ponto de vista

De crise em crise, nada se fez

Se o crime bárbaro atinge formadores de opinião, a resposta é raivosa e o problema é esquecido rapidamente. Combater a criminalidade requer a intensificação, e não a supressão, de direitos

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Nas últimas duas décadas, mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas com armas de fogo. Jovens, homens, negros e pobres, moradores de favelas e periferias das grandes cidades são as vítimas preferenciais. A chance de um jovem ser vítima de arma de fogo é quase cinco vezes maior que no resto da população. Entre os moradores de alguns bolsões da periferia, o risco é centenas de vezes maior do que o vivido por um cidadão da elite que circula pelas ruas dos bairros incluídos. A morte segue o caminho da desigualdade, mas o medo, como aponta Luiz Eduardo Soares, é absolutamente democrático. Nos ataques que atingiram São Paulo em maio, a violência e o pânico tomaram conta da população. Foram assassinados 40 policiais e guardas municipais e quase 500 civis. O choque desencadeou uma onda de discursos histéricos. “Especialistas” prometeram medidas duras e imediatas. E até agora nada se fez.

Problemas complexos como a criminalidade exigem políticas públicas desenhadas com precisão e eficiência, a partir de diagnósticos profundos e com metas concretas de curto, médio e longo prazo. É básico. Infelizmente, no Brasil, a discussão sobre segurança pública se faz de crise em crise, em momentos de grande comoção social, onde se exigem medidas radicais que caibam em 30 segundos de discurso e prometam resultados em 24 horas. Se o crime bárbaro atinge formadores de opinião, a resposta é raivosa, mas o problema é esquecido rapidamente.

A população brasileira tem a obrigação de negar este discurso, aprofundar o debate sobre segurança pública e exigir planos que ataquem as causas do problema, apontem de onde e como virão seus resultados e sejam duradouros. Exemplos possíveis de ser seguidos existem, no exterior e dentro do país. E nem de longe passam pela intensificação da violência do Estado, imaginando que “assustar” criminosos deixará a sociedade mais segura.

O crime organizado é acima de tudo inteligente. É de uma polícia inteligente que precisamos para acabar com ele. Precisamos investir, sim, na repressão qualificada, que isole e garanta e incomunicabilidade das lideranças de quadrilhas, e não inunde o sistema prisional de pessoas que cometeram crimes banais para servir como massa de manobra de facções criminosas. Melhor tratamento nas prisões não é passar a mão na cabeça do criminoso nem garantir privilégios, mas evitar o desperdício de recursos públicos, a reincidência e que as prisões sejam escolas do crime. Quando o Estado não garante o básico, alguém o faz. E aquele que cometeu um crime menor vai se tornar devedor do grande criminoso e trabalhar para suas causas.

E do lado de fora das grades, de nada adianta intensificar o número de ações policiais dispersas e mal planejadas que geram a prisão de soldados do tráfico, quando existe um exército de outros jovens, prontos a entregar seu “currículo” e ocupar aquele posto. Investir pesadamente em prevenção é privilegiar exatamente públicos e áreas mais afetados pela criminalidade: jovens moradores das periferias. Precisamos de investimentos em infra-estrutura na periferia que criem opções de lazer e convivência, estimulem valores e lideranças. Inverter a lógica e o ciclo da criminalidade para garantir a cultura da paz, não a da violência.
A sociedade não criminosa também tem de repensar suas condutas. Corromper um policial ou um fiscal é formar uma polícia e um Estado corruptos e ineficientes. Sonegar impostos contribui para a falta de recursos para investir nestas políticas. Quando se rouba dinheiro público ou se é conivente com isso, contribui-se para o desmantelamento e o descrédito do Estado. Combater a criminalidade requer racionalidade e não desespero. Intensificação, e não supressão, de direitos. Sejamos radicais, atuemos com toda a urgência, na construção deste caminho.

Denis Mizne é diretor-executivo do Instituto Sou da Paz