Crônica

Azeitona e Monet

Sempre há um dia gratuito nos museus e devemos aproveitar

mendonça

Há uns bons meses fomos, meu marido e eu, cruzar o Parque do Ibirapuera até o século 20 da plástica brasileira. Esse cruzar o parque, margeando um lago, vai afrouxando o pensamento, você se prepara para o bom, o belo e a verdade.

Numa análise bem grosseira, posso dividir as obras de arte em três grupos: o que nos traz beleza, o que nos traz idéias e o que junta as duas coisas. Na turma da beleza, um quadro consegue atravessar séculos deliciando as pessoas que freqüentam os museus, seu poder de epifania estética é ilimitado, os olhos não se cansam diante de sua existência. No caso das obras que carregam idéias, assim que nossa razão a capta, e isso pode acontecer em segundos, a idéia, ou seja, a obra, se esgota. A idéia já está com você e não com a arte, vocês podem se despedir ali mesmo. Já as obras que somam conceito e beleza são transcendentes de nascença e continuarão a atravessar os séculos atualizando as questões que elas carregam.

Mas a arte não é nada sem sua percepção, ela é o valor que você dá. Nessa hora a subjetividade é individual e intransferível, apesar de apelos coletivos que a todos tocam. O que pode me espantar não lhe causa nada, o que a mim causa beleza, a você entedia.

Posto isso, chegamos ao museu.

O artista plástico usufrui uma liberdade que não temos com os objetos. Mistura tinta, tecido, louça da avó, caderno da primeira série, pote de azeitona. Tira-os de seus lugares originais e só esse ato faz dos objetos uma imagem, algo a ser visto e nunca mais tocado nem usado. O objeto perde a utilidade para a qual nasceu e assume outra personalidade, embora sua cópia em série seja vista em qualquer mercadinho.

O objeto é retirado de seu contexto para que o público pense e reflita a função das coisas, quanto mais confusa fica a cabeça de um espectador, mais feliz fica o artista. A obra que não se desvenda facilmente é a mais cortejada. Um pote de azeitona quer te convencer de que a azeitona foi um passado remoto e que agora, sendo um pote vazio, está pleno de perguntas que você deve fazer ao olhar para ele. Talvez o pote o faça ter vontade de tirar do lugar todo objeto que se fixa a um propósito.

Tudo o que é confuso distrai, está aí a arte, uma distração que amplia outras. Essa locomoção sensorial me fez caminhar depois do museu, a exposição ao menos ajudou no combate ao colesterol. Uma pesquisa feita pelo Departamento de Ciências Psiquiátricas e Neurológicas da Universidade de Bari, na Itália, comprova que a percepção da beleza em obras de arte diminui a sensação subjetiva da dor. Perdoe o raciocínio simplista, mas prefiro o que pelo menos não fere.

Hoje colocam uma instalação rodeada por fita amarela para que não a confundam com o espaço ordinário, e tudo o que você recebe é um pensamento e não uma flecha de êxtase atirada por um Monet.

Às vezes, ir ao museu é ir ver o próprio museu com sua roupa momentânea, com a mostra da vez. Como ver um ator famoso no palco, o que vemos não é o personagem em si, mas um ator famoso fingindo que é outro. Ou ver sua mãe de peruca, por mais que a peruca e ela sejam geniais nesse encontro.

Irei ao museu o quanto durarem os potes de azeitona. Não é birra com o museu nem com as obras, mas com o vazio que as protege de nós, o respeitável público.