meio Ambiente

Descaso na Serra

Desde os anos 30, o estado de São Paulo vê, omisso, a ocupação desordenada da Mata Atlântica que cobre a Serra do Mar, entre o ABC e o litoral. Agora, ocupantes e ocupada têm futuro ameaçado

Paulo Pepe

Cota 200 visto pela Imigrantes: agressão à mata

Juvenal Balcino Pina, 55 anos, desempregado, chegou a Cubatão, na Baixada Santista (SP), em 1974. Ele saiu de Sergipe para trabalhar na Companhia Siderúrgica Paulista. No final dos anos 70 mudou-se para o bairro Cota 400, na Serra do Mar, onde vive até hoje. O vizinho Lúcio Sodré, 47 anos, funcionário do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), nasceu ali. Seu pai foi para lá nos anos 40 para trabalhar nas obras da Via Anchieta, que liga São Paulo ao litoral. Marilza Pires Leal, 38 anos, casou-se, teve filhos e há duas décadas mora no local – onde não há posto de saúde, escola, açougue, mercado, farmácia, padaria nem telefone. A infra-estrutura e as facilidades da cidade grande não podem chegar ali por restrições de leis ambientais, mas as desvantagens – como assaltos e tráfico de drogas – já chegaram.

Esses brasileiros são um pequeno retrato das 1.700 famílias que moram nos bairros erguidos na encosta da Serra do Mar, às margens da Via Anchieta, a 400 e 500 metros de altitude – números que dão nome aos bairros. Outras 16.300 vivem em condições semelhantes, mais abaixo, nos bairros Cota 95, 100 e 200. Em 1994 uma lei estadual retirou dessas três localidades mais baixas o status de área de preservação ambiental e transferiu sua jurisdição para a Prefeitura de Cubatão. “Só que a transferência não saiu do papel. O estado ainda não fez o desmembramento do terreno nem passou a escritura”, diz o secretário jurídico da prefeitura, Arthur Albino dos Reis. Enquanto isso, os moradores de lá, como os vizinhos mais do alto, continuam ao deus-dará. Terra de ninguém? “Não, do Estado”, afirma o secretário, categórico.

Morador do Cota 95 e administrador regional de todos aqueles bairros da encosta, Amaury José Leme diz que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente não fiscaliza como deveria, não impede o avanço das invasões e não permite que nada seja feito. “No máximo, obras de emergência”, afirma. Mesmo nessa situação de abandono, nenhum dos moradores ouvidos pela Revista do Brasil deseja deixar sua casa.

“Querem mandar a gente morar em ‘pombal’ em Cubatão. Mas não podemos sair e deixar para trás a casa construída com tanto sacrifício”, diz Assis de Oliveira, 44 anos, neto de um trabalhador da construção. Ele se refere a um projeto de realocação dos moradores de áreas de alto risco, inclusive dos Cota, para prédios que deverão ser construídos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo do estado.

Virem-se

A ocupação cresce a cada dia – é bem visível à noite, para quem vem de Cubatão ou da Praia Grande rumo à Imigrantes. E é fruto do descaso de empreiteiras e do poder público. No final da década de 1930 tiveram início as obras da Via Anchieta, então orgulho da engenharia nacional. Como a tecnologia da época exigia muita mão-de-obra, grandes contingentes de trabalhadores se deslocaram do interior e de outros estados. “Para acomodá-los, o DER construiu vários alojamentos ao longo da serra”, conta o jornalista e historiador Ademir Médice.

Concluída a obra, muitos moradores foram transferidos para um alojamento na região central de São Bernardo e o DER parou de manter as habitações da mata. As autoridades fizeram várias tentativas para remover as famílias, mas nenhuma proposta agradou. “Como elas não queriam sair, disseram: ‘Então vocês se virem’!”, conta Médice. “O governo foi fechando os olhos para a situação.”

Hoje há ocupações ilegais em todas as áreas de mananciais, colocando em risco o abastecimento de água para toda a Baixada Santista. Os invasores vivem mal, com a falta de segurança, têm dificuldade de acesso ao trabalho e foram abandonados à própria sorte. A origem do problema, entretanto, não está somente na construção das estradas.

O ambientalista Mário Mantovani, diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, lembra que as obras do pólo industrial de Cubatão e dos grandes condomínios de luxo do Guarujá também exigiram farta mão-de-obra e levaram à expansão da área ocupada. “O problema vem de décadas. Mas agora ganha dimensões dramáticas e nem sequer aparece no plano de governo dos candidatos ao governo paulista”, critica Mantovani.

Para ele, moradores têm sua cota de responsabilidade. Usufruem da água gratuita que desce das montanhas, da energia elétrica de graça obtida com “gatos” e, em alguns casos, do material de construção doado por políticos que montam ali currais eleitorais. “É natural que numa situação assim ninguém queira se mudar para os apartamentos populares, onde além do pouco espaço disponível terão de pagar as próprias contas”, observa.

Paulo Pepeadriane
Adriane: políticos distribuem material de construção em época de eleição

Catástrofe anunciada

A seqüência de cortes, aterros, fossas de infiltração, depósitos de lixo e outros resíduos urbanos, além de tantas outras intervenções, facilitam deslizamentos de terra numa área naturalmente suscetível a desmoronamentos. “É uma catástrofe anunciada”, diz o geólogo Alvaro Rodrigues dos Santos, ex-diretor de planejamento e gestão do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo e autor de A Grande Barreira da Serra do Mar (Ed. O Nome da Rosa, 2004), entre outros livros. “São tragédias gratuitas, que seriam evitadas se a administração pública e os interesses privados dessem ouvidos aos diagnósticos e orientações técnicas dos especialistas em geologia.”

Se o prejuízo social é um lado dessa moeda chamada descaso, o outro é o risco ambiental: o processo de destruição de parte significativa do que sobrou de um dos mais importantes ecossistemas do planeta. Da área original, com mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados, distribuídos ao longo de praticamente toda a costa brasileira, restam hoje apenas 7,3%. É uma das áreas mais ameaçadas em todo o mundo.

Em Brasília, devido à resistência de deputados ligados aos setores madeireiro e agrícola, o Projeto de Lei da Mata Atlântica é sucessivamente retirado da pauta das sessões da Câmara dos Deputados, sem ser votado. O texto, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa da Mata Atlântica, caminha para ficar mais um ano parado. O projeto, apresentado em 1992 pelo então deputado federal Fábio Feldmann, já foi aprovado na Câmara e no Senado e agora depende da aprovação das emendas.

A bióloga Waverli Neuberger, coordenadora do curso de tecnologia ambiental da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo, observa que a área concentra nascentes dos rios que abastecem as cidades, tem grande influência sobre a qualidade do clima, dada a relação direta entre suas árvores e a distribuição de chuvas, e conta com fauna e flora de rara riqueza no planeta. “Por ser uma floresta muito mais velha que a Amazônica, teve tempo para desenvolver maior variedade de espécies vegetais e animais. Para se ter uma idéia, 90% dos anfíbios e 80% dos primatas são endêmicos, ou seja, só existem nela. Se a mata acabar, essas espécies somem do mapa”, diz.

À frente de programas de educação ambiental no bairro Cota 400, em parceria com a Ecovias, concessionária privada das rodovias Anchieta e Imigrantes, a bióloga conhece bem a região. E conta que, pela falta de consciência ecológica e por questões de sobrevivência, muitos desses moradores retiram bromélias, palmito e samambaias para vender; cortam madeiras para construir e cercar as casas e desmatam para cultivar hortas; caçam animais silvestres, têm de matar as aranhas e morcegos que se aproximam; e suas criações domésticas espalham doenças para o resto da fauna.

Segundo a SOS Mata Atlântica, o bioma abriga quase 50% de todas as espécies existentes no planeta, além de comunidades indígenas, caiçaras, ribeirinhas e quilombolas, que constituem a genuína identidade cultural brasileira. Segundo a organização ambiental Conservation International, a Mata está entre as cinco primeiras de uma lista de 25 áreas que, se forem preservadas, manterão vivas 70% de todas as plantas do mundo.

A engenheira florestal Adriane Tempest, chefe de um núcleo do Parque Estadual da Serra do Mar que compreende 139 mil hectares entre os municípios de Bertioga e Mongaguá (Itutinga-Pilões), conta com cinco vigilantes desarmados para proteger as matas e indiciar quem transgride as leis ambientais. Ela ainda convive com as mazelas de políticos que distribuem material de construção em troca de votos. “Sou ‘aconselhada’ por muitos deles a não mexer com essas pessoas. E, se a gente derruba o que foi construído e aciona o Ministério Público, ainda sofre retaliação. Já recebi ameaças de morte e ando com colete à prova de bala.”

cota

Outras ameaças à Mata Atlântica
Se em São Paulo é a ocupação desordenada que ameaça um trecho da Mata Atlântica, no Espírito Santo é a expansão agropecuária. “Quando as terras se tornam inférteis, agricultores e pecuaristas buscam solos não exauridos em locais com mata nativa”, diz o biólogo Sérgio Lucena Mendes, diretor do Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica, em Vitória.

No sul da Bahia, onde está a maior área de remanescentes da floresta na Região Nordeste, a expansão desordenada das atividades agrícolas, assim como a urbana, também constitui a maior ameaça – agravada pelo extrativismo madeireiro, pelo turismo predatório e, ultimamente, pela criação de camarões. De acordo com o secretário-executivo do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais do Sul da Bahia, Marcelo Araújo, a questão agrária e a falta de planejamento na localização dos assentamentos rurais são outros fatores que levam ao desmatamento.

No restante do Nordeste, o bioma, que se resume a fragmentos de floresta em poucos estados, enfrenta três grandes problemas: a falta de mapeamento adequado, de fiscalização e os assentamentos irresponsáveis – como os realizados nos últimos 20 anos em área do Complexo Florestal de Murici, na Zona da Mata alagoana, que ocasionaram o desmatamento e a extinção do correspondente a 10% das espécies de aves do hemisfério sul.