história

Dachau, portal do inferno

O lugar escolhido foi uma antiga fábrica de pólvora. As datas demonstram que os nazistas tinham planejado meticulosamente o assalto ao poder, sua concentração absoluta e a destruição das oposições

Michaela Rehler/Reuters

“O trabalho liberta”. Os nazistas deram outro sentido para a frase gravada no portão do Campo de Dachau

Num primeiro momento, tem-se a impressão de estar adentrando um parque. Simpáticas árvores formam uma alameda, por onde circulam jovens, estudantes em grupos, turistas. Mais adiante, nas proximidades de uma espécie de encruzilhada, a impressão se desfaz. “À esquerda, fica a antiga escola de formação dos SS (de Schutzstaffel, ou Tropa de Proteção). À direita, a entrada do campo de concentração de Dachau, o primeiro que o regime nazista estabeleceu, em março de 1933”, aponta a guia. Ou seja, está-se diante do portal do inferno.

Dachau é uma cidade de pouco mais de 40 mil habitantes, perto de Munique, capital da Baviera, sul da Alemanha. No caminho, já perto do ponto final, nota-se uma série de vetustos prédios com janelas altas e ar impositivo: são parte da escola de treinamento dos SS, a temida guarda especial de uniformes pretos que, com a Gestapo (Geheime Staatspolizei, Polícia Secreta), formava um dos principais braços de sustentação do regime nazista.

No final do século 20 o pesquisador francês Pierre Nora introduziu e popularizou o termo lieux de mémoire – lugares de memória, ou memoráveis – para designar os espaços concretos ou simbólicos que servem de referência para a afirmação de um pertencimento coletivo. Dachau simboliza uma dura realidade alemã: ser um dos únicos países do mundo cuja cultura tem como lieux de mémoire espaços tão terríveis quanto um (muitos, na verdade) campo de concentração.

Os nazistas chegaram ao poder em 30 de janeiro de 1933. Um mês depois, o incêndio do Parlamento alemão, em Berlim, foi pretexto para perseguição de opositores. Os comunistas foram acusados, embora hoje se dê como certa a sabotagem dos próprios nazistas. A perseguição se estendeu a socialdemocratas, aristocratas e até aliados. Mais um mês e os nazistas criaram o campo de Dachau, ao lado do centro nervoso de recrutamento e preparação de seus SS.

O portão de ferro do antigo campo de concentração tem os dizeres Arbeit macht frei – “O trabalho liberta”, ou, de modo mais adequado, “O trabalho é o caminho da liberdade”. A frase é insolente: para quem entrasse em Dachau, a liberdade acabava. O ideal da prisão era que o ex-prisioneiro a levasse para sempre gravada na memória como um selo inapagável de temor e terror. O campo é vasto. No enorme prédio central da administração/recepção, um museu retrata a vida local, seus prisioneiros (quem eram, de onde vinham, seu destino). Uma escultura lembra os desatinados sofrimentos dos que por ali passaram ou ficaram. Atrás do prédio está um dos lugares mais sinistros: o Bunker, cárcere onde a SS realizava interrogatórios, torturas, punições e assassinatos.

Dachau não era um campo “de extermínio”, como Auschwitz e Sobibor, na Polônia. Era um “campo seletivo”, inicialmente previsto para os próprios alemães que se opunham ao regime. Com a Segunda Guerra, chegaram prisioneiros de outros países, entre eles muitos judeus. Havia presos políticos de todo tipo. Com o aprisionamento em massa de judeus, muitos foram deportados para lá, assim como soldados capturados no front, sobretudo soviéticos. Havia um barracão especial para religiosos, predominantemente masculino, com presença rarefeita de mulheres.

No campo também eram realizados “experimentos”. Equipes médicas punham prisioneiros em situações extremas e desumanas para ver “o efeito”. A maioria das “pesquisas” destinava-se a “auxiliar o Exército”. Por exemplo, análise do efeito da falta de pressão em simulação de voos de altitude, mergulho contínuo em água, choques elétricos. Havia até experimentos com contágio de malária. Em duas réplicas dos barracões se pode ver as condições em que os prisioneiros ficavam. Previsto inicialmente para 6 mil, ao fim da guerra Dachau abrigava 32 mil prisioneiros, amontoados em condições infectas e degradantes. Ao longo de 12 anos estima-se em mais de 30 mil os mortos no campo, a maioria de doenças, sobretudo tifo e diarreia. Depois de sua libertação pelo Exército norte-americano, em 29 de abril de 1945, nos dois meses subsequentes morreriam mais 2 mil ex-prisioneiros, por doenças ou subnutrição. 

O campo foi concebido com a ideia de exterminar, por meio do terror, da submissão e da desmoralização, qualquer espírito de oposição. Muitas vezes a tortura não tinha sequer o sentido de “obter informação”. Era uma punição pura e simples. A preferida era pendurar o prisioneiro pelos braços atados e voltados para trás, às vezes durante horas, o que invariavelmente desarticulava e inutilizava os membros. Perdido para o “trabalho que libertava”, só restava ao castigado a última liberdade: a morte.

Os SS tinham poder total sobre os prisioneiros. Cabia às vezes a um interrogador decidir se o prisioneiro seria morto na hora ou ficaria guardado para futuros interrogatórios, ou até se seria solto. Às vezes homens e mulheres eram levados ao campo com a finalidade de ser executados. Foram tantas as mortes que foi necessário um trabalho de engenharia de produção para resolver o problema dos cadáveres. Caminhando ao longo dos barracos dos prisioneiros, o visitante depara, ao fundo, com alguns templos recentes (um católico, outro luterano, uma sinagoga e uma igreja ortodoxa russa).

À esquerda dos templos, por uma ponte que atravessa bucólico riachinho onde os turistas de hoje jogam “moedas do desejo”, chega-se ao espaço onde estão os fornos crematórios. As mortes eram tantas que eles funcionavam sem parar, noite e dia. Quando a 42a e a 45ª Divisões de Infantaria do Exército norte-americano entraram no campo, encontraram 3 mil cadáveres empilhados esperando a cremação, desorganizada pela fuga dos responsáveis ou sua desarticulação. Ao lado dos fornos havia também uma “central de desinfecção”, para a roupa dos mortos, e uma câmara de gás, que pelos relatos oficiais nunca foi usada; mas uma placa no local informa que alguns prisioneiros afirmaram o contrário.

Com tantas bases operativas e espaços organizados, o campo de Dachau serviu de modelo para a construção dos outros, pela Europa inteira. Seus principais comandantes foram os oficiais SS Theodor Eicke e Hans Loritz. Eicke idealizou um código de comportamento para prisioneiros e carcereiros que foi reproduzido nos outros campos. Foi nomeado depois “supervisor geral dos campos de concentração”, cargo que deixou ao ser enviado ao front soviético, onde morreu em combate.

Ao fim do percurso, o nosso visitante imaginário estará física e moralmente exaurido. Ficará a se perguntar como foi possível tamanha barbárie. Terá ainda na memória uma data significativa. No dia seguinte à ocupação/libertação de Dachau pelo Exército norte-americano e diante do avanço do Exército soviético, Hitler se matou em seu bunker, em Berlim.

Ao sair pelo portão com seu dístico sarcástico, “O trabalho liberta”, o visitante dá de frente com a ex-escola dos SS. Está completamente cercada, e desde os anos 1950 ocupada pela polícia estadual da Baviera, que usa o espaço para fins administrativos. Então nosso visitante poderá pensar que, de vez em quando, a própria memória pode permanecer encarcerada pelo esquecimento.