Sociedade

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Cientistas, trabalhadoras, educadoras, mães. Histórias inspiradoras de mulheres que fazem a diferença na construção de um mundo melhor

mauricio morais

Dorina Nowill dirigiu, entre 1953 e 1970, o primeiro órgão de educação para cegos. Hoje, aos 88 anos, ela continua a atuar pela integração dos deficientes visuais

Mayana Zatz e Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo, são nomes que estão no topo da lista quando o assunto é genética e pesquisas com células-tronco. Assim como o de Lucia Previato, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos primeiros a ser lembrados entre quem busca compreender, tratar e prevenir a doença de Chagas. Ou Belita Koiller em seu universo de pesquisas teóricas sobre elétrons. Em comum entre essas mulheres respeitadíssimas em suas áreas de atuação: o olhar humanista guiando seus passos e o reconhecimento do meio científico internacional.

E engana-se quem pensa que a trajetória bem-sucedida das cientistas brasileiras é recente. De origem tcheca e naturalizada brasileira, Johanna Döbereiner (1924-2000) identificou o papel de algumas bactérias na fixação do nitrogênio em plantas leguminosas, como a soja. O processo é uma forma natural de nutrição que substitui o uso de fertilizante na agricultura. O resultado da sua pesquisa significou a economia de bilhões de dólares nos últimos 30 anos com a compra de adubo nitrogenado – caro, nocivo ao solo e às águas – e o reconhecimento da pesquisadora entre os dez cientistas brasileiros mais citados fora do país.

Saindo dos laboratórios e entrando na floresta, o Brasil também encontrará mulheres cuja capacidade de fazer a diferença na vida das pessoas é reconhecida mundo afora. No nordeste de Roraima, fronteira com a Venezuela e a Guiana, está a reserva indígena Raposa Serra do Sol. Em 1,67 milhão de hectares vivem aproximadamente 15 mil índios macuxi, taurepangue, patamona, ingaricó e uapixana. Depois de quase três décadas de conflitos, em 2005 o governo federal homologou a posse da terra a esses povos. Após essa vitória, a luta, agora, é pelo pleno exercício dos seus direitos civis e políticos. O primeiro passo é a obtenção de documentos. Só no ano passado emitiram-se mais de 7 mil certidões de nascimento, carteiras de identidade e de trabalho e título de eleitor.

A iniciativa é coordenada pelo departamento jurídico do Conselho Indígena de Roraima, que tem à frente a advogada Joênia Batista de Carvalho, 33 anos. De etnia uapixana, ela venceu as dificuldades para aprender a língua portuguesa, estudou “para defender seu povo” e tornou-se a primeira indígena brasileira a se formar advogada. “Nosso objetivo é mostrar que os indígenas são cidadãos brasileiros e nossas especificidades históricas, culturais e tradicionais não justificam a exclusão da sociedade”, diz Joênia, casada, mãe e integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

Da floresta de Roraima para o sertão do Piauí, o mundo encontrará outra brasileira reconhecida internacionalmente, a arqueóloga Niède Guidon, 74 anos, por sua defesa do Parque Nacional da Serra da Capivara. Situada em São Raimundo Nonato, essa relíquia histórica e ambiental concentra centenas de sítios arqueológicos e um dos maiores acervos da pré-história das Américas – que indicam que o continente teria sido habitado há mais de 30 mil anos, contrariando assim teorias mais aceitas pela ciência. O local, patrimônio da humanidade, está ameaçado pela ação de caçadores, invasões e falta de verbas. No ano passado, durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Niède ameaçou deixar o país caso o Ibama não fixe um orçamento capaz de preservar o parque que dirige.

Luz e sombras

A professora Dorina Nowill tem 88 anos e agenda cheia. Em 1945 liderou uma campanha que culminou na criação de um curso de especialização de professores para o ensino de cegos no Colégio Caetano de Campos, em São Paulo. Um ano depois criou a Fundação para o Livro do Cego para suprir a falta de livros em braile no Brasil, instituição que mais tarde recebeu seu nome. Entre 1953 e 1970 dirigiu o primeiro órgão nacional de educação de cegos, desenvolveu projetos, cursos e centros de reabilitação e de prevenção à cegueira. Trabalhou para a Organização das Nações Unidas e a Organização Internacional do Trabalho. Cega desde os 17 anos, era ainda estudante quando começou sua luta pela integração, educação, reabilitação, cultura, profissionalização – enfim, pelos direitos das pessoas com deficiência visual a toda forma de inclusão social.

E, se a vida é o mais importante dos direitos humanos, a de milhares de crianças brasileiras vítimas da desnutrição poderia ter se limitado aos primeiros meses não fosse o trabalho da Pastoral da Criança. Coordenada nacionalmente pela pediatra Zilda Arns Neumann, de 64 anos, a organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está presente em mais de 4 mil municípios brasileiros, disseminando informação para a melhora da qualidade da nutrição, da higiene e da água. Os 264 mil voluntários inspirados na liderança serena de Zilda Arns alcançam os lugares mais distantes do país para atender crianças menores de 6 anos de mais de 1,5 milhão de famílias.

Sua experiência-piloto, iniciada em Florestópolis (PR) há 23 anos, ampliou-se e hoje é aplicada em mais 16 países na África, Ásia e América Latina. Além do combate à desnutrição, a Pastoral atua na promoção da cidadania das mulheres, que representam 92% do total de voluntários. Um de seus grandes desafios é ampliar para além das atuais 100 mil o número de gestantes acompanhadas, já que o índice de mortalidade ainda está concentrado nos períodos perinatal e neonatal, até os primeiros 28 dias de vida da criança. E, quando a mãe é acompanhada desde o início da gestação, faz todos os exames pré-natais e tem boa alimentação, as chances de a criança nascer saudável são muito maiores. “Para que todas tenham vida plena, é urgente que haja a melhoria do sistema público de saúde e da qualidade da educação. Os esforços e os investimentos dos governos nos âmbitos federal, estadual e municipal devem garantir os direitos da criança como prioridade absoluta”, diz Zilda Arns.

Mulheres pela paz
Em 2005 a Fundação Suíça pela Paz criou um comitê para reunir, em vários países, nomes de mulheres atuantes em favor da paz, do trabalho, da erradicação da pobreza e da proteção ao meio ambiente para indicá-las ao Prêmio Nobel da Paz daquele ano. No Brasil, a comissão foi chefiada por Clara Charf, ela própria uma mulher que fez história em sua luta pela liberdade e por um país mais justo. O grupo apontou 52 nomes, número proporcional à população brasileira, para compor a lista de mil nomes de 154 países almejados pela ONG.

As biografias dessas notáveis, algumas aqui mencionadas, foram compiladas no livro Brasileiras Guerreiras da Paz (Editora Contexto, 2006). Entre elas estão nomes como o da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, por sua luta em defesa da floresta amazônica e das pessoas que nela vivem. Outra acreana, a educadora Concita Maia, também é lembrada na obra, embora seja pouco conhecida do grande público, como aliás a maioria das heroínas ali listadas.

Por exemplo: Creuza Maria Oliveira, líder das trabalhadoras domésticas e sindicalista (Bahia); Procópia dos Santos Rosa, líder quilombola em Goiás; Raimunda Gomes da Silva, líder camponesa no Tocantins; ou as ialorixás mãe Hilda e mãe Stella. Ironicamente, o Nobel da Paz daquele ano foi dividido entre a Agência Internacional de Energia Atômica e seu diretor geral, Mohamed El Baradei.