cidadania

Deficiência em ação

Regras brasileiras sobre direitos dos deficientes são elogiadas internacionalmente, mas quem as cumpre é exceção. As conquistas vêm da persistência dessas pessoas e sua paixão pela vida

Mauricio Morais

O arquiteto Ailton ficou cego por causa de uma doença degenerativa, mas ainda presta pequenos serviços em sua área

O assistente administrativo Marcos Rossi habituou-se, nos últimos 24 anos, a desconsiderar o impossível. Ele nasceu com síndrome de Hanhart, deficiência rara que impede o desenvolvimento de um ou mais membros, e diz ter compensado a ausência dos antebraços e das pernas com “persistência no sangue”. Casado e com um filho de 2 anos, é formado em Direito e trabalha no Unibanco, em São Paulo. Apaixonado por música, integra a bateria da escola de samba paulistana X-9 e começa a ganhar fama como vocalista da banda de rock 3 e ½. “Há quem diga que eu sou o ‘meio’ do nome do grupo, mas a piada é com a estatura do baterista”, brinca. Sua trajetória ilustra a de milhões de brasileiros com deficiência que não dão mole para o desânimo, os preconceitos e os limites e provam, no dia-a-dia, que a paixão pela vida move barreiras.

Uma delas – a falta de oportunidades no trabalho – começou a ser superada timidamente com a Lei de Cotas, que prevê a obrigatoriedade do contingenciamento de vagas no mercado de trabalho Empresas a partir de 100 funcionários têm de reservar de2% a 5% de suas contratações para pessoas com deficiência. A regra abriu uma porta para Sidney Cunha, 29 anos, que até os 16 trabalhava na lavoura em Barra do Corda, no interior do Maranhão. Nessa época foi diagnosticada a lesão medular que causou a atrofia de seus braços e o levou a mudar-se para São Paulo em busca de chances maiores de trabalho. No mês passado, enfim, conseguiu registro em carteira como auxiliar de serviços gerais do Fisk, escola de idiomas na capital. “Não sei descrever o que senti quando confirmaram a vaga.”

De acordo com Sergio Sá da Silva, da Federação das Fraternidades Cristãs de Doentes e Deficientes do Brasil (FCD), a Lei de Cotas é um “mal necessário”. Para ele, a regra tem impacto reduzido nas pequenas cidades, onde poucas empresas alcançam o mínimo de 100 trabalhadores. Além disso, permite ao patrão escolher os que têm deficiência leve no momento da contratação, o que coloca aqueles com problemas mais severos no fim da fila. “A lei veio de cima para baixo e tem boas intenções. Só que precisamos aperfeiçoá-la”, cobra Adilson Ventura, 66, fundador da União Brasileira de Cegos.

Segundo o advogado Delano Coimbra, 56, assessor jurídico da Federação do Comércio de São Paulo, a Lei de Cotas põe o empresariado contra a parede. “Ninguém quer sair com a imagem arranhada”, afirma, ao citar experiências positivas. A Serasa, por meio de seu programa de empregabilidade para deficientes, mantém 96 funcionários de um total de 2.300. O coordenador do programa é João Ribas, 51 anos, doutor em Ciências Sociais, ele mesmo um cadeirante. O Ministério Público do Trabalho quer disseminar essas práticas. Termos de ajustamento de conduta firmados no âmbito da Justiça dão às empresas prazo (até um ano) para adaptar instalações e processos a fim de receber pessoas com deficiência. Quem não cumpre está sujeito a multa e ação por dano moral coletivo. “Não se trata de caridade. Quem contrata deve exigir resultados, mas também dar condições para a produtividade aparecer”, ressalta a procuradora Adélia Domingues.

O Ministério do Trabalho orienta as delegacias regionais a articular Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Combate à Discriminação, com a finalidade de estimular empresas a colocar a inclusão na pauta de suas políticas de RH. Os sindicatos também dedicam atenção ao tema. Segundo o Dieese, entre as convenções e acordos coletivos de 204 categorias profissionais firmados em 2004 e 2005, 35% já têm cláusulas sobre os direitos de trabalhadores com deficiência.

Protagonistas

priscilaPriscila Branca Neves, 25 anos, é cega por conta de glaucoma congênito. Formada em Psicologia, no ano passado ela concluiu a pós-graduação em Educação Inclusiva. “Sem livros em braile, minha mãe atravessava as madrugadas comigo lendo os textos”, conta. Um de seus principais obstáculos é a ausência de material adequado. A surdez profunda de Camila Havens, 24 anos, também não a fez esmorecer. Ela se formou em Ciências da Computação há três anos. “Encontrei pessoas que apostaram em mim e outras que não me ajudaram. Inclusive professores, que riam de mim em sala de aula”, lembra. Priscila é assistente do departamento de cidadania empresarial da Serasa e Camila, analista de certificação digital, cargo nobre na companhia.

Suas trajetórias, porém, são pouco comuns. Sete em cada 10 brasileiros com deficiência se consideram alfabetizados, mas, entre os maiores de 15 anos, metade só freqüentou a escola por até três perío­dos letivos. Para a coordenadora nacional do Programa Deficiência e Competência do Senac, Sandra Brandão, as estatísticas refletem a ausência de qualificação já a partir da escola. Para contornar esse déficit, quem pode recorre a cursos extracurriculares.

Oferecidos por centros de capacitação profissional e entidades de apoio, esses cursos ensinam de ofícios a conduta em entrevista. O comerciário Ubirajara de Oliveira, 55 anos, já participou de 12 deles. Amputado da perna esquerda por conta do diabetes, ele não perde o bom humor na sua busca por colocação e culpa a data de nascimento pelo seu problema: “Estou convicto de que é a idade que me atrapalha”. O estudante Roney de Almeida, 19, é outro que investe na qualificação. Com baixa visão e em busca do primeiro emprego, há um mês ele freqüenta um curso de computação do Senac.

“Estamos num momento de mudança de padrão cultural”, comemora Ana Maria Caetano Barbosa, coordenadora da Rede de Solidariedade, Apoio, Comunicação e Informação, a Rede Saci, projeto da Universidade de São Paulo. Para ela, a inclusão pelo trabalho torna as pessoas com deficiência “donas de sua vida”, colocando ponto final num ciclo histórico de dependência. No caso do arquiteto Ailton Cataldi, 43, cego devido à síndrome de Stargardt, manter-se trabalhando representa proteger sua saúde emocional. Antes do processo de degeneração da retina se completar, Cataldi chegou a ser gerente de uma construtora. Hoje, ainda presta pequenos serviços no setor para espantar a depressão enquanto espera uma chance de volta ao mercado.

Mauricio Moraiscamila
Camila superou o preconceito até de professores por causa de sua surdez, formou-se em Ciências da Computação e trabalha na área

Referências externas também acabam, de alguma forma, incentivando essas pessoas a assumir “o protagonismo de sua vida”, como dizem os especialistas. Personagens de novelas, como a criança Clara (Joana Morcazel), com síndrome de Down, em Páginas da Vida, ou o cego Jatobá (Marcos Frota), de América, colocaram o tema na sala de estar. Na vida real, atletas como Ádria Santos, Clodoaldo Silva, Fabiana Sugimori e Antônio Delfino – que ajudaram a conquistar 33 medalhas para o Brasil nas Paraolimpíadas de 2004, em Atenas – também influenciam positivamente.

Além disso, o apoio familiar faz diferença. Para a psicóloga Marta Mendonça, coordenadora do Programa Trabalho Eficiente da Associação de Apoio à Criança Deficiente (AACD), o apoio de pais e irmãos recupera a auto-estima e a confiança de quem se acha carta fora do baralho, mas alerta para os excessos: ”Há casos de superproteção que infantilizam as pessoas com defici­­ên­cia. Isso aumenta a insegurança e complica o convívio num espaço de produção”, ressalta.

O fator família foi decisivo na trajetória de Thiago de Souza, 26, técnico administrativo da Serasa. “Existe preconceito. Isso nos obriga a nos empenhar mais que uma pessoa considerada normal”, afirma. Portador de má-formação congênita no braço e na perna direitos, ele foi estimulado pelos parentes desde cedo a trabalhar e ser independente. Às vésperas de conquistar o diploma de administrador de empresas, Souza mantém o pique: “Quero ter um futuro tranqüilo, estável”.

Essa energia poderia render ainda melhores resultados se canalizada também para esforços coletivos. “Seria importante que a participação das pessoas com deficiência aumentasse junto aos movimentos da sociedade civil. Conheceriam melhor as leis e poderiam fiscalizar aqueles que passam por cima delas”, completa o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade), Alexandre Baroni, que ficou tetraplégico em conseqüência de um acidente de trânsito.

A ocupação dos espaços institucionais para incluir as demandas dos deficientes cada vez mais entre as discussões dos assuntos nacionais é uma forma de romper a visão paternalista das políticas públicas e a apatia entre as pessoas com deficiência. Essa é a opinião de Santos Fagundes, coordenador do Movimento Nacional de Defesa das Pessoas com Deficiência (MDPD), com representação em 15 estados. Ele, que perdeu a visão aos 9 anos devido à degeneração da retina, foi obrigado a abandonar a escola, na época, e só conseguiu voltar a estudar aos 26. Hoje cursa Ciências Sociais, no Rio Grande do Sul, e vê na inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho um passaporte para a cidadania. “Precisamos mostrar que estamos aptos a ocupar nosso espaço. Temos de superar o hábito de apenas receber o que nos é concedido. Queremos ser os agentes ativos de nossas conquistas na sociedade.”