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E o céu desabou

Nunca se sabe quando vai cair em um dia a chuva de um mês. Mas já se sabe que em muitas cidades, além de Blumenau e Itajaí (SC), pessoas podem perder em um dia o que construíram em uma vida porque aceitaram o risco. E o poder público as ignorou

Rosane Lima

São 2h30 da madrugada de sábado, 22 de novembro. Eloísa, de 27 anos, é retirada de casa pela Defesa Civil. O rio vizinho, no bairro da Murta, em Itajaí (SC), transborda. Eloísa sai com o marido, os dois filhos, de 3 e 5 anos, e a roupa do corpo. Tenta ir para a casa da mãe em outro local, mas não consegue. Vai para um abrigo, a escola do bairro, onde ficará por três dias. A casa da mãe, também inundada, foi recuperada mais rápido. É lá que Eloísa se instala com a família, por tempo indeterminado. Ela ainda precisa ir ao centro da cidade refazer documentos pessoais. Antes, verificará o que sobrou. A cama da filha dificilmente conseguirá montar novamente – a madeira aglomerada inchou e amoleceu. Havia sido comprada à vista dois meses antes. O guarda-roupa do casal, totalmente perdido, estava apenas com a primeira prestação de R$ 90 paga, faltam nove. A bicicleta da filha Ana Luiza será recuperada, é só livrá-la da lama, a mesma que ocupa toda a casa da família.

Este é um dos resultados de três meses quase ininterruptos de chuvas, sendo três dias de chuvas torrenciais, do crescimento populacional nas cidades atingidas, da ocupação irregular do solo, da falta de um plano de ação prévio para deslocar moradores em risco, de planejamento urbano e de investimentos em habitação, saneamento básico, infraestrutura, prevenção e proteção ao meio ambiente. Enquanto as causas da tragédia vão sendo levantadas, algumas centenas de mortos e alguns milhares de desabrigados depois, as cicatrizes ainda estão expostas, mesmo com a volta do sol, dos visitantes e com a fase do bola-pra-frente proporcionada por uma das maiores ondas de solidariedade da história.

“Todo mundo perdeu um pouco. Parece terremoto, furacão, guerra o que aconteceu aqui”, conta Marcos Rafael Crispim dos Santos, de 18 anos, estudante universitário de Tecnologia e Logística. Marcos deixou a casa no bairro de São Vicente por quatro dias e ficou com parentes. O pai também saiu de casa no momento crítico para ajudar num abrigo.

500 milímetros

Ainda não se sabe se o evento foi isolado ou se vai se repetir e se foi causado pelas mudanças no clima em virtude do aquecimento global. Durante os dias 22 e 23 de novembro caíram 500 milímetros de chuva, quando a média de precipitação diária chega no máximo a 20 milímetros. A professora Claudia Siebert, da Universidade Regional de Blumenau (Furb), doutora em Desenvolvimento Urbano e Regional, observa que ocorreu a combinação de dois fenômenos numa mesma região, fato jamais visto em Santa Catarina e que resultou em catástrofe. “O céu desabou!” Segundo a professora, aconteceu a combinação de enchente com enxurrada.

Enchente é o alagamento por causa do aumento gradativo da água dos rios que cortam a região em virtude de chuvas constantes. Enxurrada é a concentração da água da chuva em tempo muito curto. As grandes enchentes que atingiram o Vale do Itajaí em 1983 e 1984 causaram menos perdas materiais e humanas do que a de 2008, apesar de o rio ter subido mais. Naquela época, em Blumenau, passou 15 metros acima do seu volume normal de água. Desta vez, subiu 12 metros. “Se fosse apenas a enchente, não causaria mortes”, afirma a professora.

O professor Juarês Aumond, de Geociências da Furb, também atribui as dimensões da tragédia ao fenômeno climático atípico e à morfologia do solo: “Os terrenos onde ocorreram os deslizamentos são muito acidentados e o solo é profundo, com barro até chegar à rocha, fazendo com que seja mais suscetível a deslizamentos com tanta chuva sobre o solo encharcado”.

Mas ambos associam a ocupação populacional dessas regiões íngremes às fortes chuvas como causa das mortes. Não haveria mortes se a região não tivesse sido ocupada irregularmente, já que boa parte é de preservação ambiental, ou pela especulação imobiliária, que empurrou a cidade para essas áreas. Blumenau sofreu uma mudança em sua tendência de construção e crescimento e um deslocamento da população da planície, atingida pelas inundações anteriores, para as regiões altas. A cidade é cercada de montanhas, que foram ocupadas nas décadas de 1980 e 1990 com a venda de terrenos mais baratos e pela ocupação irregular, atraindo tanto a população de baixa renda quanto a classe média. Enquanto isso, a região plana da cidade sofreu um processo de verticalização.

“A população que foi alagada em 1983 correu para os morros e agora morreu soterrada; e os moradores das áreas antes alagadas assistiram à enchente das sacadas dos seus apartamentos, sem poder se deslocar pela cidade”, define Juarês. “Se tivessem ouvido os técnicos e não ocupado essas encostas, que já estavam cartografadas como de risco, não teria havido tantas mortes”, defende. “Todo ano pego os meus alunos para identificar as áreas de risco, que continuaram sendo ocupadas. Estive em algumas dessas áreas com eles 20 dias antes de ocorrerem os deslizamentos, e falamos sobre a possibilidade de uma tragédia em algum tempo”, acrescenta. A professora Claudia Siebert faz coro: “Houve omissão”.

Para o geólogo Gerson Müller, da Secretaria de Obras de Blumenau, a ocupação das encostas e de outros locais de preservação deve ser tratada como questão social, já que não é exclusividade de Blumenau: “Não existe município com população acima de 20 mil habitantes que não tenha ocupação irregular”. Os principais bairros atingidos de Itajaí não sofreram com deslizamentos de morros, mas com o aumento do alagamento da cidade, que hoje possui mais habitantes e uma ocupação maior do espaço. Em bairros como São Vicente, há construções ao longo da margem do rio que ficam a 10 metros de distância ou até menos. A água subiu até as casas e muito além delas.

“Eu saí no sábado à tarde. Quando o meu quarto encheu eu saí e fui para a casa da minha irmã. Perdemos quase tudo”, conta Viviane Virgilino, de 23 anos, que mora à beira do rio com os pais e os dois irmãos. Viviane não pegou as enchentes de 1983 e 1984, mas ouve dizer que a de agora, menor no volume de água, causou mais estragos. E tem uma opinião: “O que a gente vê passar no rio antes da enchente… Passa colchão, passa cama, passa fogão, passa de tudo. Se a população não tomar consciência disso, vai acontecer novamente”.

A consciência ambiental de todos os atores envolvidos, o planejamento urbano e os investimentos públicos em infraestrutura e em preparação para novos eventos são apontados por especialistas para minimizar ou resolver muitos dos fatores que formaram o quadro desses acontecimentos. O poder público é visto como o principal agente capaz de organizar e definir, junto com a população, um rumo mais sustentável e planejado para que as cidades se desenvolvam de maneira ordenada com qualidade de vida. “A recuperação é milionária. Se conseguirmos colocar a cidade como era já será lucro e ainda assim dependerá de forte investimento”, afirma o geólogo Gerson Müller.

Com a chegada dos recursos, a preocupação é com a efetiva aplicação, inclusive dos milhões arrecadados com doações em dinheiro. O governo do estado garante que o dinheiro vai para uma conta específica para ser gasto com a recuperação dos estragos, com controle do Tribunal de Contas e divulgação dos investimentos no site da Defesa Civil Estadual. E que disponibilizará para as prefeituras máquinas, profissionais e materiais para recompor as localidades, em vez de verbas. Resta verificar com que agilidade os pedidos serão atendidos. O governo federal está realizando investimentos por meio de diferentes setores. O Ministério da Educação liberou perto de R$ 1 milhão para a compra de material, equipamentos e contratação de serviços em escolas nas 12 cidades mais atingidas.

Uma medida provisória autorizará o repasse, em quatro parcelas, de R$ 372 milhões para Santa Catarina, correspondente à antecipação de valores devidos ao Instituto de Previdência do estado nos próximos dez anos. O Porto de Itajaí levará dois anos para ser recuperado plenamente. Das obras que integram o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Santa Catarina deverá receber R$ 12 bilhões até o fim de 2010. Depois da enchente algumas atividades da região nas áreas de saneamento e habitação serão revistas, segundo afirmou a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

De acordo com a Casa Civil, na publicação do PAC que traz informações estaduais, estão previstas obras de urbanização de favelas com remoção de moradias localizadas em áreas de risco de famílias que moram em Florianópolis, São José, Itajaí, Joinville e outras localidades. A questão é garantir a efetiva aplicação de todos os recursos prometidos. De R$ 360 milhões previstos no Orçamento da União para ser aplicados em 2008 no Programa de Prevenção e Preparação para Emergências e Desastres, pelo Ministério da Integração Nacional, apenas R$ 44 milhões foram executados.

Outros rumos

Agora, é preciso planejar com eficiência o imediato – a reconstrução – e o longo prazo. Especialistas defendem que é fundamental investir no mapeamento das áreas de risco ocupadas, na prevenção e na construção de habitações populares. “Não é possível voltar ao que era. Tem de ter projeto de urbanização, sem ocupar as encostas”, afirma a professora Claudia Siebert. Juarês Aumond defende a construção de prédios de quatro andares, em conjuntos subsidiados. “A tendência é verticalizar. É preciso buscar alternativas para áreas que não alaguem, não deslizem, sejam arejadas e compatíveis com as necessidades da população”, afirma Aumond.

Já o professor do Departamento de Análise Geoambiental da Universidade Federal Fluminense (UFF), Júlio César Wasserman, defende a permanência dessas populações nas áreas já ocupadas e que qualquer transferência para conjuntos de habitação popular seja negociada e decidida com os moradores: “Não dá para desalojar as pessoas dos morros e colocar em edifícios em outras regiões. Essa é uma visão dos anos 80 e não funciona”. Ele cita o exemplo da barragem de Tucuruí (PA), construída nos anos 1970 no Rio Tocantins: “Construíram uma vila a 700 quilômetros da cidade que seria alagada. As pessoas não ficaram, o local virou cidade-fantasma, e se instalaram em condições muito precárias à beira da lagoa de Tucuruí”.

Para o professor, seria mais útil pensar na permanência das pessoas e em sistemas de alerta que garantam evacuação antecipada dos moradores e pronto atendimento antes que o desastre ocorra, providenciando rapidamente abrigos, moradia, atendimento médico e alimentação até que o fenômeno passe. Wasserman utiliza um conceito chamado Preparação, também empregado pela Unesco no tsunami da costa asiática em 2005. “Eles utilizam esse conceito também no Japão e na Costa Oeste dos Estados Unidos, onde se espera o grande terremoto”, argumenta.

No caso das cidades do Vale do Itajaí, por exemplo, hoje não existe nenhum índice ou critério pluviométrico que determine a retirada de populações de área de risco. Segundo o geólogo Gerson Müller, esta poderia ser uma das medidas de prevenção a ser adotada daqui para a frente. A região já sofre com enchentes há mais de um século, mas os motivos e as soluções hoje são diferentes. O que permanece é o sofrimento das pessoas, passado de geração em geração.

Eloísa, que passou pela enchente de 1983 quando tinha 3 anos, idade do filho mais novo, acredita que a tragédia vai ficar gravada para eles. “Eu acho que marca, né?”. “A nossa casa tá vazia, suja e cheia de água, né, mãe?”, diz Ana Luiza, de 5 anos. “O caranguejo estava dentro de casa, né, mãe? Tinha aranha também. Eu chorei com medo da aranha e do caranguejo. Também tinha boi morto lá na Murta.” Apontando para o muro da casa da avó, Ana Luiza mostra as marcas da enchente. “Olha ali como que ficou o muro, a medida. Mas depois eu vou dar banho na minha bicicleta e a gente vai brincar.”