história

Da corte para o povo

Os saraus chegaram ao Brasil com a família real movidos a erudição, requinte e soberba. Hoje, não precisam mais de pianos de cauda nem traje a rigor. Apenas de pessoas que queiram compartilhar arte

gerardo lazzari

Sérgio Vaz e o Sarau da Cooperifa, no bar do Zé Batidão

Literatura, música, champanhe e vinhos eram alguns dos ingredientes dos saraus do Brasil do século 19. Então privilégio de seleto público, esse tipo de encontro chegou ao Brasil em 1808, com D. João, e seguia os moldes dos salões franceses. Inicialmente, eram realizados no Rio de janeiro, mas logo fazendeiros de São Paulo resolveram aderir à moda e já na metade do século 19 estavam espalhados por todas as capitais.

Era a realização mais elegante da sociedade, com direito a piano de cauda e freqüentada apenas por pessoas “iluminadas” cultural e financeiramente. A maioria dos saraus tinha participação de poetas e músicos ilustres, mas artistas anônimos também gostavam de sondá-los à procura de um mecenas, proteção financeira e social.

Com o tempo, essas reuniões passaram a ser organizadas também por pessoas de influência, interessadas em cultura e em bancar estudos e movimentos artísticos. Foi o que Freitas Valle fez quando abriu o salão Villa Kyrial, na Vila Mariana, em São Paulo, onde reuniu modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Depois, surgiram outros, mais modestos como o do próprio Mário, Tarsila do Amaral, Paulo Prado e de Dona Olívia Guedes Penteado. 

Onde a cultura acontece

Os saraus de hoje não precisam mais de pianos de cauda, trajes a rigor e serviçais, mas de pessoas que queiram dividir música, literatura, arte visual ou multimídia. Podem acontecer em bares, porões, praças ou em casa. Segundo a jornalista Katia Suman, organizadora do Sarau Elétrico, de Porto Alegre, não há uma receita pré-definida. “Eu chamei as pessoas que tinham conhecimento em literatura, talento e um grau de comunicação. O dono do bar cedeu o espaço e o dinheiro da bilheteria é usado para cobrir custos de luz, som e dar uma ajuda aos músicos e participantes”, afirma Katia.

Vania Federovicz, que realizou seu segundo sarau Arte Riso em maio, alugou um teatro, mobilizou poetas, músicos, palhaços, atores, marionetes e dançarinos e fez uma parceria com o site do bairro e uma revista local para fazer a divulgação. “O lugar onde o sarau é realizado precisa ser muito aconchegante”, diz.

O Sarau do Charles, na Vila Madalena, São Paulo, existe há 10 anos. Começou em um pequeno apartamento com 12 pessoas e logo o espaço ficou pequeno. Depois de passar por centros culturais e praças, foi parar no Galpão Raso da Catarina. “No começo, ligava para todos os meus amigos convidando para vir. É importante haver proximidade e informalidade”, declara Alessandro Azevedo, o palhaço Charles, mestre de cerimônia do sarau.

Sarau Arte Riso, na Granja Viana: dança, teatro, música, circo e público de todas as idades

No Rio de Janeiro, Laurinda Santos Lobo oferecia recepções sempre no dia 4 de cada mês em sua casa em Santa Tereza, freqüentada por Villa Lobos e Isadora Duncan. Esse foi um dos saraus mais procurados pelos intelectuais da época. Esses salões se transformaram em importantes centros de debate político e cultural e permitiram, inclusive, às mulheres uma nova inserção na cultura letrada e no espaço público nacional. Depois de 1940 os saraus começaram a diminuir. A elite mudou de hábitos e o evento começou, aos poucos, a se popularizar.

De meados do século 20 aos dias de hoje, coube aos intelectuais universitários levá-lo aos mais diversos ambientes. Hoje, artistas, jornalistas, professores, estudantes e curiosos fazem do sarau um evento cultural contemporâneo. Começam com pequenos grupos de pessoas e as reuniões logo passam a ser periódicas. O Sarau da Cooperifa, o Sarau do Charles, o Arte Riso, em São Paulo, e o Sarau Elétrico, de Porto Alegre, são alguns dos que surgiram a partir da vontade de diferentes grupos sociais de compartilhar experiências literárias, musicais e dramáticas.

A Cooperativa dos Artistas da Periferia (Cooperifa), em Piraporinha, zona sul paulistana, foi idealizada pelo poeta Sérgio Vaz e pelo jornalista Marco Pezão para dar voz às pessoas que não têm acesso fácil à cultura. “Na periferia não tem teatro, não tem museu, não tem biblioteca, não tem cinema, não tem nada. Então, fizemos um movimento dos sem-palco. Tem empregados, operários, músicos, office-boys, atores, atrizes, poetas, pintores, advogados, professores, escritores. Tiramos a literatura da casa grande e levamos para a senzala porque o conhecimento tem que ser de acesso de todo mundo”, afirma Vaz, que reúne no Bar do Zé Batidão mais de 200 pessoas todas as quartas-feiras.

Quando começou a freqüentar o Sarau da Cooperifa, Rose Dorea quis voltar a estudar. Tinha parado na 8ª série do ensino fundamental e nem sempre entendia o que os poetas diziam em suas récitas. Ficou um ano e meio longe do sarau, mas retornou poetisa. “Foi a melhor coisa que eu fiz na vida. Agora que terminei o colegial, pretendo fazer faculdade de Direito”, comemora a musa do evento.

O motorista autônomo José Sales de Azevedo Filho já escrevia antes de ir ao Sarau da Cooperifa, mas não tinha onde mostrar seus escritos. “Eu aprendi na escola que saraus eram feitos por pessoas da corte, que era refinado. Um dia eu resolvi vir aqui e percebi que os participantes eram pessoas iguais a mim.”

viola