Crônica

Dias de Pelé

“Chutei pra sujar aquela roupa branquinha e errei. Ah, se o Elias ficasse sempre ali”

mendonça

Todo grosso tem seu dia de Pelé. Não sei de quem é essa frase, mas imagino que seja de Neném Prancha, que nos bons tempos do Botafogo do Rio torcia pelo alvinegro e era considerado “filósofo da bola”, por suas frases de efeito, como a célebre “o pênalti é uma coisa tão importante que devia ser batido pelo presidente do clube”. 

Qualquer time tem um perna-de-pau que um dia desencanta. Falo isso preferindo o futebol de Garrincha, mais divertido, gozador, como acho que deveria ser sempre o futebol. Mas o esporte vai ficando coisa séria demais, não comporta gozações nem brincadeiras como as de Garrincha, que chamava os marcadores de “João” e dava-lhes um baile, coisa que hoje seria considerada humilhação e justificaria aos adversários baixarem-lhe o sarrafo – com a complacência dos comentaristas esportivos: “Ah, mas ele provocou…”

Lembro alguns grossos que tiveram seu dia de Pelé (ou de Garrincha), começando pelo Zé Cocão, goleiro do segundo time da Esportiva Nova Resende, que pegou o apelido por causa da cabeça grande. Frangueiro que só ele, um dia fechou o gol. Com suas defesas e o ataque funcionando, logo o time ganhava de 3 x 0. Zé Cocão pegou uma cadeira (não sei quem levou, mas o campo não tinha alambrado e era fácil chegar até o goleiro), óculos e jornal e sentou-se no meio do gol. Colocou os óculos e ficou fingindo ler. Imagine hoje… Seria agredido com certeza.

Outro é o Siriaco, lateral-direito do mesmo segundo time da Esportiva Nova Resende. Talvez muitos leitores não saibam o que é isso de segundo time. É que no interior, antes do jogo pra valer, sempre havia uma preliminar entre esses times formados pelos que aspiravam ser titulares do primeiro time e uns jogadores que nunca seriam titulares, mas gostavam de jogar futebol e o pessoal da equipe gostava deles. O jogo dos segundos times – também conhecido por “segundo quadro” – era para a torcida ir se distraindo até começar o jogo do primeiro, o que valia.

O Siriaco era grosso. Muito grosso. Nunca seria titular do primeiro time. Um dia, quase teve seu dia de rei. O goleiro passou-lhe a bola na lateral direita, ele foi indo de cabeça baixa, driblando todo mundo, chegou ao gol adversário, driblou o goleiro e podia entrar com bola e tudo, o que tentou fazer, mas, sem levantar a cabeça, deu de cara com a trave e a driblou também, só que pelo lado errado. Saiu pela linha de fundo.

Se tivesse feito o gol, Siriaco teria superado Pelé no seu famoso “Gol de Placa”, marcado no Maracanã, contra o Fluminense, em março de 1961. Pelé pegou a bola passada pelo goleiro Gilmar perto da área, driblou seis do Fluminense e marcou um gol que mereceu uma placa feita pelo jornal paulistano O Esporte – ideia do jovem repórter Joelmir Beting, que testemunhou aqueles 3 x 1 do Santos e entrou para a história junto com o gol.

Outro grosso das minhas amizades teve seu dia de Pelé: o Cabeça de Vaca – mais um do segundão da Esportiva Nova Resende. Ele chutava mal, nunca tinha marcado um gol. Mas, num dia que tinha chovido muito e o campo estava puro barro (não era gramado), pegou uma bola na entrada da área e meteu no ângulo, sem chance para o goleiro. Todo mundo se surpreendeu. Dali a pouco, pegou outra bola ainda mais longe do gol e marcou outro golaço. 

Depois do jogo fui perguntar se ele tinha treinado chutes de longe, e ele me contou em segredo: “Eu não chutei no gol. O Elias estava assistindo ao jogo em pé, atrás da linha de fundo, a uns cinco ou seis metros do gol. Estava de terno branco. Quando peguei a primeira bola, chutei pra sujar aquela roupa branquinha. Errei e marquei o gol. Veio a segunda bola, chutei e errei de novo”, confessou.

“Ah, se o Elias ficasse sempre ali.”  

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi