comportamento

Devagar e sempre

O Brasil já descobriu o sabor da resistência cultural e econômica do slow food, o movimento que busca, mais que comida saudável, uma vida com mais prazer

Augusto Coelho

Roberta de Sá: “Nosso papel é dar voz às comunidades, junto com os chefs e a universidade”

Fast food estressa. Engole-se, para voltar logo à atividade que a refeição “atrapalhou”. Pouco importa como a comida foi feita. Se derrubou árvores, estragou o solo. Seu símbolo é o McDonald’s. Mas não só. Abra a geladeira, e ela está lá. A comida industrializada. Padronizada. Com cheiro uniformizado. Seu nome é lucro. O estômago e a cabeça são apenas engrenagens de uma máquina sem sabor – em São Paulo ou no interior do Ceará.

O slow food, movimento surgido na Itália em 1989, procura o resgate dos hábitos alimentares perdidos. Seu nome não significa apenas a resistência a um estilo alimentar imposto por multinacionais, mas a um modelo econômico. É comida para ser saboreada com prazer e sensação de responsabilidades – social, econômica, cultural. Deglutida aos poucos, humaniza o ritmo de vida.

“Eu definiria slow food como uma ética do prazer com consciência ambiental. É também um tipo de ecogastronomia”, diz Mario Ignacio Spada, proprietário de uma pousada em Porto das Dunas, no litoral cearense, a 23 quilômetros de Fortaleza. Às 6 horas, Mario acorda, sem despertador. Capricha no café-da-manhã e só depois vai começar a servir os hóspedes. “Quero poder comer bem, fazer as coisas sem pressa, ficar fora do caos, viver uma vida saudável”, diz o empresário, que já morou em São Paulo e Belo Horizonte. A “pousada cultural” é seu subterfúgio para atrair hóspedes afinados com sua filosofia. “Durante o dia faço trabalho de manutenção, conserto coisas quebradas, construo objetos de madeira, pinto. Faço a decoração. E não tenho pressa.” Para Mario, seis horas de sono bastam para repor as energias.

A rotina desacelerada, no entanto, não traduz toda a dimensão do movimento. Aderir ao slow food não alterou a agitada rotina da consultora de restaurantes paulistana Heloísa Mader. “Não se trata de uma doutrina impositiva de desaceleração do ritmo de vida. É muito mais que isso”, defende. Para Heloísa, o slow food é um contraponto ao fast food na medida em que se coloca contra a massificação do sabor. Mas o principal aspecto é a consciência ambiental – incluindo o espaço urbano. “Isso não me impede de ter uma vida superacelerada, de até 18 horas de trabalho num dia. Posso ter 15 compromissos, mas paro para comer, e não é em frente ao computador, ao telefone nem num drive thru. Basta programar o tempo. Se eu tiver de sair às 5 horas, acordo às 4. Não existe acordar atrasada e sair sem café-da-manhã”, descreve.

Intercâmbio

O slow food ganha terreno no Brasil. A correia de transmissão do movimento são os produtos que preservam as características culturais locais, os ciclos ecológicos e a economia popular. Um exemplo é o chimarrão – pela popularidade, pela cultura, pelo ritual de degustação. “A erva-mate era utilizada pelos índios muito antes da colonização”, conta Luiz Zenaide Gomes, produtor de Santa Maria do Oeste (PR). “É slow food de origem.” Gomes integra uma das 55 comunidades brasileiras do alimento Terra Madre – rede global que reúne mais de 1.600 grupos que compartilham experiências para proteger a qualidade do alimento e a produção agrícola local. O grupo exporta cerca de 12 toneladas de chá-mate orgânico. “Hoje, se me pedem suco de tangerina, não tenho, mas sei quem tem, e com certificado.” Ele ressalta a necessidade de união dos produtores.

Entre outros produtos brasileiros no catálogo mundial de slow food estão o feijão canapu, de vários municípios do Piauí (espécie introduzida por escravos no século 16), o néctar de abelhas dos índios sateré-maué, no Amazonas e Pará, as ostras de Cananéia, no litoral de São Paulo. Alguns produtos estão ameaçados de extinção e compõem a chamada Arca do Gosto – são 600 no mundo, 11 no Brasil (como o palmito-juçara paulista e a farinha de batata-doce dos craós, no Tocantins).

Para preservar os produtos, o movimento criou as Fortalezas. Elas organizam os produtores para conquistar novos mercados. São cerca de 300 no mundo, seis no Brasil. Roberta Marins de Sá, consultora do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), avalia projetos e os reúne nos diversos grupos de slow food. “Nosso papel é dar voz às comunidades, junto com os chefs e a universidade”, afirma. Ela critica o enfoque dado pela mídia ao slow food no Brasil. “Falam só da coisa do comer devagar e da alta gastronomia.”

Papel do consumidor

Parte essencial do movimento está nas mãos do consumidor. Ele é tão importante que, quando associado à rede, ganha a denominação de “co-produtor”. Mais do que a contribuição financeira (10 euros anuais para membros de grupos ou 30 euros individualmente), cabe a ele ajudar a divulgar os alimentos. O Brasil possui dez desses grupos, chamados de convivia (no singular, convivium): o Amazônia, em Belém, o Empório do Sertão, em Montes Claros (MG), o Florianópolis, o Fortaleza, o Piracicaba (SP), o Rio de Janeiro, o São Paulo, o Belo Horizonte, o Brasília e o Pirenópolis (GO).

O maior e mais antigo é o carioca, comandado pela gastrônoma Margarida Nogueira. Ela viajou em 1999 para a Itália e encontrou líderes do slow food que não conseguiam entender por que um país tão rico em diversidade como o Brasil não tinha convivia. Ao voltar para o Brasil, criou o do Rio, com a ajuda de amigos. Hoje tem cerca de 50 pessoas. Elas costumam se reunir para degustar os alimentos brasileiros do Terra Madre e criar pratos. “É tarefa difícil, num país continental, obter todos os produtos”, diz Margarida. Na ceia de Natal, por exemplo, em lugar das castanhas importadas estavam as brasileiras, como a de baru, produzida em Pirenópolis. “Sempre descobrimos produtos diferentes, que são da nossa própria terra e dos quais nenhum de nós tinha ouvido falar”, comemora. Uma das pérolas é o arroz-vermelho, do Piauí, que chegou no início da colonização, mas foi descartado pelos portugueses por motivos comerciais.

Ela conta que, nos jantares promovidos para o consumidor comum, é muito freqüente os produtos acabarem rápido – contrariando um tanto a idéia da refeição lenta. “As pessoas ficam impressionadas e querem saber de onde eles vieram.”

Segundo Roberta de Sá, o Terra Madre tem 150 sócios no Brasil. “Mas há muito mais gente envolvida nos projetos, pois cada pessoa representa 60 comunidades, que podem ter desde 20 até 1.000 famílias”, calcula. “Por outro lado, não temos os consumidores conscientes. Estamos precisando exatamente disso – os consumidores é que dão o apoio, que vão divulgar o projeto.”

diogo scopel/ divulgaçãociane
Ciane, de Antônio Prado: “Adaptamos todo o cotidiano à preservação da nossa história e do meio ambiente urbano”

Slow city

Se o tempo não pára, em algumas cidades ele passa mais devagar. Elas fazem parte da rede internacional das slow cities, conhecidas no Brasil como cidades do bem-viver. O movimento deriva do slow food. Está em 30 cidades italianas e se expandiu por países como Alemanha, Noruega, Reino Unido, Polônia, Portugal e Espanha. Duas cidades brasileiras estão incluídas: Antônio Prado (RS) e Tiradentes (MG). O objetivo é resistir à homogeneização, apoiar a diversidade cultural e as especialidades locais.

O secretário de Turismo, Cultura e Meio Ambiente de Tiradentes, Marcelo Gomes, diz que a cidade de 7 mil habitantes não precisou mudar de ritmo para ser certificada – as características do bem-viver já estavam presentes. “Nossa preocupação é mantê-las”, diz. A participação no movimento não diminuiu a atividade econômica. “Desde 2002, 17 casais que moravam em grandes centros estressados se mudaram para cá e abriram pousadas e restaurantes, gerando empregos”, afirma Gomes.

As cidades candidatas ao selo slow city – certificação de qualidade de vida – passam por uma seleção. Precisam ter menos de 50 mil habitantes e seguir rigorosamente 55 princípios ligados a política ambiental, sustentabilidade urbana, infra-estrutura, incentivo a produtos locais, hospitalidade e senso de comunidade. E têm de conservar seu patrimônio histórico. A cidade italiana de Bra, no Piemonte, com 27 mil habitantes, é a sede do movimento. Lá, um decreto municipal obriga o comércio a fechar às quintas-feiras para que os proprietários tenham tempo de cuidar da vida pessoal.

A geógrafa Ciane Fochesatto, de 25 anos, funcionária pública em Antônio Prado, encaminhou a candidatura da cidade, que recebeu o selo slow city em 2001. “Temos um dos maiores patrimônios históricos do Brasil, com 48 edifícios tombados. Adaptamos todo o cotidiano à preservação dessa história e do meio ambiente urbano”, diz. Segundo ela, a população resistiu à idéia num primeiro momento. “Aos poucos compreenderam a idéia e a adesão é praticamente unânime”, afirma. A prefeitura lançou uma cartilha de educação patrimonial, desenvolveu coleta seletiva intensa, dedicou grande cuidado ao saneamento e implantou a educação ambiental nas escolas.

Brasil tem tudo para ser líder
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O italiano Piero Sardo esteve no Brasil em novembro, em evento promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. “Todos, não só a elite, têm direito ao prazer à mesa, a não comer imundícies. A idéia é criar a Grande Internacional da Comida. O Brasil pode ser líder de um movimento não só sul-americano, mas americano”, acredita.

Por que o Brasil pode liderar o slow food nas Américas?
A partir de 2008 o encontro do Terra Madre será regional: África, Ásia etc. Na América do Sul deverá ser aqui, pois há atenção para o tema. Há um governo com estratégia forte para agricultura familiar, com as contradições que sabemos, como os transgênicos, mas não há outro país com essa atenção.

Como é em outros países?
Nos EUA, o movimento é espontâneo, privado, o governo não está nem aí. No México há, mas não com essa dimensão. Na Itália, há uma dificuldade muito grande, estão convictos de que a economia familiar está superada. Mesmo ativistas pensam isso, e no governo de esquerda.

Nossa terra ajuda?
Nossos vinhos, por exemplo, estão muito padronizados. Fazemos como os americanos fazem, vinhos compreensíveis e com sensações fortes. Aqui o terreno é extraordinário. E é mais fácil aprender a fazer os bons vinhos do que recuperar a terra. Mas deve-se manter a idéia de vinho íntegro, natural, respeitando o território.

O que o senhor provou por aqui?
Fiquei numa casa de camponeses perto de Pirenópolis e comi muito bem. Frango com ervas. As matérias-primas são muito boas. E nem falamos da variedade de frutas. Na carne, é preciso fazer alguma coisa para melhorar.

Qual a responsabilidade do consumidor na manutenção dos alimentos tradicionais?
Inútil dizer “a culpa é sua”. É preciso educar. No momento em que a família não explica mais a origem dos alimentos, não vai mais ao campo, permite que o fast food invada o espaço. Ela deve fazer escola, fazer o slow food, sem culpar ninguém.