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De olhos bem abertos

A aviação brasileira e alguns aeroportos do país estão entre os mais avançados do mundo. Mas, se os profissionais que cuidam do tráfego aéreo não trabalham em condições adequadas e sua condição humana é desrespeitada, o céu que nos proteja

gerardo lazzari

Com mais de 30 anos de experiência profissional, José Manfredo não se animou quando soube que um de seus filhos pretende seguir seus passos quando ingressar no mundo do trabalho, apesar de ter orgulho do que faz. José Manfredo é controlador de vôo – profissão que pouca gente se dava conta de que existia e, de repente, se tornou uma das mais comentadas do país. “Houve uma época em que eu ganhava o equivalente a 2,5 salários mínimos. Não tinha dinheiro para ir trabalhar”, lembra o profissional, que recebe salário de aproximadamente 2.800 reais líquidos, além de um auxílio-alimentação de 140 reais. “Se eu fosse ganhar metade do que recebe um controlador nos Estados Unidos, seriam uns 10 mil reais”, calcula.

A categoria dos controladores de vôo ganhou fama após as confusões para embarque e desembarque às vésperas de feriados virarem notícia, lembrando as reportagens de apertos em rodoviárias abarrotadas que costumavam ser feitas nessas épocas. Para Manfredo, a fama é injusta, pois logo de início eles apareceram na história como vilões. “Não existe operação tartaruga, greve branca, nada disso. É triste você pegar um jornal ou revista e ver gente que não entende nada de aviação achar que estamos atrapalhando a vida das pessoas”, critica. “A nossa preocupação é com a segurança. Não podemos errar.”

Segundo ele, os controladores operam com sobrecarga de trabalho há muito tempo. E nem é de hoje que parte dos vôos apresenta algum atraso. Mas por que a situação teria explodido só agora? “A verdade é que as autoridades não estavam nem aí. Estávamos trabalhando acima da capacidade, controlando mais aviões do que deveríamos, e de repente um avião caiu”, afirma, referindo-se ao acidente com o Boeing da Gol e o Legacy, no final de setembro, no qual morreram 154 pessoas.

O ministro da Defesa, Waldir Pires, acredita em uma normalização da situação. “Isso, aliás, já vem ocorrendo. Espero que nos feriados de Natal e Ano-Novo a situação esteja praticamente normalizada. É bom lembrar que atrasos em horários de vôos ocorrem sempre, em todo o mundo. A normalização completa da situação, no Brasil, deve se dar já nos primeiros meses do próximo ano”, estima.

O sistema tem hoje 2.706 controladores, dos quais 2.112 militares (a maioria sargentos), 499 civis (contratados pela Infraero, que administra os 67 aeroportos do país) e 95 servidores federais, que são subordinados ao Comando da Aeronáutica.

Para entender melhor a situação, é preciso antes de mais nada ter em conta que se trata de um ambiente militarizado, o que provoca zonas de atrito no governo. Segundo a lei, cabe ao Comando da Aeronáutica formular e conduzir a política aeronáutica nacional, civil e militar. “Depois da Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento da aviação, houve a necessidade de implementar o controle de vôo em aeroportos civis”, observa o diretor-técnico do Sindicato Nacional dos Trabalhadores na Proteção ao Vôo, Ernandes Pereira da Silva, um ex-ourives que trabalhou durante 23 anos no controle aéreo do Rio de Janeiro.

A Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero), por exemplo, foi criada ainda durante o regime militar, pela Lei nº 5.862, de dezembro de 1972. No artigo 2º, fica claro quem é quem: “A Infraero terá por finalidade implantar, administrar, operar e explorar industrial e comercialmente a infra-estrutura aeroportuária que lhe for atribuída pelo Ministério da Aeronáutica”.

Situação indefinida

Para o sindicato que representa os controladores civis – fundado em 1986 e sem filiação a central, apenas a uma federação internacional –, a crise pode ser um ponto de partida para redefinir a situação dos trabalhadores. A reivindicação básica é de que os controladores sejam considerados carreira típica do Estado. “Isso precede qualquer regulamentação”, diz o presidente da entidade, Jorge Botelho, que já foi bancário e funcionário de ótica antes de entrar no setor, em 1974. A profissão não é regulamentada, ao contrário de aeronautas (pessoal de bordo, cuja lei específica é de 1984) e aeroviários (pessoal de terra, com função regulamentada desde 1962). “Agora, o importante é que as coisas se tornaram claras. No momento mais crucial da crise, dizíamos que não dava para resolver de imediato, que era preciso envolver todo o setor.”

Em tese, essa discussão conjunta começou a ser feita a partir de 17 de novembro, quando foi instalado um grupo de trabalho interministerial para discutir os problemas do setor e apresentar soluções em até 60 dias. Presidido pelo ministro da Defesa, Waldir Pires, o grupo tem ainda representantes dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, da Advocacia-Geral da União, do Comando da Aeronáutica, da Agência Nacional de Aviação Civil, da Infraero, de trabalhadores e empresas aéreas. Em seguida, o Ministério da Defesa abriu concurso público para contratação de 64 controladores – as exigências básicas são nível médio (2º grau) completo e noções de inglês, e o salário é de 3.148,40 reais.

Também foi determinada a convocação emergencial de um grupo de controladores aposentados, além do remanejamento de 18 profissionais para Brasília, onde os gargalos costumam ser maiores. O que não deixa de ser motivo de preocupação para os sindicalistas. “Já estão jogando uma turma nova em Brasília. Depois de serem formados, eles deveriam ir primeiro para torres mais distantes, onde o volume de tráfego é menor”, comenta o diretor-técnico Ernandes Pereira da Silva.

Segundo Waldir Pires, a situação profissional da categoria é um dos temas que serão discutidos. “O grupo de trabalho já se dividiu em dois subgrupos, para aprofundar suas análises e sugerir medidas eficazes voltadas à solução definitiva dos problemas. Um desses subgrupos trata especificamente dos problemas relacionados aos recursos humanos.” Sobre a falta de pessoal, o ministro diz que recebe opiniões muito díspares: “Os números vão, sem exagero, de 80 a 800. Vamos chegar a um diagnóstico correto à medida que as discussões avançarem”.

aeroporto

Caos evitável

As condições de trabalho no setor e a sua influência na segurança dos vôos já foram tema de uma dissertação de mestrado defendida seis anos atrás na Faculdade de Saúde Pública da USP pela pesquisadora Rita de Cássia Seixas Sampaio Araújo. Na ocasião, alguns problemas já eram detectados – um dos pontos de partida da pesquisa, por sinal, foi o acidente fatal com o grupo Mamonas Assassinas, em 1996. Além de diversos problemas de saúde relacionados à atividade, a pesquisadora constatou dificuldades em se realizar qualquer tipo de mudança administrativa e de sistema.

Segundo Rita, seis anos atrás já era possível imaginar os problemas que poderiam acontecer. “Naquele momento, em 2000, foi constatada uma situação crítica para o setor, que já operava em seu limite de capacidade. Assim, podia se prever que se não fossem implementadas mudanças na organização do trabalho, inclusive com adequações salariais e investimentos na melhor formação dos operadores, o caos seria inevitável.”

Se algo mudou, foi para pior. “Nesse contexto crítico, deu-se no Brasil o aumento de mais de 100% do volume de tráfego aéreo nos últimos dez anos, sem que o contingente de controladores e a infra-estrutura técnica fossem adequados na medida das necessidades”, observa a pesquisadora. “O discurso dos trabalhadores na pesquisa evidencia a necessidade de decisão política que possa modificar a situação de risco no controle de tráfego aéreo. Três pontos são ressaltados: regulamentação da profissão, investimentos em formação e aperfeiçoamento e maior agilidade administrativa.

Para sindicalistas e controladores civis, o controle militar representa um problema, já que nem todas as informações estão disponíveis e há dificuldade para conversar. Os trabalhadores contam que a relação entre controladores civis e militares é boa – afinal, estão todos no mesmo barco, ou na mesma torre de controle. “São colegas de sofrimento, até maior, porque também têm a carga militar. A relação é difícil com o oficialato”, relata um deles.

A jornada de trabalho fica, geralmente, em torno de 144 horas mensais. Há um grupo de trabalhadores que no final dos anos 70 ganhou na Justiça o direito de cumprir 120 horas. E há casos em que a jornada ultrapassa 160 horas. Não existe um padrão. No Rio, por exemplo, um controlador trabalha durante seis horas (das 12h30 às 18h30), depois novamente por seis horas (6h30 às 12h30) e, por fim, 12 horas (18h30 às 6h30), com intervalo de 48 horas. Mas há casos de jornadas mais extensas.

José Manfredo – cujo nome é fictício –nunca foi afastado por problemas de saúde, mas já viveu situações tensas e trabalhou, muitas vezes, acima do razoável. “Às vezes, em uma hora e meia eu falo com 60 aviões. Você tem de restringir nível, coordenar velocidades, porque nem todo avião tem a mesma performance, tem de separar esses aviões em altitude e distância. O primordial é manter a separação dos aviões. Você não pode errar”, explica. Também já presenciou algumas cenas dramáticas. “Já vi pessoas que tiveram de ser retiradas praticamente de sua posição, porque parecia que iam explodir”, lembra. “Você já imaginou a agonia de tentar falar com o avião para passar uma instrução e não conseguir, porque a freqüência de transmissão não funciona?”

Para o bem de todos, na terra e no ar, é preciso que tudo funcione com perfeição. Controle é a palavra-chave: a torre de controle, o controle de aproximação e o centro de controle. Todos os envolvidos nessas áreas recebem os planos de vôo e têm de se comunicar continuamente. E ter, antes de tudo, o corpo e a mente sob controle.