Mídia

Da tragédia ao pânico

Uma análise do jornalismo brasileiro em situações de desastre

Eraldo Peres/photo agência

Desastres são momentos do jornalismo nos quais se acirra a corrida contra o tempo. Mas o repórter não pode assumir o que diz o primeiro especialista que encontra. Precisa ser rigoroso na escolha dos entrevistados, deve hierarquizar e contextualizar com cuidado

Desastres são momentos do jornalismo nos quais se acirra a corrida contra o tempo. Mas o repórter não pode assumir o que diz o primeiro especialista que encontra. Precisa ser rigoroso na escolha dos entrevistados, deve hierarquizar e contextualizar com cuidado.

Duzentos mortos num único desastre é algo fora do comum. Por isso, desastres de aviões como o do Airbus da TAM traumatizam toda a sociedade, que exige uma explicação. Qual a causa? Quem são os culpados? É na imprensa que o povo confia nesse momento crítico, não nas autoridades ou empresas. O tratamento da tragédia pela mídia pode ter efeito decisivo no julgamento das pessoas e mesmo desencadear todo um novo comportamento coletivo. Daí a enorme responsabilidade do chamado “jornalismo de desastres”. Há até entidades internacionais, como o Dartcenter e a AlertNet, que se dedicam ao aperfeiçoamento do jornalismo nessas situações.

Desastres são também grandes momentos do jornalismo nos quais se acirra a corrida contra o tempo. Mas o repórter não pode assumir o que diz o primeiro especialista que encontra. Precisa ser rigoroso na escolha dos entrevistados, deve hierarquizar e contextualizar com muito cuidado as circunstâncias da tragédia e, acima de tudo, evitar o sensacionalismo – em respeito às famílias dos mortos e, principalmente, para evitar pânico.

Não foi o que aconteceu na cobertura do desastre do Airbus da TAM. Uma semana de noticiário sensacionalista conseguiu justamente o pior: criar o pânico. Pilotos, empresas e até as autoridades aeroviárias que provavam com laudos técnicos a boa qualidade da pista perderam confiança em si e na própria ciência. E, “por precaução”, o mais movimentado aeroporto do país foi fechado a um grande número de vôos. A desordem no tráfego aéreo, que já vinha de meses, virou um caos total.

Por que a mídia centrou a culpa do acidente na pista, ainda sem nenhum laudo conclusivo? Para poder incriminar diretamente as autoridades que liberaram a pista. A pista virou o fio condutor de uma narrativa jornalística que jogava toda a culpa das mortes no governo federal. Deu-se a continuação do linchamento midiático do governo Lula que vinha desde a crise do “mensalão”. A peça típica desse linchamento foi a chamada de primeira página da Folha de S.Paulo com a frase de seu colunista Francisco Daudt, dois dias depois da tragédia: “Governo assassina mais de 200 pessoas”. Dentro do jornal, a foto do presidente encabeçava uma montagem fotográfica do “quem é quem na aviação” e, logo abaixo, o título “O que aconteceu não foi acidente, foi crime”. A ilação não podia ser mais clara: os personagens da montagem eram “assassinos”.

Eliane Cantanhêde e Janio de Freitas, ambos críticos ferozes de Lula, foram dos poucos jornalistas que nesses primeiros dias mantiveram a cabeça fria. Na sua coluna, Eliane apontava “falhas humanas e de equipamentos” como as causas prováveis do desastre. E se o desastre tivesse pouco ou nada a ver com a pista? Ainda na noite da tragédia, repórteres do Estadão receberam de diversos pilotos a informação de que o avião voava há dias sem o freio auxiliar e de emergência, chamado reverso. Mas o jornal omitiu essa informação durante dois dias, só a admitindo na sexta, depois de ser furado pelo Jornal Nacional.

Enquanto jornais abriam páginas inteiras a cartas de leitores e familiares de mortos, pedindo a cabeça de Lula, o governador José Serra (PSDB) e o prefeito Gilberto Kassab (ex-PFL, atual DEM) divulgaram sua carta aberta ao presidente “exigindo providências”. Esqueceram-se convenientemente de mencionar a falta de providências deles mesmos para tocar os projetos do trem até Viracopos e do metrô até Guarulhos, sem os quais é impossível desafogar Congonhas. “A oposição saiu na frente na politização do acidente”, diagnosticou no Estadão o professor Arthur Giannoti. Nesse dia saiu o laudo do IPT atestando que a pista tinha índices de aderência e compactação muito acima dos limites mínimos exigidos pelas normas. A Folha deu num canto de página interna. O Estadão omitiu.

Em Brasília o presidente, de cabeça fria, tomava decisões, a começar pelo pacote aéreo anunciado já na quinta, apenas dois dias depois da tragédia, seguido da substituição do ministro da Defesa, dias depois. Mas foi acusado de ausente pelos mesmos formadores de opinião que, de cabeça quente, semeavam o pânico.

Outro notável traço da cobertura foi o esforço da mídia em poupar a TAM, como observou em sua coluna no Observatório de Imprensa o analista de mídia Carlos Brickman. Ele acusou o presidente da TAM de ter mentido na entrevista coletiva em que disse que o avião voava em perfeito estado. “Como se explica a boa vontade da mídia com o presidente da TAM, Marco Antonio Bologna?”, perguntou.

Não sei a explicação, mas tenho uma hipótese: o ódio oriundo de um trauma não pode ser dividido. Ou se odeia o governo, ou se odeia a TAM. Para dirigir o ódio contra o governo a mídia ilustrou uma entrevista da funcionária da Agência Nacional de Aviação Civil Denise Abreu com uma foto jocosa tirada em ocasião muito anterior; explorou o gesto de desabafo de Marco Aurélio Garcia (claramente não relacionado ao acidente, mas à politização da tragédia pela oposição/mídia) e ainda distorceu o sentido de uma solenidade de entrega de medalhas em Brasília que, embora inoportuna, teve como principais homenageados os médicos legistas que trabalharam no desastre da Gol, em setembro passado, e como ponto alto um minuto de silêncio pelos mortos da TAM.

A “politização das mortes”, como escreveria na mesma Folha Fernando Rodrigues, já aconteceu outras vezes em coberturas de desastres. Uma pesquisa da Alertnet de janeiro do ano passado em 64 jornais e semanários de nove países, inclusive Estados Unidos, concluiu que na maioria dos desastres não é o sofrimento humano que move a cobertura jornalística, e sim interesses particulares. No entanto, com exceção do antológico programa de Orson Wells no início da era do rádio, não conheço um episódio em que a mídia tenha produzido pânico. Nós conseguimos.

Bernardo Kucinski é professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP. Foi produtor e locutor no serviço brasileiro da BBC de Londres e assistente de direção na televisão BBC. É autor de vários livros sobre jornalismo