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Chocar, sim, mas com carinho

Com irreverência, criatividade e responsabilidade social, a Daspu zomba da Daslu e mostra que grife não é só questão de preço

Rodrigo Queiroz/Byte Beach

Jane não gostou do livro de Bruna Surfistinha e vai lançar o seu

Rua Imperatriz Leopoldina, quase esquina com a Luiz de Camões, arredores da praça Tiradentes, região central do Rio de Janeiro. São quase nove da noite, e o show está para começar na rua estreita de paralelepípedos. No repertório, clássicos como Upa Neguinho, Cadeira Vazia, Foi um Rio que Passou em Minha Vida, Volta, Palhaçada e Trem das Onze. O palco é improvisado entre mesas e cadeiras espalhadas pela calçada – e o cenário é uma conhecida área de prostituição do Rio. As intérpretes são as próprias prostitutas. Era mais um evento – Mulheres Seresteiras – da organização não-governamental Davida, criada há 14 anos e que no final de 2005 lançou a grife Daspu. No início de maio, elas chegaram pela primeira vez à zona sul do Rio, cantando em um bar no Leblon, no show Daspu in Concert.

O nome remete à Daslu – marca em que preço e ostentação concorrem com a estética, em importância – e criou polêmica com a loja de luxo paulistana. A idéia foi do designer Sylvio de Oliveira. “Todo mundo riu”, lembra Sylvio, responsável pela criação das estampas da Daspu. Ele resume o objetivo da grife em um conceito: chocar com carinho. A Daspu ganhou apoio de celebridades, como as atrizes Betty Lago e Luana Piovani, deu visibilidade à ONG e fez aumentar a receita, hoje baseada principalmente em um convênio com o Ministério da Saúde.

Já são mais de 3 mil clientes cadastrados na loja virtual e aproximadamente 4 mil camisetas vendidas. Em junho, será lançada a coleção primavera/verão, com a assinatura da estilista Rafaela Monteiro. Uma das próximas camisetas, adianta Sylvio, incluirá dezenas de nomes pelos quais as prostitutas são conhecidas, com a frase “Ser puta é legal” em destaque.

À frente da Davida e da Daspu está Gabriela Silva Leite, 55 anos, ex-estudante de Sociologia na Universidade de São Paulo, apreciadora assumida da “porra-louquice”, e prostituta dos 23 aos 39 anos. “Eu acredito em movimento social, não em movimento social babaca”, afirma Gabriela, paulistana da Vila Mariana que adotou o Rio em 1982. Por movimento social não-babaca, ela define “quando as pessoas percebem a sua importância a partir delas próprias”.

A Davida surgiu para organizar as prostitutas, atuar na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de Aids, promover pesquisas e defender a permanência das profissionais em áreas históricas que passem por processos de revitalização. A organização apóia um projeto de lei, em tramitação no Congresso, que regulamenta a profissão. “Queremos ter direitos trabalhistas, que esses caras (donos de casas de prostituição) entrem na legalidade”, diz Gabriela.

Rodrigo Queiroz/Byte BeachLourdes
Lourdes é a responsável pela Davida na região norte do Rio

Na visão da ONG, ao tirar o empresário do crime seriam criadas melhores condições de trabalho para as mulheres. “É difícil, mas desafiador”, diz Lourdes Barreto, 62 anos, responsável pela Davida na região Norte do país, lembrando dos grupos de cultura popular e das equipes de prevenção que atuam em toda aquela extensa área. Com quatro filhos e dez netos, ela conta que foi vítima de abuso sexual na infância. Fez programas até os 49 anos.

Ex-babá e ex-cozinheira, Doroth de Castro Ferreira, 50 anos, na prostituição desde os 22, chegou adolescente de Juiz de Fora (MG). “Vim grávida e adotei o Rio”, lembra Doroth, que hoje tem quatro filhos. “Cada um tem seu próprio pai, que é para não ter briga”, esclarece. “Só lamento estar envelhecendo e não ter a mesma energia. Agora não consigo passar do terceiro programa.”

Perdendo a vergonha

Em 2002, a categoria das prostitutas foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e Emprego. São descritas como “profissionais do sexo” e indentificadas por várias denominações. como garoto(a) de programa, meretriz, messalina, mulher da vida, prostituta, puta, quenga, rapariga. Para Gabriela Silva Leite, da ONG Davida, a inclusão na CBO representou um avanço. Pode facilitar, por exemplo, o mapeamento da categoria pelo próximo Censo e ajudar a combater os efeitos nocivos das atividades clandestinas.

“As meninas estão perdendo a vergonha de mostrar a cara”, acredita Jane Eloy, 31 anos. “Eu não tinha necessidade de ir para a prostituição. Fui por prazer”, afirma Jane, mãe de três filhos. Ela não gostou do livro de Bruna Surfistinha e vai lançar o seu: Histórias Reais sem Limite. “Não é por ser prostituta que você tem de vulgarizar.” Entre suas histórias, tem a de um cliente que pagou 400 dólares por sua companhia e só quis transar ao fim de uma semana, “em grande estilo, em pleno bondinho do Pão de Açúcar”, conta a ex-camelô e ex-decoradora, que já pensou em ser advogada.

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Gabriela, a cabeça por trás da Davida e da Daspu: “Eu acredito em movimento social, não em movimento social babaca” (Foto: Rodrigo Queiroz/Byte Beach)