Opinião

Bom momento para mudar

A permanente evolução permite que se produza cada vez mais riqueza com menos horas de trabalho. Por que só os empregadores podem desfrutar dos ganhos tecnológicos e das transformações produtivas?

No contexto internacional, a rotina de trabalho brasileira, mesmo depois de reduzida, é uma das mais altas do mundo. A jornada legal é ainda ampliada na prática pelo uso abusivo de horas extras. O que era para ser extraordinário virou usual e ordinário
Em 29 de outubro de 1919, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) elaborou sua primeira convenção internacional. A Convenção nº 1 da OIT estabelecia que a jornada diária não poderia exceder oito horas e a semanal 48 horas. A longa luta da sociedade para regular o tempo de trabalho, iniciada no final do século 18, havia conquistado sucessivas reduções da jornada, sobretudo a partir da segunda metade do século 19. A Convenção nº 1 representou, simbolicamente, o avanço dessa luta no plano internacional. A OIT havia acabado de ser criada, no contexto da Liga das Nações (que se tornaria a ONU após o fim da Segunda Guerra).

Ainda são muitos os argumentos para a redução da jornada de trabalho no Brasil e no mundo. Pode-se dividi-los, resumidamente, em três dimensões: individuais, sociais e econômicas. Nas dimensões individual e social, a disputa pela repartição do tempo de trabalho tem profundas implicações sobre a vida do trabalhador e de sua família. Quanto menor for a carga de trabalho de uma pessoa, mais tempo livre haverá para o convívio familiar, para sua formação, para o lazer. A busca de equilíbrio entre o tempo dedicado ao trabalho e o tempo livre, dedicado à vida, certamente tem profundas implicações sobre a qualidade de vida, sobre a saúde e, por que não dizer, até sobre a produtividade dos trabalhadores.

No plano econômico, a permanente evolução tecnológica tem permitido que se produza cada vez mais riqueza com menos horas de trabalho e intervenção física, em todos os setores. É senso comum que o progresso técnico libera horas de trabalho. A escolha das sociedades pode se dar, portanto, entre mais tempo livre ou mais desemprego. Esse ponto é o argumento econômico (com forte impacto social) mais poderoso neste debate. Quanto menor a jornada de trabalho semanal para os que trabalham, mais empregos serão criados para os que ingressam no mercado de trabalho e os que procuram uma ocupação.

Em 1988, com a nova Constituição, a jornada legal foi reduzida de 48 para 44 horas semanais. No contexto internacional, a rotina de trabalho brasileira, mesmo depois de reduzida, é uma das mais altas do mundo. A jornada legal é ainda ampliada na prática pelo uso abusivo de horas extras. O que era para ser extraordinário virou usual e ordinário.

Há um outro forte argumento a favor da duração menor da jornada no Brasil. Os novos métodos de produção são mais flexíveis. A terceirização, o trabalho em domicílio, em tempo parcial, temporário, em turno, são formas de ocupação que, cada vez mais, ampliam o poder dos empregadores sobre o tempo de trabalho, reduzindo a liberdade de tempo dos trabalhadores. É necessário regular socialmente essa nova forma de “dominação” social. Por que somente os empregadores podem desfrutar dos ganhos tecnológicos e das transformações produtivas?

No Brasil, a conjuntura econômica favorece a redução da jornada. O desemprego está em queda, mas ainda é alto. A atividade econômica, os investimentos produtivos e a produtividade do trabalho não param de crescer. Esse avanço da produtividade permite absorver o impacto sobre os custos e manter a competitividade. Estimativas do Dieese apontam para um potencial de criação de mais de 2 milhões de empregos com a diminuição de 44 para 40 horas semanais. Mesmo que o impacto seja menor, em função do avanço tecnológico, certamente não será desprezível.

A prioridade que as centrais sindicais têm conferido ao tema resgata a luta histórica dos trabalhadores por uma reivindicação que sempre lhes foi muito cara no debate sobre a apropriação social de parte da riqueza que produzem. Além disso, estabelece um diálogo com parcela expressiva da população que está desempregada, ou trabalha em péssimas condições, com jornadas extenuantes e com impactos negativos sobre a qualidade de vida e de saúde. Não há momento mais oportuno para essa mudança.

Sérgio Mendonça é economista. Foi diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 1990 a 2003, do qual atualmente é supervisor técnico