entrevista

Em campo pela inclusão

Para o craque Raí, não se pode pensar em política de esporte sem pensar no esporte na escola, em educação

Jailton Garcia

Muitos críticos dizem: ‘Pô, que ridículo! O cara fez o gol e tirou a camisa, ficou balançando…’ Quem diz isso nunca fez um gol com 50 mil pessoas gritando. Você pira

Raí Souza Vieira de Oliveira deixou os gramados em 2000 depois de ser tetracampeão do mundo (1994) com a camisa da seleção e campeão mundial  de clubes (1992) com a do São Paulo. Ainda nos campos, em 1998, criou, com o colega Leonardo, a Fundação Gol de Letra, organização não governamental que desenvolve programas de educação integral. Há três anos lidera a Atletas pela Cidadania, entidade de mobilização em prol de causas sociais que reúne personalidades da comunidade esportiva – como Ana Moser, Lars Grael, Fernando Meligeni, Magic Paula, Sócrates, Fernando Scherer, Zetti, Fernanda Keller. A bola da vez é a divulgação da Lei de Aprendizagem, para incluir no mercado de trabalho 800 mil jovens, meta adotada pelo presidente da República. A vontade de mudar a realidade brasileira vem de família: o pai, Raimundo, era pobre, nordestino (e fã dos filósofos gregos) e fazia os filhos Sócrates, Sófocles, Sóstenes e Raí conhecerem outras realidades. Ele sente falta de jogar bola, mas não do futebol profissional. E confessa que quase desistiu da carreira por causa das comparações que faziam com o irmão Sócrates. Mas o constrangimento virou motivação para brilhar no Botafogo de Ribeirão Preto, no São Paulo, no Paris Saint-Germain. Aproveitando o Ano da França no Brasil, esta conversa traz um pouco da batalha de Raí para que os sonhos de Primeiro Mundo que viveu naquele país sejam possíveis de realizar aqui mesmo, em sua terra.

Você criou a Fundação Gol de Letra em 1998 e a Atletas pela Cidadania em 2006. Por que enveredou pelo terceiro setor?

Quando decidi, nem sabia que se chamava terceiro setor. Primeiro de tudo foi uma inquietude de ver um país tão injusto, realidades cruéis. Acho que tem um pouco também de influência familiar. Meu pai é nordestino de Fortaleza, veio de um meio muito pobre e sempre nos fez valorizar as oportunidades que tínhamos, conhecer outras realidades. Isso influenciou a mim, meus irmãos, o Sócrates, que tem uma história de participação também. Já tinha um pouco presente essa vontade de participar de algo mais concreto para mudar essa realidade. E o fato de ter tido sucesso profissional num esporte tão popular, com a importância que tem para o país, dava mais vontade, mais responsabilidade.

Você continua na Gol de Letra?

Sim. A Gol de Letra é um projeto social de ação direta com comunidades, famílias, crianças e jovens. É uma ação educativa. A Atletas pela Cidadania é um movimento de mobilização, mais político, que a gente chama de advocacy: você vê como pode mobilizar e articular em prol da causa. Fazemos articulação por políticas para a juventude.

E como estão essas articulações?

Pelo pouco tempo, avançamos muito mais do que eu imaginava. Nem fez três anos ainda. Começou com alguns atletas, foi crescendo e acho que tem uma coisa que foi muito feliz: uma equipe competente. Ela usa nosso nome, articula, sem, necessariamente, termos de estar presentes, porque muitos ainda estão jogando; eu e outros, com pouco tempo. Em dois anos conseguimos que o presidente da República assinasse uma meta que nós lançamos. E o presidente do BB, o da Caixa… Isso mostra o poder mobilizador que têm os atletas, além do esporte.

Você parece ser precursor na criação de ONGs e projetos sociais. O período vivido na França teve influência nessa concepção social?

Viver numa realidade que para nós parece utopia, numa sociedade que chegou a um modelo próximo do que para a gente é o ideal, é motivador. Não foi o que me levou a fazer a coisa, mas me estimulou. No período dos maiores contratos da minha carreira (em Paris), eu tinha uma empregada doméstica, brasileira também, que ganhava um salário infinitamente menor que o meu, mas sua filhinha frequentava a mesma escola e o mesmo médico que minha filha. Para mim, isso é justiça social. As oportunidades dos filhos são as mesmas; depois, cada um tem seu talento e toma suas decisões. Estamos longe de viver isso, mas vi que é possível.

Como foi sair dos gramados e frequentar gabinetes políticos?

É uma coisa muito rica, um aprendizado. Ao tomar a iniciativa de ter um projeto, você começa a conhecer de perto muita gente de movimentos sociais, uma outra realidade. E a entender por que existem essas realidades diferentes. Para mim não é um sacrifício. Ter de conviver em grupo, lidar com dirigente, com torcida, com imprensa – tenho de estar sempre domando, não deixa de ser uma articulação.

A Lei do Aprendiz é o principal foco de mobilização hoje? Vocês têm outros focos depois desse?

Temos uma causa que é transversal – a educação, a melhoria da qualidade da educação como um todo. Se você vai falar da aprendizagem, está falando em ensino e qualificação. Não queremos participar de causas com campanhas apenas, mas com estratégias e metas. Agora, no início, não queremos dividir muito os esforços; vamos pensar em outra causa mais à frente. Mas a associação nasceu para lutar por causas nacionais. A partir do momento em que estivermos mais sólidos, poderemos apoiar outras causas. O problema ambiental está cada vez mais grave, uma hora vai ser inevitável. Tem um grupo de trabalho que está com o tema esporte, política esportiva, mas isso vai ser mais para a frente. Queremos deixar claro, porém, que não tratamos só de esporte.

Como o presidente Lula recebeu a meta dos Atletas pela Cidadania?

Ele gostou da ideia, porque também foi um aprendiz, mas acho que ainda não teve tempo de se aprofundar, de saber mais. Mas foi muito simpático. Conforme formos conquistando coisas, pessoas de todos os níveis vão passar a respeitar mais ainda.

O que você faria se fosse ministro dos Esportes?

Eu criaria uma política de esportes, porque não existe, é preciso uma política nacional. Colocaria os maiores experts do país – que foram atletas ou não –, estudiosos, para pensarem uma política esportiva de longo prazo. Não se pode pensar em política de esporte sem pensar no esporte na escola, em educação. Não existe uma política integrada para depois ir crescendo nos estados e municípios. Temos profissionais para isso. Na França, o esporte está mais em clubes e associações; nos Estados Unidos, na escola e na universidade. E no Brasil? Não tem.

A que você atribui a falta de política pública?

Acho que é muito parecida com outras questões do país. O problema é a falta de continuidade. E em relação ao esporte tem uma coisa mais grave: não se dá a devida importância, isso falando da administração pública, de política, orçamento… Na cidade (de São Paulo), acho que é 0,7% do orçamento. E no governo federal a escolha dos ministros é política, pessoas que não têm histórico na área, não conhecem. O esporte sempre foi meio relegado, nunca foi levado a sério pelas administrações, sempre com orçamentos baixos. Se existisse uma política esportiva, teríamos benefícios na área de saúde, educação, economia orçamentária até. Estes são os motivos: não pensar o esporte como algo importante para o país, não dar recursos nem colocar pessoas que entendam disso.

Você acha coerente o país não ter uma política pública esportiva e bancar uma Copa do Mundo?

Eu tenho receio. Depois do que aconteceu no Pan, a gente não merecia a Copa do Mundo. Mas, se for pensar o que o Brasil representa no futebol mundial, é inevitável, mais cedo ou mais tarde a Copa ia voltar para o Brasil. Tenho os meus receios quanto a corrupção, abuso do dinheiro público para interesses não públicos. O Pan pode servir como exemplo para a opinião pública pressionar para que isso não aconteça. Agora, eu acredito também que se o país soubesse usar esse evento esportivo de uma maneira bem pensada, mais ampla do que um simples evento, com certeza traria benefícios para o esporte. Poderia ser um start se tivesse interesse. Mas não há. Acho que o Brasil precisa mostrar mais em termos de política esportiva para merecer.

Houve alguma injustiça com você na Copa de 1994?

Na Copa, ter saído de titular, de capitão, para a reserva foi consequência das Eliminatórias. Havia muita crítica e eu era o capitão, quem representava aquele time, como o Dunga em 1990. Foi o primeiro jogo que o Brasil perdeu numa eliminatória (Bolívia 2 x 0 Brasil) e a seleção não ganhava uma Copa desde 1970, então tinha uma pressão muito grande. Fui para a França, tive um período de adaptação, não estava jogando o melhor. Quando começou a Copa, joguei três partidas como titular. Na primeira (Brasil 2 x 0 Rússia) fui considerado o melhor em campo; na segunda ganhamos de 3 x 0 (de Camarões); na terceira (1 x 1 com a Suécia), todo mundo jogou mal e eu também – daí saí. Mas não achei injustiça. Na imprensa, estavam querendo tanto que eu saísse que, quando tiraram, “bom, o que a gente vai falar agora?” Aliviou.

Mas no grupo havia algum…

Não, nada, zero. Ao contrário, tinha apoio. Eu não tive nenhuma reação negativa por respeito ao Mazinho e ao grupo. A Copa do Mundo é um marco e eu fui capitão dessa equipe durante quase quatro anos, era um líder. Se eu reagisse mal, poderia minar o grupo. Quando as pessoas viram que eu saí, mesmo sendo capitão, mas continuei ali participando, entrei em outros jogos, como contra a Holanda, isso contou para a gente manter o ambiente legal e ganhar.

Como você avalia o futebol brasileiro hoje, da qualidade em campo à atuação dos empresários – que assediam, controlam e oferecem ao exterior jogadores ainda adolescentes?

Essa geração tem muita qualidade técnica, mas infelizmente não está jogando aqui, e sim fora. O Brasil continua o melhor do mundo. Aonde o brasileiro vai vira líder, todo time campeão da Europa tem um monte de jogadores nossos. Virou unanimidade: brasileiro é um bom negócio, faz a diferença. Os problemas são as instituições – federações, confederação – e clubes. O Brasil faliu e os jogadores vão embora cada vez mais cedo, não tem como segurar. O desafio é econômico: como pensar o futebol. Todos os países hoje bem estruturados no futebol passaram por momentos de quebra do modelo existente. E o Brasil está chegando num momento que isso vai ter de acontecer. Chegamos  a um limite perigoso, mas bom, porque as grandes revoluções vêm do caos. A paixão e as torcidas continuam aí… Quer dizer, potencial tem. Acho que essa falência faz chegar um momento em que as pessoas vão dizer “opa, não dá mais”.

O que você acha da proposta de adequar o calendário do futebol brasileiro ao europeu?

Acho interessante. A gente tem de se render ao fato de que é o continente europeu que dita as regras, até pelo poder econômico. Cada vez mais as pessoas daqui estão assistindo ao futebol europeu. Acho que vale a pena um estudo. Não é o que vai resolver a debandada de jogadores, isso tem de vir atrelado à reestruturação, mas já é uma tentativa de pensar soluções.

Como você analisa a dança dos técnicos?

Isso virou uma certa cultura. Nesse aspecto os europeus têm grandes exemplos, mas também estão demitindo com mais rapidez do que antigamente – muito menos que no Brasil, claro. Acho que o futebol envolve muito o lado latino, paixão, querer resolver quando o time não está ganhando. É paixão aliada a uma visão curta, imediatista. A tendência é cair a qualidade. Se você tem um time arrumadinho, tem um treinador há muito tempo, ele vai jogar melhor.

Quem é mais ídolo do torcedor são-paulino, você ou o Rogério Ceni?

Acho que temos importância igual. Se for medir em títulos, ele ganha. Já estava na minha época e continua ganhando títulos, mais um Mundial. Então, me passou. Não somos íntimos, mas somos amigos. Ele participa de todos os eventos que a gente faz desde o começo da Gol de Letra, de todos os Torneios Gol de Letra.

Você tem saudade de jogar?

Tenho saudade de jogar bola, mas não do futebol profissional. Queria jogar mais. Sinto falta de brincar com a bola, às vezes. É uma coisa em que sou viciado.

Lembra do último gol que fez?

Foi sábado passado, minha filha era goleira e eu a encobri (risos). O último gol foi contra o Palmeiras, um gol de letra no Parque Antártica, acho que semifinal da Copa do Brasil, 2 x 0 ou 3 x 1, não me lembro exatamente (Palmeiras 2 x 3 São Paulo, quartas-de-final da Copa do Brasil, 27 de junho de 2000).

E da sensação de fazer um gol, torcida vibrando?

Nossa… Tem algumas coisas que me emocionam no estádio: primeiro é ver o público chegando, aquele movimento, aquele barulho; a entrada do time; e o gol, a vibração dele. A sensação do gol é um êxtase que você não sabe nem o que faz. Estava vendo umas fitas antigas, as primeiras vezes (que fez gol) eu não tinha uma comemoração. Cada hora fazia uma coisa, uma loucura, saía correndo, pulava, rolava, não sabia o que fazer. Era legal. Muitos críticos dizem: “Pô, que ridículo! O cara fez o gol e tirou a camisa, ficou balançando…” Quem fala isso nunca fez um gol com 50 mil pessoas gritando. Você fica louco, pira, não pensa.

Você se incomoda com a constante comparação com o seu irmão Sócrates?

Muito no começo de carreira me incomodava. Cheguei a pensar em parar de jogar por causa disso, achei que não conseguiria vencer essa pressão. Perguntava muito para os meus amigos, e eles: “Você está louco!” Mas logo venci isso, até porque me casei muito cedo, então o futebol virou sobrevivência, não era mais escolha. Consegui transformar numa motivação, num objetivo: “Agora as pessoas vão ter de reconhecer que eu posso jogar por mim mesmo”. Virou uma briga interior para me motivar.

Você sofreu algum preconceito enquanto jogava?

Eu, pessoalmente, não. Mas já vi. Na França, o Paris Saint-Germain tinha uma torcida pequena, uma minoria, que era radical, meio nazista. Quando cheguei, eles começaram a gritar “Rái, Rái, Raí” (estica o braço como o gesto nazista). Eu disse: “Acabou minha carreira aqui, virei ídolo de nazistas”. Para minha sorte, essa torcida acabou e o restante não acompanhou o gesto. Mas extremistas tem bastante. Já vi jogarem banana em um goleiro nosso, na França, imitarem macaco.

Como você lidava com o assédio das mulheres quando jogava e como lida hoje?

Eu me dou bem? (pergunta à assessora) Brinco que, quando estou com problema de baixa autoestima, saio na rua (risos). No mínimo, faz bem para o ego…