duas “mães” surgem de mãos dadas, sinalizando um entendimento sobre a criação da criança antes do veredito da Justiça. A novela foi exibida em 30 países.