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Ensinar para a igualdade

Há 35 anos, o movimento negro adotou a bandeira de Zumbi dos Palmares como símbolo da luta contra o racismo e vem alcançando conquistas. Mas o caminho a percorrer ainda é longo e passa pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial

jailton Garcia

Solange conquistou bolsa integral pelo ProUni e cursa gastronomia. Já conseguiu estágio na cozinha de um grande hotel

Como diz Nelson Mandela, ninguém nasce odiando o outro pela cor de sua pele. Se é possível ensinar para o ódio, também é possível ensinar para o amor. Mas, no Brasil, o caminho a percorrer ainda é longo. Para se ter uma idéia do tamanho das desigualdades no país, basta olhar o Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 – Racismo, Pobreza e Violência, publicação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), lançado em 2005. Segundo o estudo, se considerarmos separadamente as populações branca e negra do Brasil a diferença em termos de desenvolvimento humano é enorme. O Brasil ocupa no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano o 73° lugar. Se analisarmos brancos e negros separadamente, os primeiros estariam na 44ª posição, enquanto a população negra, em 105°.

“O racismo brasileiro há muitos séculos coloca a população negra em situação de flagrante desigualdade em todas as dimensões. Isso exige esforço conjunto de Estado e sociedade, e não será superado sem ações afirmativas e políticas que contemplem a diversidade cultural”, destaca o editor-chefe do relatório, Carlos Lopes.

Ações afirmativas foram o caminho utilizado por países como EUA e África do Sul para diminuir a desigualdade racial. “A ação afirmativa dá um tratamento desigual para permitir a igualdade de oportunidades a quem está em condição inferior”, explica Cristina Batista, assessora para Cidadania da Prefeitura de Santo André e militante do movimento hip-hop. Para ela, a resistência ocorre porque promover a igualdade significa fazer os brancos perderem os benefícios do racismo. “Mesmo sem ser signatários – e muitos são resistentes e combatentes em relação a ele –, todos os brancos são beneficiários do racismo”, analisa.

No Brasil, o movimento negro focou sua luta na questão das cotas no ensino superior, um exemplo de ação afirmativa. Para a socióloga da Universidade Católica da Bahia e ativista do movimento negro Luiza Bairros, a política de cotas tem um papel importante principalmente na inclusão na universidade. “Não vejo de que outra forma poderíamos reverter essa desigualdade”, sustenta. Ela lembra ainda de outras iniciativas menos comentadas, mas fundamentais, como a implementação da Lei nº 10.639, que modifica a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para incorporar a cultura e a história africana ao currículo escolar.

Lafaiete Simões Machado é um beneficiário das chamadas políticas afirmativas. Aos 24 anos, ele está cursando o primeiro semestre de Relações Públicas na Universidade Metodista de São Paulo. A mensalidade do curso fica em torno de 800 reais, muito acima dos 490 reais de seu salário de serigrafista. Órfão, ele mora com a tia, que consegue por volta de um salário mínimo como empregada doméstica. “Minha família é muito humilde e nunca consegui fazer faculdade. Em 2001, tentei o curso de Artes Plásticas na USP, mas o vestibular era muito difícil”, lembra.

A oportunidade veio pelo Educafro, entidade do movimento negro que atua na área de educação. O Educafro mantém um cursinho popular e tem ainda convênios estabelecidos com várias instituições privadas de ensino superior – por meio dos quais consegue assegurar vagas em determinadas faculdades. Foi assim que Lafaiete fez um ano de cursinho e passou no vestibular da Metodista, com uma bolsa integral. “Mas ainda tem um bom gasto para se manter na escola, com xerox, condução”, explica. “Para minha tia é uma realização, ela segue a idéia de minha mãe, que queria que eu estudasse. Eu sou representante da minha família e da minha etnia na universidade”, afirma.

Além de iniciativas como a do Educafro, o poder público está entrando nessa batalha. Com o governo Lula, as ações afirmativas passaram a fazer parte da agenda política institucional. O governo enviou um projeto de lei que reserva 50% das vagas em universidades públicas para alunos oriundos da escola pública, considerando o percentual de negros e indígenas em cada unidade da Federação, segundo o IBGE. O projeto ainda não foi votado e causou manifestações dos dois lados. “O debate é uma questão de poder. Quem detém informação no mundo de hoje detém poder”, sustenta Sara Juarez Sales, coordenadora do Núcleo de Políticas de Gênero, Raça e Pessoa com Deficiência da Prefeitura de Santo André.

“A lei é importante porque define uma orientação do Estado, um critério geral, e também a destinação de recursos”, explica a ministra Matilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Ela lembra que a inserção de alunos pobres nas universidades públicas implica, além do acesso, medidas para garantir a permanência. “Bolsa, auxílio-alimentação, moradia, auxílio-livro, o que as universidades já têm, mas numa escala maior. Quanto mais aumenta o número de pobres, mais recursos são necessários e não há uma rubrica específica no Ministério da Educação para subsidiar essas experiências que estão em curso”, explica.

Outra ação do governo foi o Programa Universidade para Todos (ProUni), uma das vedetes das últimas eleições. Ele oferece vagas a mais de 200 mil estudantes oriundos do ensino público em instituições privadas de ensino e dá prioridade a negros e índios. Aos 46 anos, também aluna do Educafro, Solange Aparecida Ferreira de Campos Dias recebeu o comunicado de que conquistara sua bolsa integral, no valor de 1.350 reais, das mãos do presidente Lula, em Brasília, na cerimônia de sanção do projeto, no dia 13 de janeiro de 2005. “Quando eu cheguei aqui no cursinho estava insuportável, não parava de gritar, pular, de tanta alegria. O pessoal fez uma festa, teve até champanhe”, lembra.

Na família de Solange, de nove irmãos, apenas ela completou a faculdade. “Meus pais tinham boas intenções, mas precisavam de ajuda em casa e botavam todo mundo para trabalhar.” Ela teve de deixar os estudos quando era adolescente para arranjar um emprego e “ajudar” em casa. Só voltou a estudar 17 anos depois de começar a trabalhar, já casada, quando fez um supletivo para concluir o ensino médio. “Quando terminei, em 2000, eu até pensava em continuar, mas fazer um curso técnico, algo assim. Faculdade, para mim, era como olhar para o céu, eu achava que nunca ia conseguir alcançar”, conta. Nesse momento, conheceu o cursinho do Educafro, onde entrou com os quatro filhos. “Foi legal porque um dava força para o outro”, lembra.

“Minha vida passou por uma mudança radical, eu não esperava. Sabia que as coisas viriam, mas não tão rápido. Mas quando você tem ‘4.6’, como eu, não pode ter dúvida”, brinca. Para ela, a auto-estima é o principal problema do negro. “Minha sobrinha mais velha, de 29 anos, me disse: ‘Tia, isso (faculdade) não é coisa pra gente’. É a mesma coisa que eu pensei lá atrás”, compara.

Hoje ela está no último semestre e conseguiu seu segundo estágio, na cozinha de uma grande rede de hotéis. E, com o sonho da faculdade realizado, arranjou outro: “Eu quero abrir um restaurante, nem que seja um pequeno, um bistrô. Especializado em comida brasileira”, planeja. “Sonho você adia, não esquece. Foi o que eu fiz: adiei meu sonho para ajudar em casa, para cuidar dos meus filhos. Quando vi que estava mais tranqüila, fui atrás”, sustenta.

mauricio moraisLafaiete
Lafaiete fez cursinho no Educafro. Passou no vestibular da Universidade Metodista e conseguiu bolsa integral para fazer o curso de Relações Públicas

Feriado local

Onde o 20 de novembro é feriado
Estados:
 Alagoas e Rio de Janeiro
Municípios: 
Itapecerica (MG), Cuiabá (MT), Marabá (PA), São Félix do Xingu (PA), Dona Inês (PB), Pelotas (RS), Pacatuba (SE), Auriflama (SP), Campinas (SP), Guarulhos (SP), Hortolândia (SP), Limeira (SP), Ribeiro Pires (SP), São Paulo (SP)

Estatuto da Igualdade

Casos como esses mostram a importância das ações afirmativas. Mas vale lembrar que elas vão além das cotas. A própria Seppir desenvolve ações nas áreas da educação, saúde, trabalho, cultura, segurança alimentar e nutricional e segurança pública, cada uma com um ministério diretamente correspondente. “Na saúde e na educação conseguimos emplacar uma ação mais visível”, conta Matilde. Na educação, além da discussão das cotas, a inclusão da história africana no currículo escolar é uma vitória ainda em fase de implementação. Na saúde, estão sendo gerados programas específicos, como o Programa Nacional de Anemia Falciforme, doença que ataca predominantemente negros, e medidas para a diminuição da mortalidade maternas infantil e juvenil, já que mulheres negras e jovens são as principais vítimas de violência.

Esse esforço está em boa parte resumido no Estatuto da Igualdade Racial, enviado ao Congresso recentemente pela Seppir. “O Estatuto é considerado por nós do governo um instrumento muito importante, que seria o regulador das políticas de igualdade racial e passaria a ser uma política do Estado”, explica a ministra Matilde. No Estatuto, estão reunidas as diretrizes para políticas de promoção da igualdade em todos os campos, da educação ao mercado de trabalho, passando pela saúde pública. No Congresso, a votação está parada por falta de acordo. O movimento negro está realizando, junto com as centrais sindicais e outros movimentos sociais, uma mobilização para a coleta de assinaturas para forçar a aprovação do Estatuto.

É com iniciativas como essas que vamos conseguir superar a pesada herança de racismo que o Brasil traz em sua história.

miltongMomento de glória

Em uma sexta-feira de 1981, 16 mil jovens, brancos e negros, se reuniram vestidos de branco no Maracanãzinho para ouvir 15 dos maiores cantores negros da MPB. “No momento em que Clementina de Jesus e Ariceto começaram com aquele seu partido-alto, a platéia veio abaixo. Foi meu momento de glória”, recorda o ator Milton Gonçalves, um dos organizadores do evento. O evento chamava-se Acorda Zumbi e celebrava o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro. “Foi a partir dali que o dia virou feriado no Rio”, recorda Milton.

O evento é um dos muitos que marcam a luta do movimento negro desde que o grupo gaúcho Palmares lançou – em 1971 – a idéia de comemorar e promover a consciência negra no dia da morte de Zumbi, negando o 13 de Maio. Nesse período, muita coisa mudou para negros e negras do país e o próprio reconhecimento da data, feriado em vários municípios e estados brasileiros, é um exemplo. “O saldo desses 35 anos é positivo, embora falte muita coisa, embora o racismo continue encravado no peito da sociedade”, afirma o deputado federal Vicentinho (PT-SP). A presidenta do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial (Inspir), Neide Aparecida Fonseca, concorda: “Hoje Zumbi é um herói nacional reconhecido pelo governo. Temos não apenas um dia, mas o Mês da Consciência Negra. O movimento avançou muito, são vitórias sem precedentes no movimento social brasileiro num período curto de tempo”.