cultura

Esquina de tantas ruas

Disco de Milton Nascimento e Lô Borges, que revelou o som dos mineiros nos anos 70 e influenciou gerações, continua a seduzir

Mário Luiz Thompson/museu clube da esquina

O “clube” grava especial para TV em 1974: à frente, Lô e Milton. Atrás, Rubinho, Wagner Tiso, Novelli, Beto Guedes, Nelson Ângelo, Ronaldo Bastos, Márcio Borges e Fernando Brant

O primeiro Clube da Esquina, disco com o qual muita gente boa pôs o pé na profissão de tocar um instrumento e de cantar, completa três décadas e meia no ano que vem. Se você sempre gostou do som dos mineiros, já começou a listar: Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Wagner Tiso, Toninho Horta… A constelação é grande e à frente está a estrela de Milton Nascimento. Não se preocupe se a memória falhar, nem se o espelho informar que o tempo passou. Prepare-se para voltar àquelas esquinas dos anos 60, onde tudo começou. Mais precisamente no bairro Santa Tereza, BH, ruas Divinópolis com Paraisópolis. Preste atenção e vai ouvir, ainda naquela esquina, a sonoridade das gargalhadas daqueles garotos e a voz inconfundível do jovem Bituca… Sintonizou?

A carona no tempo pode ser com Manuel, o Audaz, o jipe de Fernando Brant que mais tarde ganharia música dele e Toninho Horta (“Eu vejo mais a rua/ Luz, estrada/ Pó, o jipe amarelou/ Manuel, o audaz/ Vamos lá, viajar”). O talento escorria pelas ladeiras e, mais de três décadas depois, segue seu curso entre o que há de melhor na música do Brasil, inclusive conquistando novas e novíssimas gerações. “Eu ficava naquela esquina das 9 da manhã até o almoço, depois ia das 4 da tarde até as 7, e dali até 2 da manhã… Muitas e muitas vezes, muitas horas, sozinho ali, com o violão. Ou ficávamos compondo, na rua”, conta o mineiro Lô Borges, em entrevista por telefone à Revista do Brasil. Quando gravou o Clube da Esquina, Lô, co-autor de quase metade das músicas, ainda não tinha 20 anos. Gostava de tocar, cantar, mas pensava em ser universitário – não sabia ainda a carreira, queria agradar à mãe.

“Costumo dizer que fui abduzido pelo Milton Nascimento. Ele chegou lá com um disco voador, me levou para morar no Rio e logo tínhamos o disco pronto”, lembra. Das muitas vezes em que já foi questionado sobre aniversários deste disco – 10, 20, 30 e agora 35 anos −, duas considerações se consolidaram: “A primeira, que eu era muito jovem. Outra, que a música está dentro de um contexto de eternidade, é composta, construída, os anos passam e ela continua a representar aquilo. O Clube da Esquina para mim dá essa sensação, a sensação da música ligada à eternidade”.

Antes de entrar na nave e zarpar com o parceiro Bituca, como chamavam Milton, Lô Borges tinha uma banda com o amigo Beto Guedes, mas nenhum projeto profissional. Eram dois garotos que curtiam rock e amavam os Beatles, como os tantos que se reuniam naquela esquina para cantar, beber, conversar, criar. Eles contam que não havia expectativa do que viria nem – como classificam alguns – a intenção de criar um movimento, a exemplo da Tropicália.

“A gente não pensava muito pra frente, não; o momento em si bastava. O Clube da Esquina foi minha iniciação profissional, convivi ali com grandes músicos e muito aprendi. Para mim o disco diz tudo, independentemente de mídia, modismos etc., ele tem um recado forte, mostra uma maneira de ser, de pensar e de fazer música”, afirmou Beto Guedes. “Acho que o Clube da Esquina nunca pretendeu ser movimento. A Tropicália tem toda uma estética em artes plásticas, música, cinema… Se você me perguntar o que foi o Clube da Esquina, respondo: foram dois discos, num dos quais estou envolvido desde o dedão do pé até o cabelo, e várias pessoas”, completa Lô.

juninho/museu clube da esquinaFernando Brant e Milton Nascimento
Fernando Brant e Milton Nascimento

Playback

Neste ponto é preciso dar um tempo e prestar atenção nas coisas. A primeira música Clube da Esquina, na verdade, não faz parte deste disco. Ela está no LP Milton, lançado dois anos antes. O mesmo título batiza o tema instrumental de Lô Borges (Clube da Esquina 2), do repertório do primeiro disco. Mais tarde, esse instrumental ganharia letra (“E o rio de asfalto e gente/ entorna pelas ladeiras/ entope o meio-fio…”) e, para muitos, ficaria conhecido simplesmente como Os Sonhos não Envelhecem.

Com tantos homônimos, quase muda o batismo do disco 1. Segundo depoimentos ao museu virtual Clube da Esquina, uma das possibilidades era chamá-lo de “Documento Secreto nº 5”. Márcio Borges, um dos grandes parceiros de Milton Nascimento, que resgatou um pouco dessa longa história de música e amizade em livro (Os Sonhos não Envelhecem, Geração Editorial, 1996) e é o idealizador do museu, afirma que, como a canção já saíra em outro disco, a idéia era pôr um nome que fizesse relação à repressão no país. “(Mas) eu falei: (…) Clube da Esquina é o seguinte, é essa galera aqui, esse monte de gente aqui nessa foto, esse que é o Clube da Esquina.”

As fotos, aliás, também renderam polêmica. Por muito tempo se acreditou que os dois garotos da capa, um branco e um negro, fossem Lô e Milton – personagens que não guardam relação com os cantores quando crianças, embora a intenção seja óbvia. De acordo com o fotógrafo Carlos da Silva Assunção Filho, o Cafi, os meninos viviam numa região rural, próxima à fazenda da família do compositor Ronaldo Bastos. No início, a gravadora não achou graça numa capa que não trouxesse o rosto de seus artistas. A inspiração, segundo o próprio Cafi, veio de um disco de Bob Dylan, Portrait. Mesmo assim a Odeon exigiu que fosse feita contracapa com letreiros, já que não se admitia que a obra, além de não trazer fotos dos músicos na capa, nem sequer indicasse seus nomes.

paula castelo branco/museu clube da esquinaLô Borges e Beto Guedes
Lô Borges e Beto Guedes

Diletantismo

Os integrantes do clube pouco ou nada pareciam ansiar além do prazer de estar ali. Quando conheceu Milton Nascimento, Lô Borges era só um menino de 10 anos: Milton, na verdade, era contemporâneo de Marilton e Márcio Borges, dois dos dez irmãos de Lô, e começara a carreira anos antes, com o vizinho Wagner Tiso, em Três Pontas. “Na época a gente morava no edifício Levi, em BH. Eu me lembro que estava descendo as escadarias, vinha do 17º andar, correndo, escorregando de bunda no corrimão, para comprar leite pra minha mãe. Então escutei um som maravilhoso e vim me aproximando da voz e violão até chegar no 5º andar e encontrar o Bituca… Ele tinha 20 anos; começou a me fazer perguntas, como se faz com qualquer criança, me fez cantar com ele… É claro que quando lembrei do leite já era tarde, tomei o maior esporro da minha mãe…”, conta, rindo.

O cantor, que em novembro passado se preparava para lançar seu novo CD, Bhanda, parceria com jovens músicos de Minas, faz questão de destacar Bituca como “o grande centro gravitacional” do Clube da Esquina. “Tenho um carinho muito grande por ele, que oito anos depois do nosso primeiro encontro veio me chamar para gravar, e aí começar minha carreira. Eu não podia imaginar… Hoje pego o livro do Robert Dimery, 1001 Albums You Must Hear Before You Die (1001 álbuns que você deve ouvir antes de morrer) e vejo que nele está o álbum de Milton Nascimento e Lô Borges”, afirma.

Para Lô, embora o Clube da Esquina não tenha buscado reconhecimento como movimento, cada um de seus participantes, individualmente, caminhou nesse sentido. “Eu me sinto reconhecido quando uma música minha é gravada pelo Tom e pela Elis (“Trem Azul”), ou quando recebo a visita do Pat Metheny, guitarrista norte-americano de jazz, que veio tirar fotos no clube e disse que esse era seu disco de cabeceira” conta.

A renovação dos caríssimos ouvintes também ajuda a deixar de lado qualquer necessidade de aprovação da mídia. “Costumo dizer que meu público procriou, passou de pai pra filho, porque 70% dos que vão aos meus shows têm idade para ser meus filhos”, revela. Depois do Clube da Esquina, Lô lançou mais dez discos. O trabalho inspirou e continua a inspirar homenagens de artistas nacionais, como as da cantora Vânia Bastos e de Flávio Venturini: “Não esqueço o dia de 1972 em que, convidado por Beto Guedes, entrei no antigo estúdio da Odeon (…) Lá ficava o set de gravação do Clube da Esquina, e lá estavam, além de Beto Guedes, Milton Nascimento, Lô Borges, Toninho Horta, Wagner Tiso e Robertinho Silva, fazendo uma música maravilhosa. Foi como se eu estivesse em Abbey Road assistindo a uma sessão de gravação dos Beatles. E, assim como os Beatles tinham feito a minha cabeça, naquele dia me dei conta de que fazia parte daquele universo, e de que ouvindo essa ‘nova música’ eu me sentia profundamente feliz”, afirma Venturini no tributo que faz aos mineiros em seu CD Trem Azul (1998).

Um Clube da Esquina 3, afirma Lô Borges, parece não ser possível. Beto Guedes lembra que hoje o relacionamento entre a turma é “um pouco mais distante no dia-a-dia, pois cada um tem sua carreira, sua família e tudo o mais para cuidar, diferente daquela época em que éramos jovens, sem nenhum compromisso”. Mas, mesmo sem planos para festejar os 35 anos do disco, Lô Borges não descarta possibilidades. “De mim, a comemoração não partirá. Mas, se o Milton disser, eu aceito. Essa coisa de eternidade ligada à música, se algo foi bom há 35 anos, continua a ser, porque muda muito pouca coisa. Tem gente que ainda não se deu conta de que nós passamos o milênio, viramos o século… E, se for pra comemorar esse grãozinho de areia, tô dentro!”, antecipa. A assessoria do cantor Milton Nascimento não retornou às solicitações de entrevista feitas pela revista.

Quem quiser saber mais sobre o clube pode acessar o site (museuclubedaesquina.org.br). Há dezenas de depoimentos e é possível até contar histórias relacionadas ao som dos mineiros. São muitas lembranças, pontos de vista e interpretações. Uma delas diz respeito ao próprio nome Clube da Esquina. Segundo Lô, acaba sendo “meio como o Grito do Ipiranga, alguém falou….” Mas, na avalizada opinião de dona Maricota, matriarca dos Borges, foi ela mesma quem fez o batismo, já intuindo que o point – para onde os filhos a toda hora escapavam, provocando a ira da vizinhança, que volta e meia chamava a polícia – ainda ia dar muito o que falar: “Eles iam para lá e eu precisava dos meninos aqui em casa, porque casa que tem 11 filhos não tem empregada. Então falava para uma das meninas: ‘Vai lá naquele inferno daquele clube da esquina, porque aquilo é um clube do inferno… Depressa, que estou chamando…” Como mãe não mente, nem erra, dona Maricota só se enganou foi no adjetivo.