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Aula de civilidade

“O povo deu uma aula de como manter a civilidade para a mídia, para aquela que deveria ser a guardiã dessa civilidade” (Luis Nassif)

bia barbosa/carta maior

Manifestação na festa da vitória de Lula: mídia sem sintonia

O quarto poder já não é o mesmo. A eleição para presidente da República em 2006 poderá ser analisada, ao longo da história, por uma série de aspectos. Um deles, com certeza, será a atuação da mídia. Desta vez, a opção dos grandes veículos por um candidato, não admitida nem explicada, resultou num furo n’água. Pior, os jornalões, as revistas semanais – exceção feita a Carta Capital – e até emissoras de TV do porte da Globo arriscaram sua credibilidade por apostar na técnica de produzir e amplificar versões, em vez de lidar jornalisticamente com os fatos. “Temos a tradição do voto de cabresto, mas a eleição de 2002, cujo resultado esta de 2006 confirma, a desfazem. O povo brasileiro fez sua escolha à revelia daqueles que desde sempre pretendem enganá-lo”, escreveu Mino Carta em seu editorial de 1º de novembro.

“Os veículos se fecharam num processo de linchamento coletivo do PT e do governo, desde a chefia até os repórteres, sem nenhum constrangimento”
Bernardo Kucinski

No debate Mídia e Eleições, realizado pela TV Carta Maior em 26 de outubro, em São Paulo, os jornalistas Luis Nassif, Raimundo Pereira e Bernardo Kucinski foram unânimes ao afirmar que, apesar do conservadorismo da imprensa brasileira não ser novidade, a recente cobertura dos grandes veículos ultrapassou todos os limites já vistos no país. Ao analisar o acompanhamento do caso da compra do dossiê contra o PSDB e a divulgação das fotos do dinheiro apreendido pela Polícia Federal às vésperas do primeiro turno, a imprensa deixou clara sua opção. Exemplos não faltam desse comportamento vergonhoso, que acabou ganhando uma exposição vexatória graças às reportagens feitas por Raimundo Pereira, em edições que a Carta Capital chamou de dossiê da mídia.

“Às vezes a imprensa cria fantasias. Qual é o significado de uma foto de dinheiro? Todo mundo já sabia que o dinheiro existia. Mas a imprensa divulgou as imagens e ficou esperando inverter o resultado. Achava que a tal foto tinha um efeito mágico, quando o único interesse em sua divulgação era político-eleitoral. Então, jornalisticamente, o interesse era descobrir quem tinha vazado a foto. Essa era a informação, que não foi dada no início”, avalia Luis Nassif.

“O país é dividido em classes sociais. À medida, por exemplo, que a Veja piora em qualidade, cresce no gosto de uma classe. Por isso precisamos de uma imprensa popular forte”
Raimundo Pereira

Na opinião de Bernardo Kucinski, desde a crise do mensalão houve uma mudança qualitativa de padrão na mídia. Apesar de sempre ter sido crítica e de revelar traços de discriminação e preconceito em relação a Lula e ao governo PT, no ano passado a grande imprensa aprofundou esse processo. “Os veículos se fecharam num processo de linchamento coletivo do PT e do governo, desde a chefia até os repórteres, sem nenhum constrangimento. Isso aconteceu com todos os veículos, com raras exceções. Confesso que fiquei assustado com esse comportamento. É um fenômeno cultural importante, cuja profundidade só o futuro vai dizer”, alerta.

Eder Chiodetto/Folha Imagemimpeachment
Toda denúncia é verdadeira: o comportamento da mídia brasileira hoje pode ter nascido na época do impeachment de Collor

A origem

Vários são os fatores que podem ter desencadeado esse ambiente. Um deles seria a precariedade das condições de trabalho e o grande número de estagiários nas redações – que torna o jornalista mais vulnerável. Outro problema seria a adesão da grande imprensa, em nível internacional, à visão de mundo apregoada pelo capitalismo, com o agravante, no Brasil, de uma imprensa com origem oligárquica.

O perfil dos jornalistas também pode ter contribuído, de acordo com duas pesquisas realizadas pela revista Imprensa, pela Associação Brasileira de Comunicação Empresarial e pela agência MaxPress. A primeira delas foi divulgada no final de agosto e mostra que 39% dos jornalistas consideram o governo Lula ruim ou péssimo, 40% regular e 21% acham que o presidente foi bom ou ótimo. Na segunda pesquisa, divulgada em setembro, 31,7% dos jornalistas declararam que votariam em Geraldo Alckmin, 20,6% em Lula, 16,2% em Heloísa Helena e 3,2% em Cristovam Buarque. Portanto, fica evidente que boa parte dos jornalistas – independentemente de cargo, da chefia ao estagiário – não morre de amores por Lula ou pelo PT. E isso ficou claro na cobertura realizada.

Por fim, os erros do próprio governo e do PT, que deram combustível para um infinito número de reportagens incriminatórias – muitas inverídicas, outras a partir de denúncias jamais comprovadas –, em que princípios básicos como a presunção da inocência foram abandonados.

“Toda essa discussão sobre o papel da mídia vai ajudar a aprimorá-la e a dar mais visibilidade para essas novas formas de mídia que estão surgindo”
Luis Nassif          

Os primórdios desse comportamento da mídia, na avaliação dos debatedores, estão na campanha pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, há 14 anos. Naquela época, teria nascido uma competição entre os jornais por notícias cada vez mais espetaculares. “Era a síndrome do orgasmo permanente. A imprensa precisava de denúncias. O que aparecesse valia”, lembra Luis Nassif.

No meio da década de 90, o processo de abertura da economia acabou gerando uma elite internacionalista, chamada por Nassif de “geração Daslu”, que teria contaminado o preconceito da classe média e da imprensa em relação à parcela mais pobre da população brasileira. Fernando Henrique teve um papel antipedagógico nesse período, quando começou a transformar arrogância intelectual em “modernidade”, com aberrações como “temos um país provinciano e somos a elite internacionalizada”. “Foi terrível. A palavra e o exemplo de um presidente é mais forte do que a caneta dele”, acredita Nassif.

Tiros no pé

Em 2002, com a vitória de Lula dada como certa, a imprensa foi parcimoniosa. Agora, parecia estar inconformada com o favoritismo do presidente mesmo depois de um ano e meio de bombardeios – em que imprensa e oposição estabeleceram uma relação simbiótica no combate ao sapo barbudo. Na guerra comprada pelos meios de comunicação, entre mortos (o mito da imparcialidade da grande imprensa comercial) e feridos (a sua credibilidade), pouco se salva.

O tiro no pé serviu ainda para fortalecer um debate que dá urticária nos donos da mídia: a democratização dos meios de comunicação. O inchaço de votos obtido por Geraldo Alckmin logo se desfez no início da campanha do segundo turno. A mídia, ao promover a overdose de ataques a Lula, transformou-o em vítima. Ao mesmo tempo, Alckmin não conseguiu sustentar sua imagem. Raimundo Pereira o compara a um louva-deus: parece inofensivo, mas se alimenta de sangue. “Ele busca o poder, encheu as prisões de gente pobre, alimentou rebelião do PCC por direitos humanos. Tentou mudar e ir para cima do Lula e virou de fato a pessoa que representa o tipo de política que faz. Aí, enrolou-se nas pernas e caiu”, avalia.

Para o jornalista, é preciso trabalhar pela unidade da imprensa alternativa e pelo fortalecimento da imprensa popular: “O país é dividido em classes sociais. À medida, por exemplo, que a Veja piora em qualidade, cresce no gosto de uma camada da sociedade. Por isso precisamos de uma imprensa popular forte”.

Ficou clara, também, a importância do papel da internet na democratização da informação. Com o segundo turno, gerou-se um clima mais positivo para a reorganização da sociedade em torno de um projeto de uma nova mídia. Para Luis Nassif, a democracia pressupõe uma imprensa mais isenta; uma imprensa, ainda que partidária, comprometida com a veracidade das informações. “Toda essa discussão sobre o papel da mídia vai ajudar a aprimorá-la e a dar mais visibilidade para essas novas formas de mídia que estão surgindo”, acredita Nassif. “Pela primeira vez, o povo deu uma aula de como manter a civilidade para a mídia, para aquela que deveria ser a guardiã dessa civilidade.”

Comportamento vergonhoso na cobertura das eleições

1 Os petistas Valdebran Padilha e Gedimar Passos foram presos ilegalmente, sem mandado de prisão. Comprar dossiê é feio, mas não crime. A imprensa ignorou esse fato. Como também não se ocupou de checar o que poderia haver no dossiê.

2 Antes de a dupla chegar à sede da Polícia Federal, já havia no local um carro das equipes da campanha de Alckmin e Serra. Os jornalistas que chegaram depois comentaram a estranha presença, mas não divulgaram a informação.

3 O delegado da PF Edmilson Bruno fotografou ilegalmente o dinheiro apreendido com Valdebran e Gedimar e entregou CD com as fotos a jornalistas da Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo e rádio Jovem Pan. Pouco depois, deu outra cópia ao repórter César Tralli, da Globo. O delegado queria divulgação das imagens nos telejornais da noite e nos jornais da véspera do primeiro turno. E combinou com os jornalistas a versão de que o CD com as fotos havia sido roubado. A divulgação das fotos aconteceu e, pasme, a versão do roubo também.

jn

4 O Jornal Nacional gastou 8 de seus 37 minutos para divulgar as fotos do dinheiro. Nenhuma menção à queda do avião da Gol com 154 pessoas a bordo. O editor-executivo do JN, Ali Kamel, explicou (explicou?) que não abordou o acidente porque não tinha conseguido checar a informação. Estranha que o Jornal da Band e sites tenham levado as primeiras informações do acidente antes mesmo de o Jornal Nacional começar.

5 A Veja fez matéria de capa denunciando uma “operação abafa” montada pelo governo para encobrir o escândalo do dossiê. Noticiou, e a PF negou, sua versão de que o ex-assessor da Presidência Freud Godoy “visitou” clandestinamente os petistas presos. Antes de a revista ser impressa, a polícia mandou uma série de informações que mostravam que Veja estava errada. A publicação ignorou.

livroRaio X da mídia

O recém-lançado livro Mídia: Crise Política e Poder no Brasil, do professor da Universidade de Brasília Venício Lima, é uma boa dica para quem quer conhecer melhor o mundo da imprensa. De leitura agradável, o livro analisa a relação entre mídia e política e a questão da concentração da mídia no Brasil. Da recente crise política, o autor selecionou cinco matérias jornalísticas para mostrar que, através da omissão, da saliência e da distorção dos acontecimentos, muitos jornalistas esqueceram o compromisso com a fidelidade aos fatos e a regras elementares do exercício profissional.

O livro chama a atenção, ainda, para a crescente participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação, além, inclusive, do permitido pela legislação.

O Jornal Nacional, as Organizações Globo e a importância dos jornais escritos e a televisão na formação da opinião pública ganharam capítulos à parte. Editora Fundação Perseu Abramo, 176 páginas.