cidadania

De flores e palavras

“Era 27 de setembro de 1987, início de tarde, Joaquin jogava bola com os amigos. Ouviu uma explosão, correu para ver. Quando chegou, sua infância e adolescência estavam enterradas”

León Darío Peláez

Herança do bem: cerro dos valores, jardim com vista para Medellín

No pequeno barracão de madeira gesticula, mexe as sobrancelhas, fala com propriedade. Os olhos pequenos informam a mestiçagem de nossos povos, é careca e sorri mais para esconder o nervosismo do que quando está de fato contente. Durante uma hora, ou muito mais, esquiva-se como um boxeador. Toda vez que um cruzado ou um direto vem em sua direção, ginga ou atraca-se com o adversário imaginário. O golpe, no caso, é o passado. O clinch é a religião, à qual ele apela a cada segundo para manter-se de pé. Pudera. Não é fácil pedir que fale sobre algo tão doloroso.

Joaquin Calle Ramirez, Juaco, tem 38 anos e há seis reintegrou-se à sociedade. Viveu década e meia como ladrão, traficante e paramilitar – uma “ascensão” hierárquica que no geral é interrompida antes que se chegue aos degraus mais altos. Como escapou vivo de tantos erros não sabe. Durante os anos pelo “caminho escuro”, teve três filhos com três mulheres diferentes – o quarto nasceu depois da desmobilização.

Juaco fazia suas batalhas no mesmo local em que hoje trabalha. Na época, eram montes e montes de lixo em um terreno baldio abandonado pela prefeitura que servia de trincheira para os combates entre grupos armados. No baixo escalão, a batalha não se dava por ideologia.

Medellín é o epicentro do terremoto que ao longo dos anos 1990 matou 35 mil pessoas em toda a Colômbia. A cidade formou aos montes mão de obra para o combate. No caso de Juaco e de seus amigos, uma tragédia em comum catalisou um processo que ocorreria “naturalmente” para alguns deles. Era 27 de setembro de 1987, início de tarde, Joaquin jogava bola com os amigos. Ouviu uma explosão, correu para ver.

Quando chegou, sua infância e adolescência estavam enterradas: era o fim dos filmes de Bruce Lee com o pai, da escola, dos livros. O deslizamento de terra, de investigações inconclusas até hoje, levou a vida dos pais de Juaco, de dois irmãos e de outras 500 pessoas.

“Nós, como órfãos e vítimas dessa tragédia, víamos que estávamos sozinhos e o Estado não nos amparou. O mais fácil era pegar em armas porque era a cultura em que a gente vivia”, diz. Aos 15 anos já estava em Bella Vista, uma casa de detenção. Ele sabe que a tragédia não é justificativa: serve antes como pretexto para os erros que cometeu na sequência.

Agora, do alto do Morro dos Valores, como eles mesmos nomearam, vê-se uma cidade cor de tijolo. O centro de Medellín, com uma classe média orgulhosa de seu poder de compra, está lá ao fundo ostentando prédios, carros novos que se espremem pelas avenidas, que não acompanharam o ritmo de crescimento, estátuas de Fernando Botero. A geografia da cidade e os problemas sociais fazem lembrar o Rio de Janeiro.

Seus habitantes gostam de ser chamados de paisas. Um paisa é um sujeito que se orgulha de ter de tudo o maior, mesmo quando o maior é o negativo. Levanta cedo, esconde com classe a ressaca e trabalha por 11 ou 12 horas. Na volta para casa, mais aguardente até iniciar um novo dia. Juaco tem orgulho de ser paisa.

Os ex-paramilitares têm pela frente dois desafios: ficar longe do crime e manter o trabalho do Morro dos Valores. A primeira tarefa é complicada: atualmente, cada um recebe em torno de R$ 400 por mês como ajuda de custo da prefeitura por estar inserido em um projeto. Nenhum deles hesita em confessar que pensou – ou ainda pensa – em retornar ao crime, e ganhar esse valor em um dia.

Por isso, manter-se ocupado é manter-se longe de problemas. Juaco acorda às 5 manhã e assim que nasce o sol já está trabalhando. Sai para almoçar, descansa, retorna e fica até 8 da noite. Volta para casa, dorme e começa tudo outra vez. De segunda a segunda.

Se vai, vai rápido

A outra missão, o trabalho da Corporação Campo Santo, como se chamam, conta com interlocutor privilegiado. Encontramos Luz García, ou simplesmente doña Luz, em uma rua de Caicedo conversando com as vizinhas. A cirurgia que fez recentemente nas costas e as recomendações médicas não são capazes de pará-la. Aos 79 anos, ela carrega bobes nos cabelos brancos, rugas na pele escura, usa uma roupa verde encardida e pantufas nos pés.

Líder comunitária há quase 40 anos, doña Luz brinda perdão a quem necessita e pede à prefeitura que dê aos ex-paramilitares a posse definitiva sobre o terreno do morro. O poder de interlocução rendeu-lhe as dezenas de placas que ostenta na parede de sua casa – é uma Gestora de Paz. Ingressamos num recinto bastante simples, com sofás castigados, aquário antigo, dezenas de livros. Da porta aberta vaza uma mistura de cheiros de comida e alguns raios de sol que iluminam o rosto de doña Luz. Seu neto entra e não tarda a ouvir a recomendação: “Mataram alguém pa’ aí em cima. Se vai pa’ casa, vai bem rápido”.

Como os brasileiros, os colombianos comem letras e sílabas com propriedade. Cortar, abreviar, dar novos sentidos são especialidades. Doña Luz sabe aonde quer chegar. “Não sei o que está acontecendo com os garotos, que de novo estão com essa raiva. É preciso pedir a Deus que haja outra vez uma reunião para que eles possam entrar em um diálogo. O bairro esteve muito tranquilo, mas acontece que mataram há mais ou menos três meses um jovem aí abaixo pela questão das drogas.”

A fala de doña Luz sintetiza o momento de Medellín. No caminho da pacificação desde 2003, quando as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) decidiram pela desmobilização, a cidade vê neste ano um crescimento perigoso dos índices de violência. Já ocorreram mais assassinatos que em todo 2008: muitos desmobilizados estão voltando às armas. Dos 60 que iniciaram o projeto da Corporação Campo Santo, ficaram apenas 12 – a maioria voltou ao crime e muitos já perderam a vida. Além disso, segundo estudos da Fundação Ideias para a Paz, sediada em Bogotá, em torno de 20% dos paramilitares jamais respeitaram a ordem de deixar o combate.

É possível que doña Luz tenha de entrar novamente nas negociações, como cansou de fazer nos 1990. Com autoridade, era procurada pelos grupos armados que queriam negociar tréguas. Garantiu pequenos períodos de calmaria. Quando fala disso, fecha os olhos por muito tempo, gesticula com habilidade, sabe trocar o tom de voz a torto e a direito, e por fim decreta: “Não digo que vou condenar. Eles mesmos se condenam, sim ou não? Porque são donos de seus atos, donos de suas expressões. Eu não os condeno, apenas me dói profundamente o que acontece”.

JÚLIO CÉSAR HERRERAquatro prêmios
Hoje, além das flores, os paramilitares reinseridos trabalham com reciclagem e com bonecos de Natal, feitos de arame e iluminados, que já renderam quatro prêmios

Todos perderam

É difícil imaginar um lugar no continente com uma cicatriz tão grande quanto a colombiana. Todos no país perderam um parente no tráfico, no paramilitarismo, nas guerrilhas. E continuam perdendo. No caso da Corporação Campo Santo, o segredo para não perder mais integrantes está em trabalhar muito. E, goste-se ou não, em apegar-se à religião, que de alguma maneira ajuda a esquecer o passado e a segurar-se no presente. É onde entra a segunda parte dos projetos.

Em Villatina, Campo Santo está construída exatamente sobre o local que marcou a tragédia de Juaco e de outras centenas de famílias. Logo na entrada há uma capela que serve para o culto das quartas à noite e para que outros coletivos possam desenvolver seus trabalhos. Entramos, e está sendo realizada uma atividade para pessoas com deficiências físicas ou mentais.

No barranco de grama bem aparada há mais flores, algumas cruzes e lápides simbolizando o triste fato de 1987. Por fim, um mural não concluído e descascando. Juaco mostra com orgulho a trajetória da corporação: a tragédia de Villatina, a orfandade, a entrada para o crime, a desmobilização e o reinício da vida.

Hoje, além das flores, que o Jardim Botânico deve começar a comprar em breve, os paramilitares reinseridos trabalham com reciclagem e, em dezembro, com os bonecos de Natal, feitos de arame e iluminados, que já renderam quatro prêmios.

Os moradores reconhecem o esforço de Juaco e de seus parceiros. Acenam para ele, dão bom-dia, sorriem, gestos que valem mais que mil palavras. Doña Luz, novamente, adverte: “Há muita gente que diz que perdoa, mas está sempre recordando e recordando. Tem o coração enfermo”.