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Enquanto volta o velho trem

O Pantanal tenta reforçar seu prestígio ambiental e seu potencial turístico. O cenário é ecologicamente privilegiado, mas também é cobiçado. Escavadeiras, carvoarias, pastos, canaviais – é aí, e não na boca do jacaré, que mora o perigo

Fundação de Turismo de MS

A partir de maio de 2009, o trem do Pantanal virá se somar a cavalgadas e passeios de barco

O famoso Trem da Morte, um dos caminhos mais interessantes para Machu Picchu, para a Bolívia e para o próprio Pantanal, vai voltar com nova roupagem em Mato Grosso do Sul. Após a desastrosa privatização da malha ferroviária realizada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a linha, que vai de Bauru (SP) à Bolívia, passando por Campo Grande e Corumbá, conta somente com um importante e burocrático trem de carga, depois de operar entre 1914 e 1996. Em maio, contudo, estará de volta aos trilhos o Trem do Pantanal, destinado a fortalecer o turismo na região e o transporte de passageiros. Inicialmente, vai operar entre a capital Campo Grande e o município de Miranda, com escala em Aquidauana.

Em 2010, a linha deverá duplicar o percurso para chegar até Corumbá. A cidade, na fronteira com a Bolívia, foi definida pelo Ministério do Turismo como um dos 65 destinos indutores do desenvolvimento turístico regional no país. O status é um reconhecimento à infraestrutura básica e turística e dos atrativos já existentes, e deverá garantir maior atenção – e recursos – para a região. A ideia é fortalecer a vocação do Pantanal para o turismo.

Considerado pela Unesco Patrimônio Natural Mundial, o Pantanal foi uma das regiões escolhidas a dedo para disputar um lugar entre As Sete Maravilhas Naturais do Mundo. Mas não chegou à finalíssima do concurso, a ser concluído em 2010. Mesmo assim, o governo de Mato Grosso do Sul conta com esse cartão-postal como trunfo para seduzir os organizadores da Copa do Mundo de 2014 a instalar no estado uma das 12 sedes da competição. Enquanto ganha força no campo do marketing, o Pantanal se vê ameaçado por diversas atividades econômicas que crescem em seu interior e nas regiões que o cercam. A necessidade de enfrentamento desses problemas e da defesa do Pantanal se torna ainda mais evidente após uma visita ao bioma, um dos mais belos do Brasil.

Chegar ali por terra, pela água ou pelo ar é algo memorável. Tanto ao Norte, via Poconé (MT), quanto ao Sul, via Corumbá (MS), as rodovias que levam à região reservam paisagens e surpresas incríveis ao viajante. Isso sem falar nos minicruzeiros e hotéis flutuantes pelos milhares de cursos d’água que formam a maior área “alagável” de água doce do mundo. Ou na Estrada Parque, em que os bichos se multiplicam a cada quilômetro adentrado. Ou, ainda, na beleza de Corumbá, que foi cidade importante do Brasil Colônia e hoje é a capital do turismo local, às margens do Rio Paraguai e com dezenas de prédios históricos, parte deles recuperada e preservada, parte exigindo investimentos.

Mineração e ameaças

O cenário, porém, vem se transformando. Grandes companhias, como a Vale e a MMX, do empresário Eike Bastista, operam na região, onde há dois grandes complexos mineradores: o Maciço de Urucum, que possui uma das maiores jazidas de manganês do mundo, e o Cuiabá-Cáceres. De acordo com a ONG ambientalista Ecoa, são explorados ferro, manganês e calcário no trecho sul do Pantanal e ouro e diamante em seu trecho norte. Entre os impactos causados por mineradoras e siderúrgicas, chamam a atenção o comércio de carvão vegetal, produzido com madeira de desmatamento irregular, e o uso intensivo da água, do subsolo ou de rios. Em 2008, o Ibama emitiu R$ 140 milhões em multas relacionadas às irregularidades no mercado de carvão vegetal em Mato Grosso do Sul.

“Identificamos toda uma rede clandestina estruturada no estado para a produção, transporte e compra do carvão, que se beneficiava do desmatamento”, relata Ricardo Lima, chefe do Escritório Regional do Ibama em Corumbá. Segundo ele, a MMX, quando se instalou no município, assinou um compromisso com o Ministério Público de que não compraria carvão produzido com madeira retirada do Pantanal. Mas o acordo foi violado.

Em 2007, a MMX foi multada em R$ 1 milhão. Em 2008, as multas pelo mesmo motivo já beiravam R$ 30 milhões. A MMX foi procurada pela reportagem para se defender das acusações sobre o uso de carvão vegetal e também sobre a degradação que estaria causando, segundo o Ibama, ao Rio Piraputangas, pela captação intensiva de água voltada às suas atividades. A assessoria da empresa alegou que não poderia comentar as denúncias porque seu porta-voz estava viajando.

A unidade Urucum da Vale em Corumbá não usa carvão vegetal, mas coque de petróleo. No entanto, suas operações também geram impactos, sobretudo aos recursos hídricos. Conforme o Ibama, é dramática a situação do córrego Urucum, de onde a empresa capta água. “Está secando”, diz Lima, do Ibama. A assessoria de imprensa da Vale informou, entretanto, que toda a sua operação é regular e que o sistema de gestão de recursos hídricos é acompanhado por auditores independentes.

Em Albuquerque, distrito de Corumbá, Marco Aurélio Lellis possui dois hotéis, voltados ao turismo de pesca. Em entrevista às margens do Rio Miranda, ele conta que na região “dá tudo quanto é peixe: dourado, pintado, pacu, piau”. Lellis diz estar preocupado com o impacto das mineradoras, que tragam morros inteiros em meses e contribuem para o assoreamento dos rios. O que mais o assombra, contudo, é o uso intensivo da água da região pelas empresas. “Se a água não vier, o Pantanal acaba”, alerta.

Cana em expansão

Outro tema que preocupa os defensores do Pantanal é o avanço da cana-de-açúcar. Atualmente, Mato Grosso do Sul conta com 14 usinas. O governo estadual estima que esse número poderá triplicar nos próximos dez anos, e não acredita que esses empreendimentos causem problemas ambientais. Porém, um estudo recém-lançado pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da ONG Repórter Brasil sugere apreensão com o avanço do número de usinas, canaviais e riscos em potencial para o ecossistema pantaneiro. Em 1985, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) editou resolução vedando a instalação das usinas não só na área do Pantanal, mas em toda a Bacia do Alto Paraguai (BAP). O Rio Paraguai é a origem de boa parte da vida e das águas que formam a riqueza da área. Antes de 1985, contudo, diversas usinas já haviam se instalado na região.

O promotor Paulo Zeni, do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, cita como impactos do setor sucroalcooleiro o deslocamento de grandes contingentes de gado, o desmatamento, o transbordamento de vinhaça em áreas de preservação e, ainda, o uso intensivo dos recursos hídricos.
Dois novos projetos de usinas aguardam aprovação para serem instaladas no vizinho Mato Grosso. A construção dependerá do novo zoneamento agroecológico, em discussão no governo federal, que poderá reforçar a proibição à instalação de novas usinas na BAP e no Pantanal ou, simplesmente, suspender os efeitos da resolução do Conama de 1985.

Onde passa um boi

Imortalizadas em clássicos de Almir Sater, Sérgio Reis e outros grandes nomes da música sertaneja, as boiadas seguem uma atração à parte na região. A atividade pecuária, contudo, exige cuidados crescentes, sob pena de botar a perder não só o equilíbrio do bioma em si, mas a própria sobrevivência. Na avaliação de Alcides Faria, diretor da ONG Ecoa, de Campo Grande, a pecuária está razoavelmente integrada ao bioma, mas seu desenvolvimento deve se dar levando em conta as peculiaridades – e fragilidades – da região.

Para Erich Fischer, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), a pecuária é a atividade que mais gerou mudanças até agora sobre o Pantanal, mas “outras atividades” parecem representar ameaças muito maiores: “O grande problema é a somatória de impactos, que tendem a aumentar com o tempo”.

A preservação dos cursos d’água e a do alagamento da planície para a renovação da vida no Pantanal devem ser itens estruturais no planejamento do futuro da região. A criação do gado e as demais atividades,  portanto, têm de contar com uma gestão responsável e tratar de evitar agressões como a erosão das margens dos rios, os desvios e as barragens sem critério.

Uma notícia a comemorar é o lançamento, em dezembro, do programa de recuperação e proteção ambiental do Rio Taquari. Composto por 31 ações de curto, médio e longo prazo, o programa deve gerar investimentos de R$ 60 milhões em toda a bacia hidrográfica do Taquari, assoreado há mais de 30 anos.

Outras importantes iniciativas do poder público, no âmbito federal, estadual e municipal, apontam para o fortalecimento do Pantanal e da luta por sua preservação. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê investimentos de R$ 52 milhões em obras de saneamento básico em Corumbá até 2010, das quais mais da metade já foi executada. Está prevista a construção de 245 quilômetros de redes, 14 mil ligações domiciliares e duas estações de tratamento. Sem as obras, todo o esgoto municipal continuaria a ser despejado no Rio Paraguai, o principal do Pantanal.

Antonio Biondi e Marcel Gomes são jornalistas e integrantes do Centro de Monitoramento dos Agrocombustíveis 
da ONG Repórter Brasil www.reporterbrasil.gov.br

Serviço de bordo
O trecho Campo Grande-Miranda, de 220 quilômetros e oito horas de duração, custará R$ 32 na classe econômica, 
R$ 77 na turística e R$ 126 na executiva, com direito a serviço de bordo, lanche e bebidas. As partidas serão no sábado em direção a Miranda, com retorno a Campo Grande no domingo. De lambuja, pelo caminho com dez paradas, um cenário habitado por jacarés, flamingos, tuiuiús, uma flora surpreendente, além de artesanatos, construções antigas e o contato com a cultura dos Terenas. A viagem inaugural, prevista para 8 de maio, já está com os 400 lugares dos sete vagões reservados, entre eles o do presidente Lula. A linha será administrada pela concessionária Serra Verde, que já opera trens turísticos no Paraná.