entrevista

Como não cair em tentação

Certa vez, diante de um homem que pensava em se castrar por causa de seu insaciável desejo sexual, Buda disse: “Se a mente que está em desvio não for contida, de que serve cortar um órgão?” O budista Hong Tsu Ho diz que é preciso meditar para lidar com as fraquezas humanas

paulo pepe

Se você tem muita vontade de comer, tem de controlar, senão vai se prejudicar. Desejo em excesso machuca as pessoas. É preciso transformar os desejos

Meses antes do Natal, milhões de pessoas em todo o mundo cristão correm para as lojas. Organizam-se as festinhas de “amigo oculto” ou “amigo secreto” (e até as muitas variantes, como o “inimigo oculto” ou “amigo da onça”). Até quem não tem dinheiro sobrando se desdobra ou pede emprestado para presentear; se, por infortúnio, não for possível comprar alguma lembrancinha, vem logo aquele inevitável sentimento de culpa.
Para encontrar uma visão diferente dessa e de outras “fraquezas” da sociedade de consumo, a Revista do Brasil conversou com um budista praticante. O chinês Hong Tsu Ho é presidente da Budha’s Light International Association no Brasil (Blia – ou Associação Internacional Luz de Buda), ligada ao templo Mahayana Zu Lai, em Cotia, Grande São Paulo. Para ele, os cristãos lembram pouco de Jesus no Natal.

O recado é importante. Em algumas famílias, as crianças têm tantos brinquedos que ao chegar o Natal seguinte alguns ainda nem foram tirados da embalagem; a indústria do desejo nos fabrica a necessidade de sempre comprar outros, mais modernos e sofisticados, de preferência iguais ou melhores que o do vizinho ou do colega da escola. Em outros lares, as crianças dependem de doações para ter com que brincar.

Hong Tsu Ho fala sobre como os budistas fazem para não cair nas tentações, como controlar nossos desejos, tão bem trabalhados pelos apelos da publicidade e do marketing. Para ele, com força de vontade, paciência, meditação e muito treino é possível resistir.

O Natal está próximo e o Brasil é um país de maioria cristã que segue a tradição da troca de presentes entre parentes e amigos, nesta época. Como o budismo vê essa tradição?

Para mim o nascimento de Jesus deveria ser comemorado de forma diferente: é preciso agradecer a vinda dele para ensinar a todos sobre o amor e a compaixão pelos outros como forma de construção da paz interior. Acho que as pessoas esqueceram isso – ou foram levadas a esquecer. A data é comemorada apenas com troca de presentes. As pessoas esqueceram que naquele dia nasceu Jesus, que ele sacrificou a vida para ensinar muitas coisas a todos e que todos têm um papel para fazer do mundo um lugar mais justo. Esse é o fundamental, o principal, que foi esquecido. Todo mundo fica alegre, mas a maioria esquece.

hongO budismo tem data parecida com o Natal?

O budismo tem no mês de maio uma data semelhante ao Natal. Buda nasceu, foi iluminado e ascendeu ao Nirvana em maio. Então comemoramos todos esses acontecimentos com cerimônias na primeira lua cheia do mês: é o Vesak, que faz parte, inclusive, do calendário oficial de São Paulo, no segundo domingo de maio. Essa data é muito importante para nós e a comemoramos com muito respeito e cerimônias religiosas. Também é fundamental dar alguma coisa de nós mesmos para os outros, mas alguma coisa interior. Não é para dar presentes às crianças que já têm muitos brinquedos e sempre querem outros, mais avançados, mais cheios de tecnologia – é um pouco diferente. Esse é um momento que devemos dar algo de nós a quem necessita.

Nós vivemos numa sociedade de consumo, a cultura estimula o desejo das pessoas de comprar e fazer a roda da economia girar.

É certo que a sociedade se alimenta do consumo e se não houver consumo não há progresso, inclusive. As bases de nossa sociedade são econômicas. Infelizmente, é difícil dizer para não comprar isso, não comprar aquilo… Acho que a sociedade usa o desejo das pessoas para estimular o consumo. Por isso é preciso separar o que é necessidade do que é desejo.

Só que as ferramentas são poderosas para criar também necessidades nas pessoas.

É verdade. Estimulam até quem não tem dinheiro para comprar: a sociedade empresta dinheiro para que as pessoas comprem. Isso faz parte do progresso, e não somos contra o progresso. O budismo de modo algum é contra viver melhor e nós estamos aqui para orar e pedir a Deus que proteja as pessoas para que elas vivam mais felizes. Como vamos retroceder? É verdade que a mídia faz propaganda e mostra que as coisas melhoram com o consumo. Por isso o fundamental é ter a cabeça no lugar: é importante que cada um saiba do que precisa ou não precisa.

Falando parece fácil, mas é difícil resistir…

É preciso vir mais vezes ao templo praticar… meditar… (risos)

E quem não é budista?

Também precisa meditar. Mas não é algo rápido, que se consegue da noite para o dia: quando você planta uma árvore, demora para ter sombra. As pessoas precisam de ajuda, ser sempre lembradas de que, para uma vida feliz, não bastam presentes. Isso não é felicidade! Para não se deixar levar pelo desejo é preciso ter a mente tranqüila e não sofrer quando o vizinho sai com um carro novo ou a vizinha aparece com um vestido muito bonito. Os desejos nascem na mente, os budistas praticam o controle da mente. Com as pessoas é a mesma coisa. Se você tem muita vontade de comer, tem de controlar, caso contrário vai se prejudicar. Desejos em excesso machucam as pessoas, por isso é preciso transformar os desejos.

Como podemos fazer isso?

Pensar nas pessoas que sofrem mais que você e ajudá-las, por exemplo. É uma forma de fazer com que seus desejos se modifiquem com o tempo. Quando você tem compaixão, quando é solidário, encontra forças para resistir. Não dá para simplesmente cortar o desejo, acabar com ele – mas dá para guiá-lo para outro caminho. A mente em silêncio e serenidade não tem maus desejos. Quando você vê alguém que sofre mais que você, aprende a controlar os desejos. Não é sentir piedade, mas aprender a amar o que sofre mais que você. Não adianta apenas olhar e dizer “coitado”. É preciso fazer algo. Essas experiências são como gotas de água pingando que se acumulam: um dia você vai se dar conta de que tem saúde boa e está mais satisfeito com a vida. Quando uma pessoa percebe isso, não sofre com as imposições.

Mas aí não corremos o risco de parar de lutar e aceitar tudo passivamente?

É preciso tomar cuidado para não se achar totalmente satisfeito e parar de evoluir. Temos, sim, necessidade de melhorar, de crescer. Quando crescemos e ajudamos as pessoas a crescer também, a sociedade evolui, progride, da maneira correta. Quem tem fortuna é porque já teve méritos – talvez em outra vida. Mas é preciso ter sabedoria para usar essa fortuna, junto com toda a sociedade, para o bem comum. É preciso manter a mente sempre calma, concentrada, para não sofrer com as influências, com os desejos – e isso se transforma em sabedoria.

Mas também tem muita gente que passa anos estudando como vender qualquer coisa para qualquer um.

E eu não sou contra as leis da economia e do progresso: para a sociedade evoluir, as pessoas precisam comprar. Mas é preciso ter mérito para alcançar a fortuna e é preciso ter sabedoria para saber como aproveitar a fortuna. A prática de ir até as pessoas carentes e sofredoras onde quer que elas estejam para ajudá-las nos ensina a desenvolver a compaixão. É na cabeça que nasce a sabedoria que distingue o certo e o errado, e nos faz trabalhar para ajudar no crescimento de todos. Um dia a sociedade vai se transformar e a civilização vai evoluir. Hoje a felicidade é para poucos, e isso não é correto. Os poderosos também têm de praticar o budismo, principalmente eles, que têm mais força e mais poder para influenciar os de baixo. Esse tipo de pessoa precisa saber que não adianta somente ela ficar bem, pois ela faz parte de uma sociedade.

Para o senhor, o que sobrevive no ser?

O corpo é uma casa onde moram os sentidos, a mente, e uma semente que concentra tudo que você é. Depois da morte, essa semente vai renascer em outro corpo. Por isso é preciso praticar o bem, para ter um karma positivo, um futuro positivo. Pode ser que você não colha nesta vida os frutos do que faz, mas em outra, certamente, colherá. Com as pessoas pobres é a mesma coisa. Veja, todo final de ano fazemos visitas a hospitais e entidades filantrópicas. Temos projetos com crianças carentes em que as levamos para conhecer pessoas que estão em situação pior que a delas. Algumas, na primeira vez, até choram. Por isso digo que quando alguém percebe e entende o sofrimento do outro consegue enxergar como está bem, pois é da natureza humana achar que o outro está melhor – e desejar a vida do outro.