Dias de cadeirante

E lá estava eu olhando os outros de baixo para cima, achando tudo estranho. Passei a dar mais valor a amigos como o Marcelo Rubens Paiva, sempre de bom humor e cheio de planos, mesmo sabendo que a cadeira dele é para sempre

mendonça

Sei que a palavra é feia, mas é a que temos para definir quem anda numa cadeira de rodas, quer dizer, quem não pode andar com as próprias pernas. No começo de março, sem aviso prévio, virei um cadeirante. Numa fração de segundos, a tampa de uma caixa de bomba de piscina cedeu, caí sobre os canos, quebrei vários ossos e desmaiei de dor. Quase deu perda total. Quando reacordei, já tinha um monte de gente em volta palpitando sobre o que fariam comigo para me tirar do buraco. Sem forças para reagir, entalado que estava, fui ficando cada vez mais assustado.

Por sorte, como sempre acontece nessas horas, alguém assumiu o comando das operações e determinou que se chamasse o Resgate. Hora do almoço na praia, calor infernal, os minutos que os bombeiros demoravam pareciam intermináveis horas.

Quando fui ver, já estava no pronto-socorro do hospital público de São Sebastião, cercado de gente atropelada, baleada, esfaqueada. Minhas dores até diminuíram ao ver o sofrimento dos outros. Os médicos e enfermeiras que me atenderam pareciam ter percebido isso. A todo momento vinham pedir desculpas, mais um pouco de paciência, porque chegara outra urgência, mais um ferido em estado pior que o meu.

Não carregava nenhum documento, mas também ninguém pediu. Em resumo: algumas fraturas no pé esquerdo, três costelas quebradas, escoriações generalizadas, como o escrivão registrava nos antigos boletins de ocorrência. Mesmo assim, fui andando até o carro, levando a receita de remédios para aliviar a dor. No dia seguinte, já em São Paulo, os médicos de um hospital particular repetiram os mesmos exames e fizeram os mesmos diagnósticos.

Saí com bota ortopédica e a recomendação de passar pelo menos um mês na cadeira de rodas – por causa das costelas quebradas, não era recomendável usar muletas, quer dizer, era impossível. Já perdi as contas de quantas vezes me quebrei na vida, já passei por mais de dez cirurgias, mas nunca tinha chegado antes a esse ponto.

Minha mulher, a fantástica Mara, que deve ter mais horas de hospital do que muita enfermeira-chefe, tratou logo de alugar uma cadeira básica a módicos 30 reais por semana. Meia hora depois lá estava eu encadeirado, olhando para os outros de baixo para cima, achando tudo muito estranho. No início, você se conforma – “até que dei sorte, poderia ter sido pior…”, mas depois de uns três dias o neocadeirante já começa a ficar impaciente.

Como não conseguia movimentar a cadeira sozinho por causa da dor nas costelas, precisava a toda hora chamar alguém e, como moramos só nós dois em casa, esse alguém era sempre a Mara. Por pior que seja a situação, a gente acaba sempre se adaptando a uma nova rotina. Se ela precisava sair para cuidar da vida, me deixava num café que tem em frente ao nosso prédio, aonde costumo ir sempre e sou amigo de todo mundo, com a recomendação de que cuidassem bem de mim e me devolvessem na portaria. Sempre tinha algum solícito lá para me levar até o apartamento. O pior de tudo é ficar sempre dependendo dos outros para ir e vir.

Nas festas, é importante ficar atento logo na chegada para ver onde está a turma mais legal porque sempre há o risco de o estacionarem numa roda de chatos. O pior é contar mil vezes o que aconteceu e ouvir mil vezes relatos de histórias semelhantes acontecidas com alguém.

Mas, quando há um prazo marcado para devolver a cadeira e voltar a andar com as próprias pernas, vai-se levando. Passei a dar mais valor a amigos como o Marcelo Rubens Paiva, sempre de bom humor e cheio de planos, mesmo sabendo que a cadeira dele é para sempre. No dia em que devolvi a cadeira, passei a dar mais valor também ao simples ato de poder caminhar.

Ricardo Kotscho é jornalista. Trabalhou nos principais veículos de comunicação do país e foi secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República (2003-2004). É autor, entre outros, de Serra Pelada – Uma Ferida Aberta na Selva (Brasiliense, 1984), A Prática da Reportagem (Ática, 1986), Caravana da Cidadania – Diário de Viagem ao Brasil Esquecido (Scritta, 1993) e Do Golpe ao Planalto – Uma Vida de Repórter (Companhia das Letras, 2006

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