Saúde

Desconhecido e devastador

O acidente vascular cerebral, ou derrame, é uma das doenças que mais matam e incapacitam pessoas no Brasil. Mas na população, e até mesmo na classe médica, ainda existe despreparo para lidar com sua ocorrência

regina de grammont

Gabriela teve um AVC aos 21 anos. Hoje, aos 23, ainda faz fisioterapia

Um derrame sofrido durante cirurgia para retirada de tumor benigno no cérebro adiou os planos da paulistana Gabriela Amorim de Aguiar. Depois de 20 dias numa UTI, entre a vida e a morte, foi para o quarto ainda com todo o lado direito paralisado e sem emitir nenhum som. Ficou internada por três meses e só depois de outros quatro, quando ainda não andava, conseguiu vaga para começar seu tratamento de reabilitação no Lar Escola São Francisco, na capital paulista. Com o acompanhamento, que inclui fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e outras terapias específicas, ela conseguiu recuperar a fala e boa parte dos movimentos.

Isso foi há pouco mais de dois anos. Hoje, aos 23, Gabriela reaprendeu a caminhar e, com esforço, consegue abrir e fechar a porta com a mão direita. Os especialistas ainda não sabem quando ela terá condições de retomar os estudos interrompidos no 3º ano de Farmácia na Universidade de São Paulo. A reabilitação tem auxílio da terapia por contensão induzida (TCI), ainda pouco utilizada no país. Também conhecida como terapia por restrição (TR), consiste em um programa de treinamento intensivo no qual uma luva é usada para restringir os movimentos do membro sadio. As sessões são diárias, com duração de três horas, ao longo de duas semanas.

O fisioterapeuta Rodrigo Deamo Assis, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo e um dos pioneiros da TCI no Brasil, explica que o objetivo da luva é lembrar o paciente de que ele deve utilizar ao máximo o lado afetado pelo AVC. A terapia está fundamentada na teoria segundo a qual o uso de determinadas partes do corpo faz com que se desenvolvam, enquanto o desuso leva à atrofia. “Entre outros benefícios, essa extensa prática repetitiva aumenta a função e a agilidade do membro afetado e reduz a espasticidade, que é o grau de tensão muscular que dificulta ou impossibilita o movimento dos membros”, diz Assis.

Nos Estados Unidos e no Canadá, onde a técnica é mais usada, estudos mostram que todos os pacientes avaliados foram beneficiados, independentemente do tempo da lesão cerebral causada pelo AVC ou por outros problemas. Só que nem todos têm acesso ao novo tratamento, considerado caro porque exige a dedicação exclusiva de um fisioterapeuta em tempo integral, durante duas semanas. As sessões de fisioterapia convencional na maioria dos casos são limitadas a meia hora por semana, inclusive para pessoas que viajam durante horas, atravessando cidades, para chegar a um centro de reabilitação.

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O fisioterapeuta Rodrigo em trabalho de terapia restritiva

Samu, 192

Quem sofre um derrame no Brasil encontra todo tipo de dificuldade. E não são poucas as pessoas nessa situação. A doença é a principal causa de morte de adultos no país. São 100 mil óbitos todo ano. Sem contar os milhares que sobrevivem com sequelas, em muitos casos graves, que os impedem de continuar trabalhando, andando, comendo ou mesmo tomando banho sem ajuda. Estimativas dão conta de que, de cada 1.000 pessoas que sofrem um derrame, 300 morrem nos primeiros dias e, das 700 sobreviventes, apenas 100 se recuperam integralmente. A maioria, 600, fica com sequelas motoras permanentes.

Segundo especialistas, o mal ainda é negligenciado pelas políticas de saúde pública. Tanto é que, embora quase todo mundo tenha entre seu círculo de pessoas conhecidas pelo menos uma vítima do derrame, pouco se fala, se aprende ou se ensina sobre o assunto. “Faltam programas para educar as pessoas a combater os fatores de risco, a reconhecer os sinais e a buscar ajuda imediatamente, minimizando assim a gravidade das sequelas e até mesmo salvando a vida”, aponta a neurologista Sheila Ouriques Martins, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.

No ano passado, uma pesquisa do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP) concluiu que 90% das pessoas entrevistadas em quatro grandes cidades brasileiras não têm informação alguma sobre AVC. Para 22% delas, os sintomas mais comuns da doença, como dificuldade para falar, andar ou enxergar e fraqueza ou dormência em um lado do corpo, sinalizam infarto, epilepsia ou câncer; e apenas 35% sabem que 192 é o número do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que deve ser chamado sem demora para levar uma pessoa que está tendo um derrame a um centro de emergência capacitado para atendê-la.

Para piorar, nem todos os profissionais de saúde estão preparados para diagnosticar adequadamente a ocorrência de um derrame. O neurologista Lucas Vilas Boas Magalhães, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que os médicos sem especialização em neurologia – área da medicina que diagnostica e trata doenças do cérebro, medula espinhal e nervos – geralmente têm pouca intimidade com os quadros neurológicos que surgem nas emergências, subdiagnosticando ou diagnosticando incorretamente.

“Fizemos um estudo que mostrou que a entrevista médica e o exame físico feitos pelos não neurologistas foram considerados inadequados para o diagnóstico dos casos em que havia suspeita de doença neurológica”, explica Magalhães. “As chances da pessoa que tem um AVC dependem de um melhor conhecimento da doença pelo público leigo, em geral, e pelos médicos e demais profissionais de saúde, em particular. E isso implica, inclusive, a necessidade de melhorias na graduação médica.”

Outro grave problema é a falta de tratamento na fase aguda do derrame, principalmente do tipo isquêmico, que corresponde a 80% das ocorrências. Nesse caso, um coágulo (trombo) interrompe o fluxo sanguíneo no cérebro, matando neurônios e deixando tantos outros sem atividade elétrica. Para remover o trombo e restabelecer a passagem do sangue, os médicos usam cateteres, que o retiram mecanicamente, ou um fármaco trombolítico chamado alteplase, que o dissolve. Os outros 20% de casos de AVC são do tipo hemorrágico, caracterizado por uma ruptura do vaso sanguíneo. Forma-se então um hematoma seguido de inflamação. O tratamento consiste no controle da pressão arterial, para evitar sua expansão, por meio de medicamentos. Alguns casos podem ser tratados cirurgicamente, mas, na maioria das vezes, a área afetada é de difícil acesso.

Grande parte das vítimas não tem acesso ao único medicamento aprovado para essa finalidade. Estudos mostram que, de cada quatro pessoas medicadas com o alteplase até três horas após a ocorrência do AVC, uma sobrevive e suas chances de recuperação completa são três vezes maiores, sem consequências como perda de memória e incapacidade de falar e se locomover. “O medicamento é muito utilizado em hospitais privados, mas só é distribuído em alguns centros públicos, como hospitais universitários, que dispõem de outros recursos além do SUS”, diz Sheila Martins, coordenadora da Rede Nacional de Atendimento ao Acidente Vascular Cerebral.

A organização não governamental é formada por especialistas que desenvolvem ações preventivas e de melhoria da assistência ao paciente em parceria com secretarias de Saúde em todo o país. Em setembro passado, o Ministério da Saúde interrompeu um projeto de atenção ao derrame que previa diversas medidas, entre elas a distribuição, pelo SUS, do alteplase. O ministério afirma que, no momento, não está em pauta a discussão sobre a inclusão de novos medicamentos na lista de distribuição gratuita e que o combate ao derrame é contemplado através de outros planos já existentes, como a Política Nacional de Atenção Integral às Urgências.

Células-tronco

Professora do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rosália Mendez Otero é especialista em neurociência e estuda o uso de células-tronco para tratar problemas neurológicos. Ela explica que o cérebro é totalmente dependente de sangue para sobreviver. “Ao contrário das células de outros tecidos, os neurônios não têm estoques de glicose e a retiram diretamente da circulação sanguínea. Se o sangue não chegar, como acontece no AVC, eles morrem em poucos minutos e não há drogas capazes de ressuscitá-los”, diz a neurocientista. “Daí não haver drogas eficazes e termos pouco a fazer.”

Rosália coordena uma pesquisa pioneira em todo o mundo, que visa à utilização de células-tronco extraídas da medula óssea do próprio paciente para substituir as células cerebrais mortas pelo derrame. Por enquanto, está sendo testada a segurança dessas células. Em 2006, foram incluídos sete pacientes num estudo conjunto do Hospital Pró-Cardíaco e da UFRJ. No entanto, um deles apresentou AVC isquêmico e embolia durante os exames preliminares e não recebeu o transplante. Dos seis que receberam, nenhum teve piora e alterações no sangue nos seis meses seguintes e todos obtiveram melhora neurológica.

Experiência semelhante, com resultado também semelhante, foi conduzida na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre e no Hospital Mãe de Deus, também na capital gaúcha, com 20 pacientes. O próximo passo será avaliar a eficácia, ou seja, se essas células-tronco realmente são capazes de se transformar em neurônios e, assim, reduzir as sequelas deixadas por essa doença tão devastadora quanto ignorada.

Identifique e ligue 192
Aprenda a identificar os sinais do derrame. Tempo perdido é cérebro perdido.

Fraqueza ou formigamento na face, no braço ou na perna, especialmente em um lado do corpo.

Confusão, alteração da fala ou compreensão.

Alteração na visão (em um ou ambos os olhos).

Alteração do equilíbrio, da coordenação, no andar, tontura.

Dor de cabeça súbita, intensa, sem causa aparente.

Qualquer um desses sintomas pode sinalizar um derrame. Se você ou alguém conhecido tiver um desses sinais, não espere que melhore. Peça socorro.

Ligue imediatamente para o número 192 (Samu) ou para o serviço de ambulância de emergência da sua cidade.

Importante: observar e anotar a hora em que os primeiros sintomas apareceram. Essa informação é essencial para os médicos.

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